Um relatório divulgado no mês de setembro pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), afirma que, atualmente, há 28 milhões de pessoas em trabalho escravo no mundo e outras 22 milhões em casamento forçado, o que totaliza 50 milhões de pessoas em situação de escravidão moderna. O relatório anterior, publicado cinco anos antes, mostrava 40 milhões de escravos modernos em todo o planeta. Embora a ONU fale em “10 milhões de pessoas a mais” nessas condições em meia década, estudiosos analisam não se tratar de um crescimento vertiginoso da escravidão, mas de um aprimoramento nos métodos de diagnóstico, cujas limitações ainda impedem de revelar a real dimensão do problema.
Professor de Ciência Política da Universidade de Richmond, nos Estados Unidos, Monti Datta tem se dedicado a projetos sobre tráfico humano e escravidão moderna, alguns deles em parceria com o Laboratório de Direitos da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, e se disse intrigado com os números divulgados pela ONU. “O que explica a estimativa global ter aumentado 10 milhões em cinco anos? Isso significa que veremos um aumento anual de 2 milhões de escravos a cada ano?”, questiona.
Datta explica que as lacunas em estudos sobre a temática começam na ausência de dados de amostragem em dezenas de países. O relatório divulgado pela ONU, por exemplo, reuniu informações de 75 nações para estimar casamento não consentido e de 68 para trabalho forçado. As investigações sobre as condições laborais ocorreram por meio de 77.914 entrevistas, realizadas entre 2017 e 2021, em que indivíduos foram questionados sobre experiências próprias de trabalho forçado e de sua rede familiar imediata. No mesmo período, 109.798 pessoas foram ouvidas a respeito de consentimento no casamento.
“As estimativas para os países onde não foram realizadas pesquisas nacionais foram obtidas por meio de um modelo de imputação [uma metodologia de preenchimento de dados faltantes com base em técnicas de estatística]”, explica o relatório. “Como não havia pesquisas nacionais disponíveis para a região da América do Norte, essa região foi assimilada à região Norte, Sul e Europa Ocidental”, exemplifica o documento.
“Ainda existem dezenas de países ao redor do mundo para os quais ainda não temos dados sólidos. Minha preocupação é que, uma vez que tenhamos números mais confiáveis e precisos para aqueles países que não foram estudados, possamos ver um aumento nos números. Mas até que tenhamos mais dados, simplesmente não podemos saber”, analisa Datta, em entrevista à Gazeta do Povo.
“Considere a analogia de uma balança de banheiro. Ao se pesar, você pode comprar uma balança barata no início apenas para ter uma ideia aproximada de quanto pesa. Mas então, ficando mais preocupado com sua saúde, você compra uma balança muito melhor, que lhe dá uma medida muito mais precisa. Isso não significa que seu peso mudou radicalmente, mas apenas que agora você tem uma noção muito melhor dele”, explica.
Datta recorda que o primeiro Índice Global de Escravidão, publicado em 2013 pela organização internacional de direitos humanos Walk Free, relatava 29,8 milhões de escravizados e se baseava na contribuição de especialistas, não em pesquisas de amostragem. Amostras de 25 países foram coletadas três anos depois, quando a Walk Free encomendou pesquisas da Gallup sobre o tema.
“No entanto, a Walk Free acabou gerando uma estimativa global para 168 nações, não apenas para as 25 nações pesquisadas. Isso significa que, para os outros países em sua estimativa de 2016, a Walk Free contou com informações de especialistas e técnicas estatísticas – e não usou apenas dados de pesquisa nacionalmente representativos”, detalha. A mesma mistura de amostragens com técnicas de estatísticas ocorreu nas duas estimativas da ONU sobre escravidão, em 2017 e 2022.
Com os métodos de pesquisa cada vez mais precisos, torna-se impossível fazer comparações entre um levantamento recente e um anterior – já que os dados foram obtidos de formas diferentes e, portanto, não há base comum de comparação. Outra dificuldade é a ausência de divulgação de quais países foram pesquisados em cada estudo.
“É difícil, então, saber quantos desses 48 países amostrados para o relatório de 2017 foram repetidos para o relatório de 2022. Também não temos dados disponíveis publicamente para esses 48 países, muito menos os países pesquisados para a estimativa global de 2022. E sem acesso a nenhum dos cálculos estatísticos feitos pela ONU para qualquer uma das estimativas, os estudiosos não podem replicar independentemente as descobertas da ONU para nenhum de seus relatórios de 2017 ou 2022”, lamenta Datta. “Essa falta de transparência torna difícil afirmar que realmente houve um aumento de 10 milhões no número de pessoas escravizadas de 2017 a 2022”, completa.
Apesar das imprecisões, o professor defende que, ao trazer o tema para o debate, a nova estimativa de 50 milhões acabou gerando mais conscientização sobre a situação da escravidão contemporânea. “Isso é uma coisa boa. Mas para realmente erradicar a escravidão, precisamos conhecer os dados. Precisamos saber exatamente quem é escravizado e onde”, afirma.
Para o estudioso, enquanto ainda não se tem um panorama mais exato do problema, uma boa saída para estudos sobre a escravidão é justamente a honestidade sobre a limitação das descobertas. “A ONU fez um bom trabalho, mas como há tantos países para os quais ainda não temos dados sólidos, é importante ter um senso de humildade e reconhecer que ainda há muito sobre a escravidão contemporânea que não sabemos com certeza. Isso é importante à medida que avançamos”, defende Monti Datta.
Panorama
A escravidão moderna é a exploração de outra pessoa, através de força, fraude ou coerção, normalmente para ganho econômico. As formas de escravidão moderna podem incluir trabalho forçado em empresas, exploração sexual comercial, casamento forçado e o uso de crianças-soldados em conflitos armados (temática de um dos estudos mais recentes do professor Monti Datta). As Estimativas Globais da Escravidão Moderna, publicadas em 12 de setembro, foram desenvolvidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização Internacional para as Migrações (OIM) e o grupo internacional de direitos humanos Walk Free.
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