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Após o retorno A Los Alamos, todos pareciam em festa. Com sua exuberância habitual, Richard Feynman estava sentado na capota de um jipe batucando seus bongôs. “No entanto, me lembro de que um homem, Bob Wilson [Robert Wilson, físico americano que desempenhou um papel crucial no Projeto Manhattan], estava sentado ali apenas se lamuriando”, escreveu Feynman [Richard Feynman, renomado físico teórico americano conhecido por suas contribuições à eletrodinâmica quântica] depois.
“Do que você está se lamentando?”, perguntou Feynman.
“O que fizemos foi terrível”, respondeu Wilson.
“Mas foi você quem começou tudo”, retrucou Feynman, lembrando que fora Wilson quem o recrutara em Princeton. “Foi você que nos meteu nisso.”
À exceção de Wilson, a euforia era de se esperar. Todos tinham ido a Los Alamos por um bom motivo. Todos haviam trabalhado muito para realizar uma tarefa difícil. O trabalho em si tornou-se satisfatório, e a impressionante realização em Alamogordo contagiou a todos com um avassalador sentimento de empolgação. Até mesmo Feynman, que tinha uma mente tão intensa, estava eufórico. Passado um tempo, porém, ele comentou sobre aquele momento: “Você para de pensar, sabe, simplesmente para de pensar.” Bob Wilson parecia “o único naquele momento que ainda estava pensando nas coisas”.
Mas Feynman estava enganado. Oppenheimer também estava pensando. Nos dias que se seguiram ao teste da bomba, o humor dele começou a mudar. Todos relaxavam um pouco após as longas horas passadas no laboratório. Eles sabiam que, depois do teste, o dispositivo se tornara uma arma, e armas eram controladas pelos militares. Anne Wilson, secretária de Oppenheimer, recordou uma série de reuniões com oficiais das Forças Armadas: “Estavam escolhendo alvos.” Oppenheimer sabia os nomes das cidades japonesas na lista de alvos potenciais — conhecimento que lhe gerava preocupações. “Robert começou a ficar muito quieto e pensativo”, lembrou-se Wilson, “em parte porque sabia o que estava prestes a acontecer e em parte porque sabia o que isso significava”.
Certo dia, pouco tempo depois do teste da bomba, Oppie surpreendeu Wilson com um comentário triste, até mesmo taciturno. “Ele estava começando a se sentir muito deprimido”, disse Wilson. “Eu não sabia de outras pessoas que estivessem naquele estado de espírito, mas ele costumava vir caminhando de casa até a Área Técnica, e eu vinha dos alojamentos das enfermeiras, então em algum ponto no meio do caminho costumávamos nos esbarrar. Naquela manhã, ele estava de cachimbo na boca e falando sozinho: ‘Aquelas pobres pessoas, aquelas pobres pessoas’, referindo-se aos japoneses.” E dizia isso com ar resignado, de quem tinha um conhecimento mortal.
Naquela mesma semana, porém, Oppenheimer trabalhou de maneira árdua para garantir que a bomba explodisse eficientemente em cima “daquelas pobres pessoas”. Na noite de 23 de julho de 1945, reuniu-se com o general Thomas Farrell e um auxiliar, o tenente-coronel John F. Moynahan, dois oficiais seniores designados para supervisionar o trajeto do bombardeio sobre Hiroshima a partir da ilha de Tinian. Era uma noite fresca, clara e estrelada. Andando nervosamente de um lado para outro no escritório e fumando uma sucessão de cigarros, Oppenheimer queria se assegurar de que eles haviam entendido as precisas instruções que dera para levar a bomba até o alvo. O tenente-coronel Moynahan, um ex-jornalista, publicou um relato vívido daquela noite num folheto de 1946: “‘Não permitam que a bomba seja lançada se houver nuvens ou nevoeiro’, disse Oppenheimer. Ele foi enfático, estava tenso, eram os nervos dele que falavam. ‘É preciso ver o alvo. Nada de bombardeios por radar, porque a bomba precisa ser lançada com confirmação visual.’ Passos longos, pés virados para fora, outro cigarro. ‘É claro que não há problema em verificar o local da queda com o radar, mas o lançamento exige confirmação visual.’ Mais passos. ‘Se lançarem a bomba à noite, deve haver lua, isso seria o mais recomendável. É claro que a bomba não deve ser lançada se houver chuva ou névoa. […] Não deixem que a detonem de uma altitude muito elevada. O número afixado nela está correto. Não deixem que subam [mais], ou então o alvo não sofrerá muito dano’.”
As bombas atômicas cuja existência Oppenheimer havia possibilitado iam ser usadas. Contudo, ele disse para si mesmo que elas seriam usadas de modo a não deflagrar uma corrida armamentista com os soviéticos após a guerra. Pouco tempo depois do teste Trinity, ele ficou aliviado ao ouvir de Vannevar Bush [engenheiro que trabalhou no Projeto Manhattan] que o Comitê Interino tinha aceitado por unanimidade suas recomendações de que os russos fossem claramente informados da bomba e do iminente uso que se faria dela contra o Japão. Ele presumiu que as discussões estivessem ocorrendo naquele exato momento em Potsdam, onde o presidente Truman estava reunido com Churchill e Stálin. E, mais tarde, ficou absolutamente estarrecido ao saber o que de fato havia ocorrido naquela conferência final das Três Grandes Potências. Em vez de uma discussão aberta e franca sobre a natureza da arma, o presidente norte-americano se limitara a fazer uma referência enigmática: “Em 24 de julho”, Truman escreveu em suas memórias, “mencionei casualmente a Stálin que tínhamos uma nova arma de força destrutiva incomum. O premiê russo não demonstrou nenhum interesse especial. Limitou-se a dizer que estava contente em ouvir aquilo e esperava que fizéssemos ‘bom uso dela contra os japoneses’”. Isso estava muito longe das expectativas de Oppenheimer. Como escreveu depois a historiadora Alice Kimball Smith, “o que de fato ocorreu em Potsdam não passou de uma caricatura grotesca”.
Em 6 de agosto de 1945, exatamente às 8h14 da manhã, um bombardeiro B-29, o Enola Gay, assim batizado em homenagem à mãe do piloto Paul Tibbets, soltou uma bomba de urânio com deflagração do tipo “cano de canhão”, não testada, sobre Hiroshima. John Manley [físico americano que trabalhou com Oppenheimer na Universidade de Berkeley antes de se juntar ao Projeto Manhattan] estava em Washington naquele dia, aguardando ansiosamente por notícias. Oppenheimer o enviara à capital com uma missão: informá-lo sobre o lançamento da bomba. Após um atraso de cinco horas nas comunicações com a aeronave, Manley, por fim, recebeu um teletipo do capitão Parsons — o oficial encarregado de “armar a bomba” no Enola Gay — o qual dizia que “os efeitos visíveis eram maiores do que os do teste no Novo México”. Contudo, no momento em que Manley ia telefonar para Oppenheimer em Los Alamos, Groves o impediu. Ninguém deveria difundir qualquer informação sobre o lançamento da bomba atômica até que o próprio presidente o anunciasse. Frustrado, Manley saiu para um passeio à meia-noite no Lafayette Park, em frente à Casa Branca. Perto do amanhecer, disseram-lhe que Truman faria um anúncio às onze da manhã. Assim que o anúncio foi liberado para veiculação em cadeia nacional de rádio, Manley finalmente conseguiu falar com Oppenheimer. Embora eles tivessem combinado de usar um código predefinido para transmitir a notícia por telefone, as primeiras palavras de Oppie foram: “Por que diabos você acha que o mandei a Washington?”
Naquele mesmo dia, às duas da tarde, o general Groves, em Washington, ligou para Oppenheimer. Estava num estado de espírito congratulatório. “Estou orgulhoso de você e de todo o seu pessoal”, disse.
“Deu tudo certo?”, perguntou Oppie.
“Ao que parece houve um enorme estrondo.”
“Estão todos se sentindo razoavelmente bem em relação a isso”, disse Oppie, “e estendo ao senhor as minhas mais sinceras congratulações. Foi um longo caminho”.
“Sim”, respondeu Groves, “foi um longo caminho, e acho que uma das coisas mais sábias que já fiz na vida foi escolhê-lo como diretor de Los Alamos”.
“Bem”, disse Oppenheimer timidamente, “tenho minhas dúvidas, general”.
Groves retrucou: “Bem, você sabe que nunca, em nenhum momento, concordei com essas dúvidas”.
Nesse mesmo dia, a notícia foi anunciada pelo sistema público de avisos em Los Alamos: “Atenção, por favor. Atenção, por favor. Uma de nossas unidades acabou de lançar a bomba com sucesso sobre o Japão.” Frank Oppenheimer estava parado no corredor onde ficava o escritório do irmão quando ouviu a notícia. A primeira reação foi dizer “Graças a Deus não foi um fiasco”. Passados poucos segundos, conforme recordou, “a gente de repente percebeu o horror de todas as pessoas que haviam sido mortas”.
Um soldado, Ed Doty, descreveu a cena aos pais numa carta escrita no dia seguinte: “Estas últimas 24 horas foram muito excitantes. Todo mundo ficou ligado numa frequência mais alta do que qualquer outra coisa que já vi antes. […] As pessoas saíam para os corredores do prédio e ficavam circulando como uma multidão na Times Square de Nova York durante o Ano-Novo. Estavam todos à procura de um rádio.”
Naquela noite, uma multidão se reuniu num dos auditórios. Um dos físicos mais jovens do projeto, Sam Cohen, recordou-se da audiência aplaudindo e batendo os pés, à espera de Oppenheimer. Todos esperavam que ele surgisse no palco por uma das laterais, como de hábito. Ele, contudo, optou por fazer uma entrada mais dramática pelos fundos, abrindo caminho pelo corredor central. Uma vez no palco, segundo Cohen, juntou as mãos e ergueu-as sobre a cabeça, como um lutador vitorioso. Em seguida, disse à multidão que era “cedo demais para determinar quais tinham sido os resultados da bomba, mas que não havia dúvida de que os japoneses não tinham gostado”. A multidão o aplaudiu ainda mais e então rugiu sua aprovação quando Oppie disse estar “orgulhoso” do que eles haviam conseguido. Pelo relato de Cohen, “a única coisa que Oppenheimer lamentava era não termos desenvolvido a bomba a tempo de usá-la contra os alemães. Essas palavras praticamente fizeram voar o telhado”.
Era como se Oppie tivesse sido chamado para encenar um papel, um papel ao qual de modo algum se adequava. Não se espera que cientistas sejam generais conquistadores. De todo modo, ele era humano, e deve ter sentido a emoção do sucesso: tinha conquistado um metafórico anel de ouro e o agitava, feliz, no alto. Além disso, a audiência esperava que ele aparecesse corado e triunfante. Mas foi um momento breve.
Para aqueles que pouco tempo antes tinham visto e sentido a luz ofuscante e o vento estrondoso da explosão em Alamogordo, as notícias do Pacífico chegaram como uma espécie de anticlímax. Era quase como se não fossem mais capazes de se assombrar. Outros apenas ficaram sérios. Phil Morrison [Philip Morrison, físico americano conhecido por seu trabalho com física nuclear e mecânica quântica, também trabalhou no Projeto Manhattan] ouviu a notícia em Tintian, onde ajudara a preparar a bomba e carregá-la a bordo do Enola Gay. “Naquela noite, nós de Los Alamos fizemos uma festa”, recordou Morrison. “Estávamos em guerra e havíamos triunfado, tínhamos o direito de comemorar. Eu me lembro, porém, de ter ficado sentado […] na ponta de um catre […] me perguntando como seria estar do outro lado, o que estaria se passando em Hiroshima naquela noite.”
Alice Kimball Smith tempos depois insistiu que “não há dúvida de que ninguém [em Los Alamos] celebrou Hiroshima”, mas então admitiu que “algumas pessoas” tentaram organizar uma festa nos alojamentos masculinos. A festa virou um “memorável fiasco. A maioria das pessoas não foi e as poucas que compareceram, deram uma passada rápida”. Smith, é bom deixar claro, estava se referindo apenas aos cientistas, que parecem ter tido uma reação sem dúvida diferente — e silenciosa — daquela dos homens alistados no Exército. Doty escreveu aos pais: “Houve um monte de festas. Fui convidado para três, mas só consegui ir a uma […] que durou até as três da manhã.” Ele disse ainda que as pessoas estavam “felizes, muito felizes. Ouvimos a rádio, dançamos, ouvimos a rádio de novo […] e ríamos, ríamos daquilo tudo que diziam”. Oppenheimer compareceu a uma festa, mas, ao sair, viu um físico aflito vomitando as tripas no mato. A visão o fez perceber que uma prestação de contas havia começado.
Kai Bird e Martin J. Sherwin são autores do livro 'Oppenheimer — O triunfo e tragédia do Prometeu americano, que deu origem ao filme de Christopher Nolan. Este trecho foi cedido gentilmente pela Editora Intrínseca, que publicou a obra no Brasil.