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Autoritarismo

Oito sinais de que a China já vive em uma distopia

Presidente da China Xi Jinping
O presidente da China, Xi Jinping. (Foto: Reprodução/Governo Chinês/Fotos Públicas)

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Quantos dedos tem aqui, Winston?”

“Quatro”

“E se o Partido disser que não são quatro, mas cinco - quantos dedos serão?

Corria o ano de 1949 quando George Orwell publicou o clássico 1984, uma das mais lúcidas e certeiras críticas aos regimes totalitários emergidos do século XX já escritas na histórias.

Precisamente naquele ano, o Partido Comunista Chinês vencia as forças nacionalistas lideradas por Chiang Kai-shek e, no dia 1º de outubro, Mao Tsé-Tung proclamava a República Popular da China.

Contemporâneo de Hitler e Stálin, Orwell não viveria para contemplar o reinado de fome, perseguição e terror que ceifaria a vida de mais de 44 milhões de chineses, presos em uma distopia que em nada deixava a desejar à sua ficção.

Da vigilância do Grande Irmão ao Ministério da Verdade, estava tudo lá, funcionando em uma ditadura que só começaria a ruir com a morte de seu líder supremo em 1976. De lá para cá, a China se modernizou. Abriu as portas para o capital privado e enriqueceu a ponto de se tornar a segunda maior potência mundial.

O ímpeto autoritário do Partido Comunista Chinês, entretanto, nunca desvaneceu por completo. Três anos depois da morte de Mao, a política do filho único daria início a uma era de intimidação, esterilizações forçadas, abortos nas últimas semanas de gravidez, abandono de recém-nascidos, infanticídios e tráfico humano só se encerraria por completo em 2015.

É quase dito popular que conhecer a própria história é essencial para que não se cometa os mesmos erros do passado. E, em pleno século XXI, era de se esperar que o amplo acesso à informação tornasse impossível (ou, pelo menos, improvável) o recrudescimento de um regime totalitário.

Mas, sob a mão forte do ditador Xi Jinping, a China parece caminhar a passos largos para se tornar uma distopia orwelliana versão digital. E a tecnologia, na verdade, é parte deste processo. Entenda os sinais que indicam este caminho

1. O sumiço dos inimigos

Na China de Xi Jinping, desafetos do governo desaparecem de uma hora para a outra - não importa o quão ricos e influentes eles sejam. Há dois meses, um dos rostos chineses mais conhecidos do mundo, o vigésimo homem mais rico da Terra, não é visto, e justo depois de ser chamado para uma “conversinha” com as autoridades do Partido Comunista Chinês.

Em outubro passado, Jack Ma, fundador do grupo Alibaba e do AntGroup, teve a “ousadia” de dizer que o sistema regulatório chinês estava sufocando a inovação, e que os bancos do país tinham uma mentalidade tão atrasada que ainda se comportavam como "casas de penhores".

Foi submetido a uma rígida investigação e chegou a ser substituído por outro executivo do Alibaba na presidência de sua própria empresa, além de perder o posto de apresentador do seu próprio reality show.

E esta não é a primeira vez que isso acontece. Em março, o magnata Ren Zhiqiang desapareceu por um mês após escrever um artigo no qual criticava a forma como o governo chinês lidou com a pandemia do coronavírus nos primeiros meses e se referia ao ditador Xi Jinping como um “palhaço”. Após ser expulso do Partido Comunista, foi condenado a 18 anos de prisão por corrupção, em um julgamento que durou um dia.

2. Culto à personalidade do líder e poder ilimitado

Após a morte de Mao Tsé-Tung, em 1976, Deng Xiaoping determinou os limites do mandato presidencial na constituição chinesa. Tudo mudou com a ascensão de , Xi Jinping. Ele e os legisladores do Partido Comunista puseram tudo por água abaixo, ao aprovar uma reforma constitucional que dá ao ditador o direito de permanecer no cargo por tempo ilimitado.

Toda essa reverência à figura de Xi Jinping foi metodicamente construída: em 2016, o Partido Comunista da China declarou o presidente como o “núcleo” da liderança chinesa. Em 2018, suas ideias foram sacramentadas na Constituição como “Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era”.

“Xi chegou onde nenhum de seus predecessores havia ido antes. Ele foi equiparado a Mao. Presumia-se que não havia outro degrau para subir. Agora parece que tal presunção está errada. Xi agora está sendo equiparado a Karl Marx — o próprio Zeus, no Monte Olimpo comunista”, escreveu o diplomata indiao Vijay Gokhale.

Em junho do ano passado, o diretor executivo do principal centro de treinamento ideológico do PCC, He Yieting, considerado a “caneta de Xi Jinping”, definiu o pensamento do líder como o “marxismo contemporâneo do século 21”.

“No caminho para declarar Xi Jinping como o verdadeiro herdeiro de Karl Marx, o autor inclui os pensamentos ideológicos de todos os antecessores de Xi - o marxismo-leninismo, o pensamento de Mao Zedong, a teoria de Deng Xiaoping, as três representações de Jiang Zemin e outros teóricos comunistas chineses - no Pensamento de Xi Jinping, declarando que o Presidente Xi está sobre os ombros de ‘gigantes e sábio’.”

“[Yeting] canta louvores sobre ele [Jinping]; ele é o estrategista mestre que lutará contra o caos no mundo; o visionário de longo prazo que fornecerá soluções chinesas para questões globais; o vidente que viu o déficit de paz mundial e o déficit de desenvolvimento e propôs o estabelecimento de uma comunidade para o futuro compartilhado da humanidade. Parece que o marxismo pode ser compreendido no século 21 apenas por meio de um estudo profundo do pensamento de Xi Jinping”, explica o diplomata.

3. Tudo pelo partido, nada fora dele

É comum ouvir que a China não é um país comunista por conta da presença da iniciativa privada em seu território, principalmente depois das reformas de Deng Xiaoping. Ocorre que, mesmo para ser um empresário bem-sucedido, é necessário ser filiado ao Partido Comunista (não por acaso, Jack Ma e Ren Zhiqiang faziam parte da sigla).

Cerca de 7% da população chinesa (91 milhões de pessoas) é filiada ao partido, que já é a maior organização política do planeta. O grupo controla todos os departamentos governamentais, as forças militares, os tribunais de justiça e as reuniões parlamentares. Apesar de haver níveis organizacionais, nenhuma lei, órgão ou poder na China está acima do PCC. Não há Judiciário independente nem separação de poderes.

As Forças Armadas, por exemplo, deveriam se reportar ao Congresso por meio da Comissão Militar Central. Na prática, é Xi Jinping quem dirige essa comissão, sendo o líder direto dos mais de 2 milhões de membros do Exército de Libertação Popular.

O próprio Xi Jinping afirmou em 2019: “Nunca devemos seguir o caminho do 'constitucionalismo', da 'separação de poderes' ou da 'independência judicial' do Ocidente. (...) Por que a China pode manter a estabilidade de longo prazo sem caos? A razão fundamental é que sempre aderimos à liderança do Partido Comunista. Devemos institucionalizar e legalizar ainda mais a liderança do partido.

4. Controle absoluto dos meios de comunicação

A censura chinesa pode ser resumida com uma equação simples, proposta pelo jornalista Rodrigo Silva, do canal Spotniks: nos Estados Unidos, o Twitter, o Instagram e o Facebook bloquearam a conta do presidente Donald Trump por conta do incentivo aos ataques ao Capitólio. Na China, os bloqueados são o Twitter, o Instagram e o Facebook.

Esqueça o Google, o YouTube e o WhatsApp também. O que acontece, na verdade, é que Pequim criou suas próprias versões para cada um destes aplicativos, de modo que os chineses se sintam “participantes” do mundo moderno - e, claro, seus dados continuem nas mãos do partido.

Este é o Grande Firewall, um complexo sistema de censura operado pelo Ministério da Segurança Pública que abrange os 854 milhões de usuários da internet na China. Em mandarim, o projeto é conhecido como Escudo Dourado.

Sem falar, é claro, nos severos limites ao trabalho da imprensa, escancarados com a pandemia da Covid-19. Para ser jornalista na China, é obrigatório ser credenciado pelo Partido Comunista. E quem pisa fora da linha cai nas mãos do partido. É o caso da repórter Zhang Zhan, condenada a quatro anos de prisão por investigar as origens da Covid-19.

5. O passado proibido

Na noite de 3 para 4 de junho de 1989, milhares de chineses, liderados por estudantes e operários, reuniram-se na Praça da Paz Celestial por mais democracia e menos corrupção; uma resistência às autoridades do Partido Comunista Chinês sem precedentes na história.

Por ordens da organização, soldados sufocaram os protestos em um massacre que, segundo estimativas da Cruz Vermelha, custou a vida de 2.700 pessoas (o PCC falou em 300).

Em uma democracia liberal, um evento traumático como este, em seu aniversário de 30 anos, provavelmente seria alvo de intensas discussões acadêmicas, eventos públicos, manifestações artísticas etc. Vide o que acontece no Brasil quando se fala de 1964, ainda que algumas autoridades neguem a ocorrência de uma ditadura militar a partir daquele ano. Concorde-se ou não com as narrativas, os números e as análises, tudo pode ser dito.

Na China, o massacre de Tiananmem (o nome da praça) nunca aconteceu. Ou, no máximo, foi uma “agitação política em 1989”. A famosa foto de um manifestante diante dos tanques chineses é bloqueada pelo Grande Firewall, bem como quaisquer informações sobre o ocorrido e outros eventos “não desejados” do passado do PCC.

Nas universidades chinesas tomadas pelo partido, há até um termo oficial que designa os acadêmicos que expõem seu ceticismo em relação à versão do passado contada pelo partido. Chamam-nos de "niilistas históricos". O PCC chegou até mesmo a lançar uma campanha contra o dito "niilismo" (o mero ato de desconfiar dos dados).

O professor Robert Bickers, da Universidade de Bristol, especialista em China, é um deles — e com orgulho. "Se eu não fosse, não seria historiador", diz.

Recentemente, chamou a atenção da imprensa o assassinato do documentarista Lin Qui, que trabalhava com a Netflix na produção de uma série de ficção científica que tinha como pano de fundo a Revolução Cultural de Mao. A polícia chinesa afirma ter identificado um suspeito que está sob investigação.

6. Confiáveis e não-confiáveis

Anunciado em meados de 2017 com previsão de entrar em vigor em 2020, o sistema de crédito social da China já funciona em algumas áreas do país e é um dos mecanismos mais “distópicos” que se pode imaginar no mundo — a sensação é a de se descrever um episódio da série de ficção científica “Black Mirror”.

Imagine uma gigantesca base de dados que monitora e avalia a confiabilidade de indivíduos, empresas e entidades governamentais, com base em informações coletadas de registros financeiros, criminais e governamentais, cartórios e plataformas de crédito online. Há notícias de que a videovigilância e a transferência de dados em tempo real também esteja em estudo para integrar o arsenal de fontes.

Uma vez inscrita, cada pessoa ou empresa recebe uma pontuação. Doações de sangue e trabalho voluntário somam pontos. Inadimplência, quebra de contrato, acidente de trânsito, etc levam a perdas subtraem. No caso das empresas, baixa classificação de fornecedores e clientes também influenciam. Cidadãos podem reportar uns aos outros no sistema, feito, segundo o governo, para “fomentar uma cultura de confiança”.

Uma boa classificação resulta em recompensas, enquanto uma classificação ruim pode resultar na punição ou sanção de um indivíduo ou empresa: mais dificuldade para comprar uma casa, abrir uma conta no banco.

Em 2018, as autoridades chinesas afirmam que proibiram mais de 7 milhões de pessoas consideradas "não confiáveis" de embarcar em voos e quase 3 milhões de outras pessoas de viajarem em trens de alta velocidade. Liu Hu, um jornalista de 43 anos que mora no município chinês de Chongqing, disse ao portal ABC que ficou "pasmo" ao se descobrir no sistema e ser proibido pelas companhias aéreas quando tentou reservar um voo no ano passado.

Liu perdeu um processo de difamação em 2015 e, por isso, foi proibido de se hospedar em um hotel classificado com estrelas, comprar uma casa, tirar férias e até mesmo mandar seu filho de nove anos para uma escola particular. Por acaso, ele também ajudou a denunciar casos de corrupção de autoridades chinesas.

O estado de vigilância constante pode ficar ainda pior. Em Xiamen, onde o desenvolvimento de um sistema local de crédito social começou, há notícias de que as autoridades estariam avisando aos cidadãos quando estes telefonavam para alguém da “lista negra”.

7. A religião do comunismo

Onde impera a ideologia, a fé em qualquer coisa que não seja o partido se torna uma ameaça. Não por acaso, desde os anos 1950, Pequim deportou missionários estrangeiros e, durante a Revolução Cultural de 1960, proibiu todas as práticas religiosas públicas.

Durante o mandato de Deng Xiaoping, uma pequena abertura aconteceu. Mas, com a ascensão de Xi Jinping, os avanços acabaram. Ainda hoje, igrejas não regulamentadas junto às autoridades (um processo extremamente burocrático) sofrem sanções severas. “Devemos nos resguardar resolutamente contra infiltrações do exterior por meios religiosos”, disse Jinping, em 2016. O cristianismo, afinal, é uma “forma de influência ocidental”.

Nos últimos anos, a repressão aumentou: em 2019, segundo a Open Doors, mais de 5.500 igrejas foram destruídas, fechadas ou confiscadas no país. Algumas tiveram suas cruzes arrancadas, em um esforço para “adaptar” o cristianismo ao socialismo chinês. Outras, ganharam bandeiras e fotografias de XI-Jinping para seus altares.

8. Campos de “reeducação”

Não basta impedir que muçulmanos e outras etnias religiosas professem a sua fé em público, ergam mesquitas ou se reúnam para rezar. É preciso “reeducá-los” em campos de trabalho “voluntário” e garantir que as mulheres não sejam “fábricas de bebês” (um eufemismo nada discreto para aborto e esterilização), conforme foi publicado no próprio Twitter da Embaixada da China nos Estados Unidos no último dia 10 de janeiro. A rede social removeu o post.

Trata-se, apenas, da maior detenção em larga escala de uma minoria étnico-religiosa desde a Alemanha Nazista, denunciada pela ONU (da qual a China é membro) em agosto de 2018. A estimativa é que haja de um a dois milhões de uigures presos em campos de concentração em Xinjiang.

Em junho do ano passado, a BBC divulgou imagens de longas fileiras de pessoas com cabeças raspadas entrando em vagões em Xinjiang. Treze toneladas de cabelo humano foram apreendidas em um navio chinês. Nos tais “campos de reeducação” para onde são encaminhados, os uigures são forçados a ouvir palestras e a cantar hinos em louvor ao PCC.

Por conta da visão de que a religião é uma espécie de “vírus”, uma praga que se esconde e usurpa potenciais filiados, muçulmanos são detidos por recitar o Alcorão em funerais, portar livros sobre a cultura uigur, receber ligações do exterior ou mesmo tentar parar de fumar ou beber. Mulheres são presas pelos “crimes” dos maridos. As que, por acaso, engravidam em liberdade, são proibidas de dar nomes muçulmanos aos seus filhos. As crianças são impedidas de frequentar escolas estatais e, quando um homem é preso, um agente da polícia toma seu lugar para “cuidar” da família remanescente.

Há fartas denúncias de trabalho e de venda de escravos uigures para multinacionais que tentem se estabelecer em Xinjiang. Sem falar nos relatos de tortura e privação física nos campos. É de se pensar se o próprio Orwell, caso estivesse vivo em 2021, acreditaria que meio século levaria uma grande nação de volta a 1984; em uma versão mais tecnológica — e ainda mais cruel.

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