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Era uma vez o menino de Chicago que, recusando-se a crescer, fez sua obsessão florescer em traço, cor e ação, no que seu principal biógrafo, Neal Gabler, chamaria de “o triunfo da imaginação americana”. Mais de cinquenta anos após a morte de Walter Elias Disney, seu império construído sobre a arte de contar histórias - transformadas em onze parques, milhões de produtos licenciados e, agora, um serviço próprio de streaming - vale cerca de 186 bilhões de dólares e continua a impactar gerações, sempre moldada pelo “espírito do tempo”.
Walt Disney era um cristão republicano profundamente devotado à família, um checklist que, em tese, seria suficiente para conferir-lhe a “carteirinha” de conservador e nortear a análise dos filmes listados abaixo. Este texto, contudo, não é sobre uma “cartilha” de crenças e muito menos sobre uma bandeira política. Apreciar a arte à procura de elementos “de esquerda” ou “de direita” seria um atentado à própria finalidade da mesma e um insulto à ferramenta mais poderosa de Disney, o antídoto a qualquer ideologia nefasta: a imaginação.
Esclareço ao leitor, portanto, que valho-me aqui da definição de conservadorismo proposta por Michael Oakeshott, a mesma defendida nestas listas de séries e filmes que você não sabia que eram conservadores: a “disposição” a preferir o “familiar ao estranho, (...) o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito”. Oakeshott recorda também que a vida humana é rica em possibilidades - das catástrofes às surpresas - e que é impossível enfiar tudo em um livreto ou programa de governo. Resta-nos cultivar as virtudes, os laços e as experiências que transcendem os séculos e nos fazem verdadeiramente humanos.
É importante ressaltar, contudo, que os filmes listados abaixo são, principalmente, histórias para crianças e que existem várias formas de escrever para os pequenos: dois dos maiores especialistas do ramo - C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien - divergiam a este respeito. Tolkien tinha horror às alegorias (que, segundo ele, impunham limites à interpretação do leitor), enquanto Lewis as utilizava com frequência. Estas considerações servem para ressaltar que alguns destes desenhos contém “mensagens” evidentes e que não seria justo exigir de uma obra voltada para o público infantil a complexidade das personagens de Woody Allen.
Além disso, é preciso ter em mente também que boa parte das histórias que Walt batalhou para levar às telonas são baseadas em contos de fada popularizados por gigantes do calibre de Hans Christian Andersen e dos Irmãos Grimm; o que, por si só, já lhes confere um caráter conservador - mais uma vez, não pela “lição de moral” do conto, mas pela profunda identificação destes enredos, personagens e mundos com aquilo que nos faz gente. Não por acaso G. K. Chesterton, um ávido defensor destas histórias, defendia sua validade afirmando que “o país das fadas nada mais é do que o país ensolarado do bom senso”.
A expressão “Disney raiz” é uma referência aos filmes antigos, os chamados “clássicos” que construíram a identidade do estúdio e moldaram o público ao qual este texto se destina. Por questões “metodológicas”, esta lista está limitada ao ano 2000 (exceto por “Lilo e Stitch”), excluindo, portanto, as produções feitas em conjunto com a Pixar, que merecem uma análise à parte, bem como outras animações recentes que também têm seu valor.
Pinóquio
Ano: 1940
Por que é conservador: o segundo longa-metragem de Walt Disney, lançado três anos após a estreia da “Branca de Neve e Os Sete Anões”, é uma conhecida “palestrinha” sobre virtude, verdade, esforço e a importância da consciência.
O psicólogo canadense Jordan Peterson costuma ressaltar um outro aspecto relevante na história do boneco de madeira que almeja ser gente: a jornada de Pinóquio em busca de Gepetto recorda que o medo, o abismo e o sacrifício são experiências comuns a quem deseja se tornar um “menino de verdade”; e que uma fé inabalável no Bem é a única força capaz de nos salvar do desespero.
Não à toa a trilha do longa se tornou parte da identidade da companhia: “When you wish upon a star/Makes no difference who you are/Anything your heart desires will come to you” (“Quando você faz um desejo a uma estrela/Não importa quem você é/Tudo o que seu coração deseja vai acontecer”)
Cinderela
Ano: 1950
Por que é conservador: nunca li nada tão bonito e acertado sobre o antigo conto da Gata Borralheira transformado em longa-metragem quanto a descrição do próprio Chesterton sobre a história na qual, para olhos inocentes, há muito mais do “Magnificat” do que do mito do príncipe perfeito: “(Ele) manifestou o poder do seu braço: desconcertou os corações dos soberbos; derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes”.
Cinderela é, antes de tudo, uma história sobre a esperança gentil e paciente, e sobre a força da pequenez em um mundo devastado pela ganância. É preciso ser muito pobre de espírito para interpretar que a mensagem principal é sobre casamento.
A Dama e o Vagabundo
Ano: 1955
Por que é conservador: nascida da relação de um animador da Disney com sua cachorrinha da raça cocker spaniel (a mesma da protagonista Lady), esta adorável fábula da Disney retrata com delicadeza ímpar a vida interior de uma família, culminando na máxima de que todos merecemos florescer dentro de um lar.
A Dama e o Vagabundo é também uma bela história sobre meninos e meninas, tão iguais e tão diferentes através dos séculos (e espécies). Vale mencionar que o desenho está na lista dos que receberam um aviso prévio de “representação cultural estereotipada”, por conta das vilãs representadas por gatas siamesas.
A Bela Adormecida
Ano: 1959
Por que é conservador: eu poderia justificar o conservadorismo de “A Bela Adormecida” nos traços exuberantes de inspiração gótica, planejados para obedecer às ordens do próprio Walt Disney que torrou todo o orçamento do estúdio para que o filme se parecesse com uma “tapeçaria viva”.
Poderia ressaltar as alegorias já exploradas por Peterson e outros pensadores (Bruno Bettelhein, em “A Psicanálise dos Contos de Fada”, por exemplo) sobre os arquétipos de feminilidade e masculinidade; ou sobre os méritos da versão da Disney na qual o príncipe luta armado com “a espada da verdade” e o “escudo da virtude”.
“A Bela Adormecida”, afinal, é um dos alvos preferidos de críticos anacrônicos e desalmados que cismam em escrutinar o filme com olhos contemporâneos, a ponto de comparar a cena do beijo com um estupro. E, mesmo assim, não há crítica que resista ao resultado de tamanho esmero: um rombo monumental do orçamento da empresa, a despeito do sucesso de bilheteria, e uma animação de fazer coro a Roger Scruton: a beleza importa.
Mary Poppins
Ano: 1964
Por que é conservador: a “babá perfeita” que devolve a paz a uma família que se esfacelava em indiferença é uma ode às alegrias reservadas a quem acolhe as surpresas e vicissitudes da vida com a doçura de uma criança - ao invés de tentar prever, limitar e encaixotar a experiência humana. Pelos olhos da fé, pode-se até dizer que Mary Poppins é um filme sobre a Graça: inexplicável e imprevisível, mas sempre à espreita.
Este tópico, aliás, vem com uma recomendação dupla: em “Saving Mr. Banks” (2006), que conta a história da complicada relação entre a autora Pamela Lyndon Travers e o próprio Disney, está a chave para a compreensão não apenas de Mary Poppins, mas da dimensão do poder da arte. Enuncia Tom Hanks, na pele do pai do Mickey: “(...) é isso que nós, contadores de histórias, fazemos. Nós restauramos a ordem através da imaginação”.
O Rei Leão
Ano: 1994
Por que é conservador: a jornada do jovem príncipe que é chamado a assumir a responsabilidade por seu povo em um reinado de serviço tem notas de Shakespeare e, não por acaso, é considerada uma das maiores animações da história.
Tirania, ressentimento, luto, arrependimento, amizade, redenção e respeito aos ciclos da vida são os ingredientes profundamente humanos da trama tecida para imortalizar: “Lembre-se de quem você é”.
A Nova Onda do Imperador
Ano: 2000
Por que é conservador: este tesouro dos estúdios Walt Disney teve péssimo desempenho nas bilheterias, mas é uma das comédias mais surpreendentes e inebriantes do catálogo. Ambientada no Império Inca, a história do Imperador Kuzco, transformado em lhama por uma bruxa invejosa, satiriza como poucos o temperamento mimado e displicente dos tiranos, cujo único antídoto é a experiência da vida concreta - e a amizade.
Dica: assista em português. As dublagens de Selton Mello, Marieta Severo, Humberto Martins e Guilherme Briggs são imperdíveis.
Lilo e Stitch
Ano: 2002
Por que é conservador: defender a família é muito mais do que sustentar arranjos (ainda que estes tenham sua importância). É reconhecer que todos precisamos de pequenas comunidades para florescer, e que estes núcleos de apoio integral e gratuito são construídos através do compartilhamento de dores, temores e desejos. De “nunca mais abandonar ou esquecer”.
Esta adorável trama de duas irmãs orfãs que acolhem um alienígena com tendências assassinas é um presente, e a trilha sonora de Elvis Presley é um show extra.