Num evento de arrecadação só com mulheres realizado em Toronto em 2013, um aspirante a político foi perguntado que país do mundo ele mais admirava. Usando uma camisa azul clara e um sorriso, o líder do Partido Liberal respondeu: a China Comunista.
“Admiro a China porque a ditadura simples deles está permitindo que a economia cresça rapidamente e que eles nos digam que precisamos investir em ecologia, precisamos investir em energia solar”, disse Justin Trudeau às mulheres. “Existe uma flexibilidade com a qual [o primeiro--ministro] Stephen Harper só sonha. Ter uma ditadura na qual você pode fazer o que quiser é interessante”.
Os comentários chamaram a atenção sobretudo de canadenses que conhecem o regime opressor chinês e que documentaram as violações aos direitos humanos naquele país. “Acho que ele não está bem informado”, disse o participante de uma mesa redonda à CBC.
Ainda assim, os comentários se revelaram como um obstáculo menor na carreira política de Trudeau. Em novembro de 2015, Trudeau se tornou o 23º. Primeiro-ministro do Canadá, sucedendo Harper.
Jogando lenha na fogueira
Os comentários de Trudeau merecem ser analisados porque ele próprio agora se vê em meio a uma controvérsia. Na segunda (14), Trudeau anunciou que usaria os raramente invocados poderes emergenciais para deter o Comboio da Liberdade, movimento originalmente criado contra os passaportes vacinais exigidos de caminhoneiros que cruzam a fronteira com os Estados Unidos e que se transformou num protesto mais amplo contra as restrições da Covid-19.
“Os bloqueios estão prejudicando a economia e pondo em risco a segurança pública”, disse Trudeau numa coletiva de imprensa. "Não podemos permitir e não permitiremos que atividades ilegais e perigosas continuem”.
Com o uso da Lei de Emergência — que, em 1988, substituiu a Lei de Medidas de Guerra — Trudeau pode impor a lei federal para ajudar os governos provinciais e para confiscar bens que sustentem o movimento.
“Estamos fazendo essas alterações porque sabemos que essas plataformas de arrecadação estão sendo usadas para apoiar bloqueios ilegais que estão prejudicando a economia canadense”, disse a ministra das Finanças Chrystia Freeland, que chegou a mencionar a palavra “terrorismo” em sua fala.
Trudeau também disse que pretende usar as forças federais para ajudar as províncias. “Apesar de todo o esforço, hoje está claro que as forças policiais têm dificuldades para impor a lei”, disse ele.
As ações do primeiro-ministro, contudo, geraram críticas de grupos de defesa das liberdades civis, que acusam a administração de promover ações antidemocráticas. “O governo federal não tem justificativa para usar a Lei de Emergência”, disse a Canadian Civil Liberties Association. “Essa lei exige motivos claros para ser usada. A lei permite que o governo contorne processos democráticos. Esses motivos não foram encontrados”.
De acordo com a Reuters, governadores de Quebec, Manitoba, Alberta e Saskatchewan também se colocaram contra o plano de Trudeau. “Não precisamos jogar ainda mais lenha na fogueira”, disse o governador de Quebec, François Legault.
O teste do poder
As ações de Trudeau são realmente perigosas. Como a história americana mostra, o limite entre os protestos pacíficos e a atividade criminal nem sempre é claro.
O Tea Party é lembrado com carinho como um acontecimento patriótico na história dos EUA, mas tive um professor na faculdade que disse que ele foi “um ato de terrorismo interno”, ideia não tão incomum. Os acontecimentos de 2020 também mostraram que protestos pacíficos podem se tornar rapidamente violentos (ou “na maior parte pacíficos”, um eufemismo contemporâneo para a violência).
Para muitos, infelizmente, a legitimidade de um protesto depende menos dos métodos usados e mais de quem defende as causas. Estou disposto a apostar que muitas pessoas hoje (corretamente) horrorizadas com as ações de Trudeau apoiaram pedidos para que o presidente Trump usasse as forças armadas em 2020. Por outro lado, imagino que muitos dos apoiadores atuais de Trudeau estejam entre os que (corretamente) se opunham à ideia de que as forças armadas dos EUA fossem usadas, em solo americano, para acabar com protestos civis.
O preocupante nas ações de Trudeau é que os protestos no Canadá são de fato pacíficos. Claro que é justo se perguntar se um bloqueio do tráfego é uma forma legítima de protesto, já que ele interfere no direito de outras pessoas. Mas é um exagero sugerir que isso seja equivalente à violência. Além do mais, o problema pode ser resolvido pelas autoridades locais sem o uso da Lei de Emergência.
Os acontecimentos no Canadá representam algo muito maior do que os caminhoneiros ou a economia canadense. Como apontava Martin Luther King Jr., os protestos pacíficos eram um dos poucos instrumentos que as pessoas sem podem têm à disposição para resistir às injustiças dos poderosos. Reagir a protestos pacíficos com mais força é ignorar a importante lição de King sobre a não-violência.
No caso de Trudeau, contudo, talvez não devêssemos ficar surpresos. Em 1989, o governo chinês enfrentou seu próprio “bloqueio” quando estudantes reunidos em Pequim tentaram impedir a entrada das forças militares na Praça da Paz Celestial. Ainda que os manifestantes fossem pacíficos, o Partido Comunista declarou lei marcial e empregou o Exército de Libertação Popular – munidos de rifles, armas automáticas e tanques.
Ninguém sabe ao certo quantos morreram no massacre. O governo chinês diz que foram 200 pessoas. Uma fonte do Reino Unido estima que esse número chegue a 10 mil. Deixando de lado as fatalidades, a maioria das pessoas se lembra de um jovem contendo uma coluna de tanques.
Justin Trudeau, contudo, deve se lembrar de algo mais. Para ele, o regime chinês é um sonho: “uma ditadura na qual você pode fazer o que quiser”. As falas de 2013 do jovem Trudeau não significam que ele massacrará o próprio povo com tanques, claro. Mas indicam que ele não passou no teste do poder — e, para políticos, não há teste mais importante do que esse.
Jonathan Miltimore é editor do site FEE.org.
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