Aos 107 anos, a norte-americana Viola Fletcher carrega a vívida lembrança da noite de 31 de maio de 1921, quando o bairro de Greenwood, onde morava, foi destruído no que ficou conhecido como o Massacre de Tulsa. Lar da população negra da cidade, o próspero e vibrante bairro apelidado de Wall Street Negra foi reduzido a cinzas após o ataque que deixou 300 negros mortos e 10 mil desabrigados há 100 anos.
“Eu ainda vejo homens negros sendo baleados, corpos negros caídos na rua. Eu ainda sinto o cheiro da fumaça e vejo o fogo. Eu ainda vejo comércios de negros sendo queimados. Eu ainda ouço os aviões sobrevoando. Eu ouço os gritos. Eu revivo o massacre todos os dias”, disse a sobrevivente em maio deste ano perante uma comissão do Congresso que estuda possíveis reparações às vítimas do ataque.
A carnificina na cidade de Tulsa, no estado de Oklahoma, durou dois dias e seu estopim foi um encontro infeliz entre dois jovens: o engraxate negro Dick Rowland, de 19 anos, e a ascensorista branca Sarah Page, de 17 anos. No dia 30 de maio, Rowland foi até o Edifício Drexel para usar o banheiro segregado para negros que ficava no último andar. Até hoje não se sabe exatamente o que aconteceu entre os dois no elevador.
Alguns dizem que ele pisou no pé dela ou tropeçou e se apoiou em Page para não cair no chão. O que é certo é que ela gritou e ele saiu correndo assim que o elevador abriu. No dia seguinte, um jornal cujos proprietários eram brancos publicou um artigo incitando a população a linchar o engraxate, acusando-o de tentativa de estupro — nesta época eram comuns falsas acusações contra os negros.
A história se espalhou rapidamente e o resultado foi o ataque que levou à completa destruição de 35 quarteirões do reduto negro da cidade. Durante dois dias, um grupo de homens brancos armados saqueou e incendiou mais de mil residências e 108 negócios de negros, como consultórios médicos, mercados, restaurantes, cinemas, lojas de roupas, além de igrejas, jornais, escolas e centenas de casas. Pequenos aviões foram usados para jogar explosivos nas ruas do bairro reduzido a ruínas e cinzas. Testemunhas contaram ter visto corpos sendo jogados em covas coletivas e até mesmo nas águas do rio Arkansas.
Trauma racial
O assunto permaneceu um tabu por muitos anos até que, em 2001, uma comissão foi formada para realizar a primeira investigação oficial do caso. Além de jogar luz sobre um dos piores episódios de violência racial nos EUA, o relatório final indicou os locais das possíveis covas coletivas das vítimas do massacre. “O que aconteceu com essas pessoas importa. Precisamos descobrir a verdade até onde for possível”, diz o historiador Hannibal B. Johnson, autor do livro 'Black Wall Street 100: An American City Grapples with its Historical Racial Trauma' (Black Wall Street 100: Uma cidade americana luta com seu histórico trauma racial, em tradução livre).
O prejuízo total causado pelo ataque nunca foi calculado, mas a cidade recebeu ações de reparações por perdas de propriedade que somaram US$ 1,8 milhão em junho de 1921 (US$ 29 milhões em valores atuais), de acordo com o relatório da comissão.
Em 2018, o prefeito de Tulsa decidiu abrir uma investigação sobre as valas comuns. Até agora, foram exumados e estão sendo analisados os restos mortais de 19 indivíduos. “Essas pessoas eram amadas, eram pessoas reais, com vidas reais. As famílias merecem saber o que aconteceu com aqueles que desapareceram”, diz a historiadora Michelle Place, diretora do Museu e Sociedade Histórica de Tulsa, sobre a importância da investigação.
Wall Street Negra
Na época do massacre, Greenwood era a comunidade negra mais próspera do país. A posse da terra por negros e o capital que circulava pela rica cidade de Tulsa são os principais fatores que fizeram do bairro um caso único nos Estados Unidos. Para entender como isso aconteceu, é preciso voltar às origens de Oklahoma.
A partir de 1831, as tribos indígenas da região sul dos Estados Unidos foram obrigadas a se mudarem para o chamado de Território Indígena, uma área delimitada pelo governo centro-oeste do país que deu origem ao estado de Oklahoma. Os nativos realocados levaram consigo os milhares de escravos negros que possuíam.
Após a Guerra Civil (1861-1865), os escravos foram libertados e os territórios tribais coletivos, repartidos em lotes particulares entregues inclusive para ex-escravos, conforme a Lei Dawes, de 1887.
“Isso significava que a terra poderia ser comprada e vendida. Ex-escravos começaram a vender suas terras e a noção de Oklahoma como uma terra de possibilidades começou a se espalhar pelo país”, explica Place. “Eles viam ali a possibilidade de manter suas famílias unidas, conquistar educação formal e controlar seus próprios destinos”.
Foi então que um visionário homem de negócios nascido no estado do Alabama e criado em Arkansas viu a possibilidade de enriquecimento e de uma vida melhor para os negros. Considerado um dos fundadores de Greenwood, O.W. Gurley mudou-se para Oklahoma em 1889 e comprou um vasto lote de terras em Tulsa, transformando-o em terrenos menores que vendeu para outros negros.
Gurley tornou-se um dos homens mais ricos da região na época em que Tulsa vivia o boom econômico causado pela descoberta de petróleo em 1905. Conforme a cidade que chegou a ser conhecida como a Capital Mundial do Petróleo enriquecia, aumentava a demanda por mão-de-obra.
Além da posse da terra, Johnson destaca que os negros encontraram em Tulsa muita oportunidade de trabalho como empregadas domésticas, engraxates, garçons, motoristas, cozinheiros, barbeiros, babás e jardineiros para os novos ricos.
Esses trabalhadores tinham dinheiro e precisavam de lugares para gastá-lo. Em um contexto de segregação racial em que negros não podiam frequentar os mesmos lugares que os brancos, toda uma estrutura de serviços formou-se em Greenwood para atendê-los.
“Não é possível calcular quanto dinheiro circulava por ali, mas é como se o dólar ficasse preso na comunidade”, explica Johnson. “Uma pessoa que trabalhava na cidade e voltava para a comunidade gastava seu dinheiro ali. O dinheiro circulava internamente e isso permitiu que Greenwood enriquecesse”, completa.
Separado geograficamente do restante da cidade pelos trilhos da linha de trem, o distrito tinha suas próprias escolas, agência de correio, banco, hospital e serviço de transporte. Os negros que trabalhavam para os brancos gastavam seus salários no próprio bairro, que contava com salões de beleza, lojas, restaurantes, bares, cinemas e mercearias, além de consultórios médicos, advogados e igrejas.
“Com a segregação, a população negra não podia gastar seu dinheiro em outro lugar. Eles podiam ganhar dinheiro fora do distrito, mas só podiam gastá-lo lá”, reforça Place.
E como todos os donos desses negócios eram negros, Booker T. Washington, um ex-escravo que virou escritor e era uma liderança afro-americana na época, apelidou o local de Wall Street Negra, em referência ao centro financeiro de Nova York.
Reconstrução
Muitas pessoas abandonaram Tulsa após o ataque de 1921. Mas aqueles que ficaram se empenharam em reconstruir Greenwood imediatamente. Em 1925, a reunião anual da Liga Nacional de Negócios de Negros, fundada por Booker T. Washington, aconteceu no bairro e, em 1942, mais de 200 negócios de negros estavam ativos ali. Foi nos anos 40 e 50 que Greenwood atingiu seu ápice econômico.
Para Johnson, a resiliência da população é um dos maiores legados de Greenwood. Ele, que é um grande defensor da propagação do que chama de ‘mindset da Wall Street Negra’, reforça o exemplo de superação da comunidade. “Nós fizemos e podemos fazer de novo”, diz.
“Quando o pior aconteceu, aquelas pessoas de alguma forma encontraram a coragem para seguir em frente, mesmo havendo tantos obstáculos. Isso demonstra muita coragem e trabalho duro de pessoas que tiveram sonhos grandes. Para mim, essa é a grande lição de Greenwood”, completa Place.