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Prestes a assumir um inédito terceiro mandato como líder do Partido Comunista Chinês (PCCh), Xi Jinping se prepara para enfrentar uma grave crise demográfica em seus próximos cinco anos à frente da presidência da China. Segundo a previsão de demógrafos, o país mais populoso do mundo deve começar a encolher em 2022, chegando ao fim deste século com pouco mais que a metade da população atual. Embora Xi venha adotando medidas de incentivo à natalidade ao longo da última década, os resultados não têm sido satisfatórios, principalmente após a política Covid Zero, que desencorajou os mais jovens a casar e ter filhos. O desemprego, a crise imobiliária e o envelhecimento da população também estão entre os fatores que atrapalham a eficácia das medidas de estimulo à fertilidade de Pequim.
Atualmente com 1,4 bilhão de habitantes (algo próximo de 20% da população mundial), a China deve chegar a 2100 com 800 milhões de pessoas. No ano passado, o país bateu seu menor nível de nascimentos desde a fundação da República Popular da China, em 1949. Foram 10,62 milhões de nascimentos em 2021, o que representa apenas 7,5 nascimentos por mil pessoas e uma taxa de natalidade de 1,16 filho por mulher.
A queda na natalidade representa uma ameaça à economia chinesa, à medida que comece a resultar na falta de força de trabalho no país. Isso porque a China mantém seus altos indicadores econômicos com base em postos de trabalho análogos à escravidão, estratégia que demanda a existência de um grande número de trabalhadores.
Resultado de pelo menos três décadas de uma política do filho único – instituída no fim dos anos 1970 – a crise populacional, portanto, preocupa e parece estar longe de ter uma solução. Na tentativa de reverter essa tendência, em 2015, o PCCh passou a permitir dois filhos por casal. No ano passado, três filhos começaram a ser admitidos, e hoje o limite não existe mais. O governo também tem apostado no fechamento de clínicas de aborto e na restrição do acesso para fins não médicos. De acordo com especialistas, é possível que as autoridades, inclusive, tomem medidas mais drásticas para limitar o acesso de chinesas ao aborto nos próximos anos.
Até 2013, a política do filho único resultou em, pelo menos, 336 milhões de abortos obrigatórios na China e 196 milhões de esterilizações. Se em 1991, a China realizava 14 milhões de abortos por ano, em 2020, o número beirava os 9 milhões. Já os centros de planejamento familiar (onde são realizados abortos, esterilizações e inserção de dispositivos intrauterinos) chegavam a 2.810 há dois anos, o que representa menos de 10% desse tipo de estabelecimento, em comparação ao que o país tinha em 2014.
Apesar disso, as décadas a fio de abortos parecem ter deixado marcas mais profundas na fertilidade chinesa. Antropóloga da Universidade de Copenhague, Ayo Wahlberg pesquisou sobre a fertilidade na China e afirma que que abortos múltiplos podem gerar consequências para os corpos das mulheres, como a infertilidade. “Para mim, o que é incrível é que depois de tantos anos de restrições [a nascimentos], talvez as clínicas de fertilização se tornem mais importantes que as de aborto [na China]”, considerou Wahlberg, em entrevista ao jornal Wall Street Journal.
A publicação também cita um estudo da Universidade de Pequim que aponta a infertilidade como um problema que afeta cerca de 18% dos casais chineses em idade reprodutiva, enquanto a média global é de 15%.
Chineses têm medo de ter mais filhos
Crítico da política do filho único, Yi Fuxian, que é pesquisador de obstetrícia e ginecologia da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, estima que os bloqueios da pandemia e o consequente aumento do desemprego (que já chega a 20% nas cidades) contribuirão para reduzir em um milhão o número de nascimentos na China em 2021 e 2022. “A política de zero Covid reduziu muito a vontade das pessoas de ter filhos”, disse Yi, ao jornal britânico Financial Times.
A estabilidade populacional de um país depende que, em média, cada casal tenha 2,1 filhos. Mas os pais chineses não parecem se animar a ir além de um herdeiro. Com um filho de três anos, uma chinesa de 34 anos ouvida pelo jornal inglês contou que os preços de imóveis e os altos custos de educação são primordiais para que ela e o marido – um cabeleireiro que teve o salário reduzido após o lockdown – não pretendam ter mais filhos. “A despesa de criar um filho é como um poço sem fundo. Uma criança é suficiente. Não temos dinheiro ou energia para gerar um segundo”, afirmou.
O think tank chinês YuWa Population Research estima que o custo total médio para criar uma criança no país é de quase sete vezes o PIB per capita, enquanto nos EUA esse montante é de quatro vezes.
Nem mesmo os supostos incentivos governamentais à natalidade, como extensão da licença-maternidade e criação de novos subsídios para os pais, incluindo auxílio-creche, redução de jornada de trabalho e facilidades para aquisição da casa própria, têm feito a população mudar de ideia. Isso porque os chineses sequer acreditam nas promessas do PCCh.
“Como 'na boca do mentiroso, a verdade se torna duvidosa', o flagrante desrespeito a certos padrões de bem-estar no mundo empresarial chinês penetrou em alguns dos jovens - nos relatórios da ONG China Labor Watch, estão bem documentadas as jornadas de trabalho excessivas, a omissão de licenças de maternidade, etc.–, e por isso eles não acreditam que terão uma rede de apoio sólida para lidar com os problemas econômicos e de tempo que a parentalidade acarreta”, analisa Luis Luque, editor da revista conservadora Aceprensa.
Um estudo publicado em agosto por um grupo de pesquisadores de universidades chinesas ouviu 6.680 universitários de ambos os sexos, com idades entre 18 e 28 anos. A principal objeção à procriação apontada por eles foi o medo de não conseguir conciliar vida familiar e trabalho (queixa de mais de 40% dos ouvidos). Em seguida, aparecem preocupação financeira, medo do parto, fragilidade da saúde do bebê e receio de complicações na gestação.
Outro fator cultural a ser considerado é a maneira como os chineses criaram seus filhos únicos, explica a jornalista chinesa Xinran, em seu livro 'Compre-me o céu: A incrível verdade sobre as gerações de filhos únicos da China' (Companhia das Letras). Em suas pesquisas, ela teve contato próximo com dez conterrâneos nascidos entre 1979 e 1984, o que a levou a desenhar a hipótese de que a política do filho único foi catastrófica do ponto de vista emocional para as famílias chineses. Um de seus entrevistados era um rapaz que, mesmo após ter terminado a faculdade, não sabia fazer coisas simples como cozinhar (considerando a cozinha um ambiente perigoso, por ter facas e fogo), desfazer as malas e organizar o quarto (algo que a mãe sempre fez para ele) ou manter relações pessoais.
"A primeira geração de filhos únicos da China, que eu estivera acompanhando por dez anos, atingiu a idade de casar e de ter filhos em 2002. Agora, mais de 10 milhões de famílias dessa geração estão criando seus próprios filhos. Isso deu lugar a uma 'idade de pais-filhos únicos' inédita na história chinesa", conta Xinran. De acordo com a autora, acostumados a ser o centro das atenções, eles não têm interesse em ter filhos e não sabem lidar com as responsabilidades de uma vida adulta.
Tensões socioeconômicas
Além da questão cultural e econômica, Xi Jinping também precisará lidar com uma consequência matemática causada pelo próprio partido: não existem indivíduos em idade fértil suficiente para reverter a tendência de queda populacional. Os potenciais pais – ou seja, pessoas entre 20 e 35 anos – nasceram de 1987 a 2002, quando vigorava a política do filho único. E pior: há menos mulheres em idade reprodutiva hoje do que em 2010 (a estimativa é que atualmente sejam 332 milhões de mulheres entre 15 e 49 anos no país).
O desequilíbrio foi causado pelas antigas restrições impostas pelo governo, que permitia selecionar os abortos por sexo, priorizando nascimentos de meninos. “Sob a 'política do filho único' era 'compreensível' que os casais, obrigados a ter apenas um filho, priorizassem o homem, pois, além do fato de que muitas outras possibilidades de ascensão social lhe seriam abertas, a tradição (principalmente nas áreas rurais, e até 2010 a maior parte da população vivia nessas áreas) significava que, uma vez casada, era a mulher que se mudava para a casa dos sogros ou para a sua vizinhança, e não o contrário. Com isso, a possibilidade de ficar sozinho na velhice era mais atenuada para os pais do homem", explica Luque.
Como consequência, a China tem de lidar com tensões socioeconômicas como uma única pessoa ser responsável por dois pais e quatro avós, em um país sem rede de segurança social significativa.
Outro efeito é o colapso do mercado imobiliário - setor que representa cerca de 30% do PIB nacional. “A bolha especulativa que está estourando foi inflada em parte por filhos solteiros, que superam significativamente as mulheres elegíveis porque a política do filho único envolvia abortos selecionados pelo sexo. Esses homens procuram apartamentos como oferta de casamento. Jornalistas estão relatando sobre noivados desmoronando à medida que apartamentos inacabados se acumulam e a esperança de casamento é frustrada”, conta Thérèse Shaheen, ex-presidente do Instituto Americano em Taiwan e especialista em questões econômicas da Ásia.
“Os planejadores centrais do governo, é claro, têm desempenhado seu papel inflando a economia com mais e mais gastos com infraestrutura e imóveis, não importa que as unidades em construção nunca sejam concluídas e ocupadas”, completa.
Genocídio demográfico
Apesar dos esforços para não perder população, a China não se opõe ao aborto em parte de seu território. De acordo com o Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, mulheres uigures (muçulmanas) e cazaques são obrigadas a abortar ou implantar contraceptivos intrauterinos na região autônoma de Xinjiang.
Enquanto em 2019 a taxa de natalidade na China caiu 4,2%, em Xinjiang ela foi 24% menor em relação ao ano anterior. Especialistas classificam as práticas chinesas na região como “genocídio demográfico”, embora a ONU tenha evitado a palavra genocídio em seu documento.