E a série “Game of Thrones” chegou a seu capítulo final neste último domingo sob uma saraivada de críticas - ora pertinentes, ora exageradas - e terminou sua jornada de forma, se não brilhante, ao menos entregando o que de mais importante era necessário para o encerramento do caminho de seus heróis, aqueles "órfãos, bastardos e aleijados" que sempre foram o arcabouço moral da história: um final que nos brinda com uma reflexão sobre a ganância, sobre a corrupção e sobre como resistir a tais venenos da alma.
Bater aqui na tecla dos desacertos dos produtores seria chover no molhado a esta altura. Muito já foi dito e muito ainda será dito sobre isso (e nada representa melhor essas falhas do que o vacilo com o copo de café de certa empresa aparecendo em Winterfell!), mas o que nos interessa aqui é aquilo que deve permanecer: a história de uma família que, diante do desordenamento do mundo, encontrou forças para sobreviver, para superar os seus inimigos e reencontrar a paz e a justiça. Ou algo próximo disso.
Afinal, antes de tudo isso, muito aconteceu.
Vimos os personagens lutarem contra o esquecimento e contra a morte, diante de um exército que buscava apagar definitivamente a história humana - personagens que entendiam que o fim diante de tais forças seria a derrota da Humanidade. Vimos como o Poder é tentador, corruptor e enlouquece até mesmo os melhores.
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Vimos a ascensão e a tragédia de Daenerys Targaryen, que, em sua obsessão pelo Trono de Ferro e na construção de um novo mundo, rompe todas as correntes morais e, por meio de fogo e sangue, forja sua utopia totalitária – e, aqui, os produtores conseguiram fazer dela metáfora de todos os totalitarismos e ideologias modernos, seja por meio do cenário, onde vemos referências diretas à obra de Leni Riefensthal e seus documentários/propagandas do partido nazista, assim como as foices nas mãos do exército Dothraki remete aos revolucionários comunistas e, por fim, a assustadora cena em que vemos a Rainha dos Dragões surgir com asas demoníacas, deixando clara sua natureza (cena que remete diretamente ao Fausto de Murnau), seja por meio de suas palavras aparentemente justas, mas que não escondem o desejo de se livrar daqueles que não aceitam ou se encaixam em seu mundo perfeito. Daenerys, em sua obsessão por construir um novo mundo, cumpre exatamente a sina apontada por Leo Strauss sobre o tirano: “...o tirano é compelido a libertar os escravos, mas desejoso de escravizar os livres”.
Vimos Tyrion Lannister passar de um jovem beberrão a um homem trágico que, ao buscar sua redenção por meio da promessa de um reino mais justo, vê esta promessa reduzida a cinzas, literalmente, e, ao caminhar pelos escombros e corpos de Porto Real, enxergamos em seu rosto a decepção consigo mesmo, decepção esta que irá se transformar em dor no momento em que encontra os corpos de seus irmãos - Jaime e Cersei, unidos finalmente na morte - nas ruínas da Torre Vermelha.
Vimos a morte de personagens queridos (alguns nem tanto) que, em suas loucuras e misérias, paixões e sacrifícios, encontram talvez alguma paz na morte, e o belo detalhe aqui é que essa paz se dá pelas mãos daqueles que sobraram para contar a história, simbolizada em uma das cenas mais belas de toda a série, aquela em que Sor Brienne de Tarth, agora membro da guarda real, escreve os feitos de Sor Jaime Lannister no Livro dos Irmãos.
Vidas e reinos retomam o prumo
Um dos pontos mais interessantes do episódio foi o destino da Rainha do Norte: a independência do Norte e a ascensão da Rainha Sansa Stark foram uma recompensa justa pelos sacrifícios a que se submeteram os Nortenhos na Batalha contra o exército do Rei da Noite.
Arya Stark, a menina que não nasceu para ser uma lady, muito menos uma rainha, mas que também não é uma assassina sem moral, também teve um belo destino. Redescobrir seu amor pela vida por meio da exploração de novos mundos é uma das melhores sacadas dos produtores.
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Bran, o Quebrado, ter sido escolhido Rei pelo conselho – que se reuniu afinal por causa das cartas do Varys – é um ponto importante, pois temos aqui a união do poder espiritual com o poder político, e ecoa também a própria ideia platônica do Rei-filósofo, que irá conduzir o reino com prudência e sabedoria. Para tanto, será importante confiar no “pequeno conselho”, presidido por Tyrion Lannister.
Fazem parte do conselho alguns dos nossos personagens preferidos: Sor Brienne of Tarth, que é agora a comandante da Guarda Real; Sor Davos, como o Mestre dos Navios – uma boa escolha, dada a sua perícia em contrabando/navegação –, Sor Bronn da Água Negra, como o Mestre da Moeda, afinal, eis um especialista em trapaças, roubos e extorsão; e, por fim, Samwell Tarly como novo arquimestre: em suas mãos está o livro que conta "as Crônicas de Gelo e Fogo". Ainda que com algumas vagas em aberto, o destino do reino parece em boas mãos.
No centro de tudo isso, o herói que não queria sê-lo
E há algo que poucos parecem lembrar: temos aqui uma saga que, desde seu início, buscou desconstruir nossas expectativas sobre as narrativas fantásticas. Nela, os heróis morriam ou eram falhos e mesquinhos, e nada era garantido. Portanto, se surpreender com os equívocos de Jon Snow, suas fraquezas e dúvidas é não ter prestado muita atenção à história.
Mais importante do que suas idiossincrasias era entender aquele aspecto de sua personalidade que sempre buscou acreditar que as pessoas podiam ser melhores do que realmente eram. Seu papel sempre foi o de tentar contemporizar e proteger o reino dos homens – especialmente deles mesmos. Sua esperança e boa-vontade o fizeram acreditar nas promessas de Daenerys. E, sim, ele fica cego para o horror, mas não é aqui algo característico de todos nós, este fascínio pelos poderosos?
Basta olhar para aqueles que seguem políticos bem menos encantadores do que a mãe dos dragões para ver que não são poucos os que se quedam hipnotizados (ou acovardados) diante do carisma destes messias. Ao fim, seu involuntário destino é cumprido: será ele o responsável titubeante a trazer o equilíbrio ao reino, primeiro ao ser o “assassino da rainha” – é em suas mãos que Daenerys deve morrer – e, principalmente, com seu exílio, por meio do qual será a paz conquistada e a ordem estabelecida no reino de Westeros. Aqui ele serve como o bode expiatório ideal. Sendo, afinal, o último herdeiro legítimo do Trono de Ferro, seu exílio tem peso simbólico – e real – único. Fosse ele apenas um bastardo exilado, seu destino não teria tanta importância. E lembrem-se aqui que seu exílio é aquele que havia sido prometido a Ned Stark quando preso nos calabouços da Torre Vermelha e cuja morte injusta é o que precipitou o reino no caos.
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Tudo se iniciou além da muralha. As primeiras cenas da série revelavam homens da Patrulha da Noite em busca dos Selvagens nas inóspitas terras do Norte. Ao terminarmos a série, temos Snow a adentrar aquelas terras, cumprindo assim seu destino final.
O embate final contra o Poder
E, se tudo sempre girou em torno do Trono de Ferro que, assim como o Anel de Sauron, é um símbolo de ganância, corrupção e poder, não é à toa que no término da jornada de nossos personagens tenhamos a destruição do trono. Em uma cena que muito nos remete ao momento de destruição do anel, vemos o trono ser derretido por Drogon. Ambos os artefatos de poder são afinal destruídos pelas próprias forças que os criaram.
Entre acertos e desacertos, considero que esta temporada entregou ao menos dois excelentes episódios – “A Knight of the Seven Kingdoms” e “The Long Night”. O primeiro por seu clima intimista e nostálgico, que revelou em sua beleza contida o carinho dos autores para com os personagens. O segundo pelo seu radicalismo estético experimental, que terminou por chocar o público mais do que a morte de muitos personagens. O radicalismo visual deste episódio será ainda louvado com o tempo. Afinal, não é sempre que vivenciamos a realidade caótica de uma batalha encarniçada contra os mortos no conforto de nosso lar.
O Reino de Westeros encontra-se, no fim, sob o domínio de novos lordes e ladies. E se, ao longo de todo este tempo, debatemos a natureza do poder e da política, os produtores mostram que nada é mais importante do que as “pequenas reuniões de condomínio” para garantir o sucesso de um governo. Se reagimos cinicamente a essa cena – e a outras em que é exaltada a misericórdia e a prudência, a honra e a esperança – será que não nos tornamos mais maquiavélicos e cruéis do que os próprios criadores destas Crônicas?
Foi uma bela jornada.
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