Fãs desavisados de animações antigas que zapearam o recém-lançado streaming da Disney podem ter se surpreendido com um acréscimo nas descrições de alguns dos longa-metragens mais queridos do estúdio.
"Apaixone-se por este clássico da Disney. Experimente a aventura de Lady, uma cocker spaniel mimada, e Vagabundo, um viralata com um coração de ouro. Este programa está disponível em sua versão original. Pode contar representações culturais desatualizadas", diz a legenda de “A Dama e o Vagabundo”, por exemplo.
Ao apertar o play na aclamada animação de 1955, o espectador apresentado à seguinte mensagem:
“Este programa inclui representações negativas e/ou maus tratos de pessoas ou culturas. Esses estereótipos eram incorretos na época e continuam sendo incorretos hoje em dia. Em vez de remover esses conteúdos, queremos reconhecer o impacto que tiveram, aprender com a situação e despertar conversas para promover um futuro mais inclusivo juntos”.
Em seguida, a Disney direciona os interessados a um link no qual justifica a presença dos avisos que antecedem este e outros desenhos disponíveis no aplicativo.
"Ver alguém parecido com você na tela tem um poder incrível", diz a atriz Geena Davis, fundadora do Instituto Geena Davis sobre Gênero na Mídia, uma ONG que pesquisa a representação feminina na mídia.
"Que mensagem nós estamos enviando às crianças quando as personagens são unidimensionais, estereotipados, de importância secundária, hiper-sexualizados ou, simplesmente, não estão lá?", pergunta a militante, cuja ONG é listada como uma das consultorias ouvidas pela Disney na elaboração dos avisos “politicamente corretos”.
A presença dos avisos é uma medida que não mutila os filmes nem coloca em risco o acesso a obras clássicas, como ocorreu por um breve período com “E o Vento Levou” (1939), retirado do catálogo da HBO no auge dos protestos antirracistas nos Estados Unidos. Todavia, é necessário não exagerar no remédio para que a revisão não descambe em uma “caça às bruxas”.
Acusado de racismo desde as primeiras décadas após seu lançamento, o filme “A Canção do Sul” (1946), por exemplo, sequer mereceu espaço no catálogo. Há anos a obra é considerada parte do “passado sombrio da Disney”, apesar de ser um ícone do imaginário americano.
Por outro lado, clássicos como “A Branca de Neve” (1934) e “A Bela Adormecida” (1959) frequentemente são alvo de críticas anacrônicas a ponto de ter as cenas de beijo (nas quais as protagonistas são acordadas por seus respectivos príncipes) classificadas como abuso sexual. Dois retratos de um novo macarthismo cultural que, a despeito das “boas intenções”, acaba por apagar a história e a reduzir a lentes temporais o sentido da arte.
Veja, abaixo, quais são os desenhos marcados com o selo; e os motivos que estão por trás deles.
Dumbo
Ano: 1941
A história do elefantinho voador recebeu o aviso por conta da cena na qual um grupo de corvos caçoa do protagonista. Ocorre que o líder do bando não apenas de chama Jim Crow - o apelido dado às leis de segregação racial no sul dos Estados Unidos - como, segundo a própria Disney, o número musical exibido pelos animais presta homenagem aos antigos menestréis racistas.
“Artistas brancos com rostos enegrecidos e roupas esfarrapadas imitavam e ridicularizavam africanos escravizados nas plantações do sul. (...) Em ‘The Song of the Roustabouts’, trabalhadores negros sem rosto labutam com letras ofensivas como ‘Quando recebemos nosso pagamento, jogamos nosso dinheiro fora’”, explica a empresa, no site oficial.
Você já foi à Bahia?
Ano: 1944
Não há uma explicação oficial da Disney sobre o caso, mas acredita-se que o selo no desenho protagonizado pela personagem Zé Carioca, uma homenagem do próprio Walt Disney ao Brasil, seja por conta da representação do país como uma grande floresta e do povo carioca como festeiro, folgado e preguiçoso.
Peter Pan
Ano: 1953
Segundo a Disney, a cena na qual Peter Pan e os Meninos Perdidos interagem com os índios da Terra do Nunca retrata os povos indígenas “de uma forma estereotipada que não reflete nem sua diversidade nem suas tradições culturais autênticas”.
O filme mostra estes povos falando em uma linguagem ininteligível e repetidamente se refere a eles como ‘peles vermelhas’, um termo considerado ofensivo. Há ainda a acusação de “apropriação cultural” - endossada pela Disney - por conta da cena em que Peter e os Meninos dançam com os índios usando cocares e outros acessórios exagerados em uma forma de zombaria.
A Dama e o Vagabundo
Ano: 1955
A Disney não se pronunciou oficialmente o caso, mas sabe-se que o problema está nas gatas siamesas, as vilãs que chegam a cantar uma canção tipicamente oriental, compreendida como uma representação estereotipada das culturas asiáticas.
Mogli
Ano: 1968
Sem explicação oficial, o desenho do menino-lobo é alvo de críticas por conta da personagem King Louie, um orangotango preguiçoso que canta jazz e seria, portanto, uma caricatura racista dos afro-americanos. As problematizações recaem até mesmo sobre a canção “I Wanna Be Like You” (Eu quero ser como você), interpretada como um desejo de Louie de pertencer a outra raça.
Aristogatas
Ano: 1970
Sobre este segundo aviso envolvendo gatos siameses a Disney forneceu a seguinte justificativa: “o gato é representado como uma caricatura racista de povos do Leste Asiático com traços estereotipados exagerados, como olhos puxados e dentes salientes. Ele canta em um inglês com sotaque fraco dublado por um ator branco e toca piano com pauzinhos”.
Segundo a empresa, “esse retrato reforça o estereótipo do ‘estrangeiro perpétuo’”, além das canções do filme que zombam da língua e da cultura chinesa em trechos como "Xangai, Hong Kong, Egg Foo Young. Fortune cookie always wrong" (Xangai, Hong Kong, Fun Yung Hai [um prato chinês]. Biscoito da sorte sempre errado”, em tradução livre).
Aladdin
Ano: 1992
Sem explicações oficiais, Aladdin é criticado desde seu lançamento por causa da cena de abertura, embalada pela canção “A noite na Arábia”. A primeira versão da letra em inglês atribuía ao ambiente o adjetivo de “bárbaro”, o que levou a uma discreta alteração nas primeiras remasterizações.
Entretanto, a crítica à representação do povo árabe - que, em alguns momentos, é retratado por personagens violentas e pouco instruídas - sobreviveu.