Anthony Fauci, cientista octogenário que está de saída de seu cargo importante nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA no fim do ano, está deixando um presente derradeiro para a EcoHealth Alliance, organização não-governamental ambientalista convertida em financiadora de pesquisa com vírus por Peter Daszak, um virologista que a preside. Os NIH estão dando mais uma verba de mais de US$ 650 mil para a ONG, como anunciado no mês passado, para investigar “o potencial para uma futura emergência de coronavírus de morcego em Myanmar, Laos e Vietnã”. O problema é que as verbas que Daszak recebeu anteriormente podem ter sido utilizadas de um modo que causou a pandemia de Covid-19.
Após ressurgir de um passado de relativa irrelevância em 2009 com uma verba de US$18 milhões da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), a EcoHealth ganhou também uma verba de US$3,7 milhões dos NIH em 2014. Daszak aplicou o dinheiro em coletas e pesquisas com tipos diferentes de coronavírus, como o que causou uma síndrome respiratória na Arábia Saudita em 2012 e o que causou a gripe asiática em 2003 — entre os coronavírus que causam doenças em humanos, é o mais próximo do que causa a Covid.
Seus planos eram explícitos: criar monstros Frankensteins virais, coronavírus que não existem na natureza, com a justificativa de evitar futuros perigos. Em 2017, Daszak buscou financiamento da Darpa, agência de fomento do Departamento de Defesa, com o plano de inserir uma estrutura molecular chamada sítio de clivagem da furina em coronavírus coletados em morcegos. O sítio de clivagem ajuda os vírus a infectar humanos, está presente no vírus que causa a Covid, mas não em seus parentes mais próximos na natureza. A verba da Darpa foi negada.
O trabalho laboratorial era feito com verba repassada para a cientista chinesa Shi Zhengli em seu laboratório no Instituto de Virologia de Wuhan — exata cidade chinesa em que a pandemia começou. Ela empregava, inclusive, camundongos com pulmões modificados para serem mais parecidos com os pulmões humanos, para teste da infecciosidade viral. Meses antes da pandemia, o IVW suspeitosamente apagou um banco de dados contendo detalhes de quais amostras virais mantém em suas dependências. O parente geneticamente mais próximo do vírus da Covid conhecido até hoje é o de uma amostra de fezes de morcego do IVW, que o instituto alega que se esgotou. Parte da pesquisa com coronavírus era feita no IVW em laboratórios abaixo dos padrões internacionais de biossegurança.
Absurdo ou pesquisa necessária?
A EcoHealth Alliance “não foi transparente a respeito de como usou suas verbas para pesquisa com coronavírus na China que pode ter resultado no surto de Covid-19”, reclamou em editorial a respeito da nova verba o jornal Wall Street Journal. A publicação menciona também que muitos cientistas discordam da hipótese favorecida pela ONG e pelos NIH, de que o novo coronavírus saltou de animais silvestres para pessoas espontaneamente, sem passagem por laboratório (envolvendo manipulação genética ou apenas armazenamento).
“Nós provavelmente nunca saberemos como o vírus surgiu, mas as evidências para um vazamento laboratorial ficaram mais fortes com o tempo”, comentou o jornal, que considera importantes pesquisas com vírus, mas pergunta “não existem organizações com um histórico melhor que a EcoHealth Alliance para fazê-las?”
Peter Daszak trabalhou ativamente para encerrar prematuramente o debate da origem, chegando a fazer parte da primeira comissão investigativa da Organização Mundial da Saúde que visitou Wuhan. Ele também coordenou dos bastidores, sem incluir o próprio nome, uma carta publicada pela revista médica The Lancet que assegurava a origem puramente natural do vírus. A própria revista, em relatório de comissão própria, mudou de ideia dois anos depois e passou a defender, como a própria OMS, que o vazamento laboratorial é, no mínimo, igualmente plausível.
A verba ignora também a falta de obediência da ONG. Os próprios NIH, via representantes, disseram em agosto a um comitê do Congresso americano que requisitaram em duas ocasiões que a ONG fornecesse as notas de laboratório e arquivos eletrônicos originais da pesquisa conduzida em Wuhan. Os documentos pedidos não foram entregues. Mas “não importa”, comentou o editorial do WSJ. “Mais uma vez, o fracasso é premiado pelo governo com mais dinheiro”.
Um artigo acadêmico que defende a pesquisa contemplada pela verba, liderado por Anthony Fauci, foi publicado em julho deste ano em uma revista de doenças infecciosas da editora da Universidade de Oxford. A publicação defende a busca de “patógenos protótipos” como parte de um Plano de Prontidão Pandêmica Americano, instituído em setembro de 2021 pelo governo Biden, e credita a pesquisa dos últimos 20 anos com coronavírus pelo desenvolvimento rápido das vacinas de mRNA. Os cientistas acreditam que devem buscar por potenciais fontes de novas doenças na natureza e montar defesas preemptivas. O artigo não diz quem vai coletar os protótipos na natureza, nem para onde esses vírus serão mandados para desenvolvimento de vacinas e terapias.
Richard Ebright, especialista em biossegurança e professor de bioquímica na Universidade Rutgers, disse em resposta ao artigo nas redes sociais que as vacinas de mRNA não foram beneficiadas pelos estudos de campo de busca de novos coronavírus em morcegos, e que não teriam sido desenvolvidas mais rápido se novos vírus tivessem sido coletados na natureza.
Já Jesse Bloom, um especialista em evolução de vírus do Centro de Pesquisa do Câncer Fred Hutchinson em Seattle, disse que as críticas se aplicam a apenas parte da abordagem dos patógenos protótipos. Para Bloom, está claro que as pesquisas com o vírus da Arábia e da gripe asiática contribuíram com conhecimentos que levaram à vacina da Pfizer. Porém, a parte que envolve coletar e fazer experimentos com vírus viáveis “de fato representa um risco em caso de acidente”, comentou o cientista no Twitter.
Para Alina Chan, especialista em biologia molecular que é coautora do livro “Viral” (2021, sem edição no Basil) com o escritor britânico Matt Ridley, o trabalho valioso feito com vírus que já se mostraram capazes de causar doença em humanos não deve ser usado para “justificar a caça perigosa a vírus, que até hoje não resultou em vacinas”, e isso está sendo feito quando se fala em “patógenos emergentes” em requisições de verbas como a feita pela EcoHealth.
Direito de Saber
A ONG Direito de Saber EUA (USRTK, na sigla em inglês), dedicada a promover a transparência na saúde pública, publicou artigo em que oferece possíveis explicações para a falta de cautela dos burocratas da saúde.
Um documento obtido pela ONG mostra que petições para investigar a EcoHealth Alliance foram apresentadas durante a pandemia para Christi Grimm, Inspetora Geral do Departamento de Saúde e Serviço Social dos Estados Unidos. Uma investigação foi aberta em setembro de 2020. O gabinete de Grimm a encerrou em janeiro de 2021, bem antes da revelação de detalhes como o pedido de verba de Daszak à Darpa. Grandes seções do documento são censuradas de acordo com as leis de sigilo americanas.
Os Institutos Nacionais de Saúde deram à inspetora 1.451 páginas de documentos sigilosos sobre a EcoHealth que continuam longe dos olhos do público. Falando à USRTK, o gabinete da inspetora disse que não pode confirmar nem negar que existam investigações em andamento. Em novembro de 2021, outros documentos revelaram que os NIH permitiram que a ONG escrevesse suas próprias regras de segurança em pesquisas de “ganho de função”, que é a alteração de características do vírus que afetam sua infecciosidade.
A Direito de Saber não está esperançosa: só pode confirmar que o gabinete está fazendo uma auditoria geral de subcontratados que atuam como intermediários de verba dos NIH, o que poderia afetar a EcoHealth, mas auditorias “têm menos impacto que investigações que desenterram possíveis violações da lei”.