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Na cerimônia de abertura do último Foro de São Paulo – aquele evento que até pouco tempo grande parte da imprensa considerava apenas um delírio, uma “narrativa” da direita –, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva escancarou de vez o que antes só se dizia à boca pequena.
Sempre disposto a agradar a plateia do momento (no caso, representantes de partidos de esquerda de toda a América Latina), o mandatário afirmou: “Eles nos acusam de comunistas, achando que nós ficamos ofendidos com isso. Nós não ficamos ofendidos. Ficaríamos ofendidos se nos chamassem de nazista, de neofascista, de terrorista. Mas de comunista, de socialista, nunca. Isso não nos ofende. Isso nos orgulha muitas vezes”.
Não satisfeito, Lula em seguida afirmou, seguindo à risca a cartilha do comunismo: “Aqui no Brasil, nós enfrentamos o discurso do costume, o discurso da família, o discurso do patriotismo. Enfrentamos o discurso que a gente aprendeu a historicamente combater”.
O fato é que, assim como o presidente, os marxistas e derivados saíram do armário para valer. Algo impensável depois da queda do Muro de Berlim, quando até partidos alinhados com a “economia de planejamento” (quem tem mais de 40 anos certamente aprendeu esse termo na escola) trocaram de nome para não serem mais associados aos regimes totalitários responsáveis pela opressão e morte de milhões de pessoas em todo o planeta.
Envergonhados, muitos dos militantes vermelhos tiveram de se apropriar das pautas ecológicas e identitárias para sobreviver no cenário político. E mesmo o Partido dos Trabalhadores só conseguiu chegar ao poder no Brasil se camuflando de democrata – trocou a luta de classes pelo “Lulinha paz e amor”.
Também é verdade que o PT nunca fez muita questão de anular completamente seu passado. Estão aí os ministros do PCdoB, de ontem e de hoje, para não nos deixar mentir: Aldo Rebelo, Orlando Silva, Agnelo Queiroz, Flávio Dino, Luciana Santos.
Mas esses são comunistas das antigas, formados na escola marxista antes da derrubada do muro. O que chama a atenção agora é uma espécie de comunismo pop, defendido e propagado por quem ainda era criança em 1989, pela geração millennial e até pelos adolescentes acostumados a entender o mundo pela tela do celular.
Para eles, o capitalismo representa uma força do mal, a fonte de todos os problemas da humanidade – há, inclusive, quem acredite que ele esteja em vias de extinção (ignorando suas constantes reinvenções e até a liberalização da economia da China). A principal frente dessa batalha, claro, está na internet, onde vídeos com a intenção de viralizar fazem o público esquecer que o símbolo da foice e do martelo é tão ofensivo quanto a suástica nazista.
“É uma moda. Principalmente nas redes sociais, onde as pessoas constroem uma persona socialista que usam para formatar uma imagem”, afirma o economista britânico Kristian Niemietz, ligado ao Institute of Economic Affair (organização dedicada à promoção do livre mercado).
Há dois anos, Niemietz coordenou um estudo que joga luz sobre essa tendência. Segundo a pesquisa, realizada com 2 mil indivíduos com menos de 40 anos, 70% dos entrevistados afirmaram querer viver num regime socialista. A maioria também associou o socialismo a palavras como “igualdade” e “justiça”, enquanto o capitalismo foi ligado aos termos “exploração”, “injustiça” e “racismo”.
Por outro lado, o grupo majoritário se manifestou contrário ao pagamento de muitos impostos, por acreditar que o estado não sabe aplicar o dinheiro com eficiência. E repudiou ditaduras como a da antiga União Soviética. Estas e outras contradições levaram os pesquisadores à seguinte conclusão: os jovens desejam o socialismo simplesmente porque não conhecem a fundo esse sistema político.
O resultado do estudo ainda aponta que a ascensão de personalidades como Bernie Sanders e Greta Thunberg, além de movimentos como Black Lives Matter ( “Vidas Negras Importam”, voltado para a defesa dos direitos das pessoas negras) e Extinction Rebellion ( “Rebelião da Extinção”, de cunho ambientalista) , estão contribuindo para o fortalecimento dessa mentalidade.
Mesmo a cultura pop norte-americana, que em outros tempos ajudou a derrubar o comunismo por meio do rock, da moda e do cinema, está perdendo a vergonha de usar o termo “comunista” de forma não pejorativa. Em séries e filmes recentes como ‘The Last of Us’ (HBO Max) e ‘Homem Formiga e Vespa: Quantumania’ (Disney) há sequências em que os personagens comparam experiências bem-sucedidas da vida em comunidade com o socialismo – para a alegria da nova audiência marxista.
“Essa geração poderia recorrer aos livros de História para aprender sobre as atrocidades socialistas. Mas ela pode simplesmente olhar para o mundo e constatar como a prosperidade aumentou na medida em que os antigos países socialistas foram aderindo ao capitalismo. Se ela fizer uma coisa ou a outra, duvido que ainda encontremos muitos socialistas nessa geração”, garante Benjamin Powell, diretor do Instituto de Livre Mercado da Texas Tech University.
Linguagem acessível
Porém se engana quem pensa que o neocomunismo se limita a memes engraçadinhos e produtos à venda nas lojas virtuais – a camiseta surrada com a imagem de Che Guevara foi substituída por toda a sorte de bugigangas, como bonequinhos de Karl Marx, kits de festa de aniversário estampados com a foice e o martelo e bonés do MST (item atualmente obrigatório entre a esquerda hipster).
Tem muita gente estudada alimentando as redes sociais com discussões e conteúdos assumidamente socialistas e comunistas. São historiadores, sociólogos, cientistas políticos e outras criaturas acadêmicas que se julgam guerrilheiros digitais de uma revolução propagandística radical voltada para o público jovem.
Figuras como Jones Manoel, Laura Sabino, Gustavo Gaiofato, Humberto Matos, Sabrina Fernandes, Ian Neves, João Carvalho e Rita von Hunty entenderam que a direita estava dominando o front digital e decidiram explorar territórios para além dos pátios das universidades federais.
Seus vídeos, textos, posts e podcasts têm uma linguagem acessível e não se baseiam apenas em temas áridos. Pelo contrário: como todo influencer que se preze, eles se metem em qualquer assunto do momento e comentam de tudo, “do guarani ao guaraná”.
E há nichos dentro do nicho. Ian Neves, por exemplo, faz uma linha, digamos, “sensível” – recentemente passou a discutir saúde mental, após um período afastado por conta de um burnout (causado, obviamente, pela sociedade capitalista). “A revolução será fofa, ou não será”, diz o slogan de sua conta no Twitter.
Já Jones Manoel representa o militante mais truculento. “Uma das tarefas fundamentais da gente é estimular o ódio de classe. Tem que acordar todo dia querendo esfolar o patrão”, defende o historiador, que também conecta o comunismo com questões raciais e acabou caindo nas graças de Caetano Veloso. Segundo o filho de dona Canô, o livro ‘Revolução Africana: Uma Antologia do Pensamento Marxista’, publicado pelo professor em 2020, mudou muitos de seus conceitos sobre os regimes socialistas.
Estimulado pelos amigos famosos, Manoel se candidatou ao governo de Pernambuco pelo PCB no ano passado. Foi escolhido por 33.931 eleitores e recebeu o equivalente a 0,69% do total de votos dos dez concorrentes ao cargo.
No último domingo (16), o historiador comunicou na internet sua expulsão da direção do partido – por meio de um processo “absurdo”, que “fere a forma organizativa, as resoluções e o estatuto”. O texto aponta a existência de um conflito entre seu grupo e uma “ala antileninista” do PCB e termina com o seguinte aviso: “Vamos vencer! A luta de classes acontece em todos os âmbitos da sociedade, inclusive dentro do partido comunista. E não existe conciliação na luta de classes!”.
A facção mais surpreendente, no entanto, é a dos comunistas LGBT. Afinal, os países do antigo bloco soviético sempre perseguiram e prenderam homossexuais, acusando-os de subverter os valores do proletariado. Mas como existe justificativa para tudo, fiquem com o título de um material disponível no site lgbtcomunista.org: “O capitalismo tornou a identidade gay possível. Agora precisamos destruí-lo”.
Uma das principais representantes do socialismo arco-íris é o drag queen Rita von Hunty, que tem mais de 1 milhão de inscritos no YouTube e produz vídeos com nomes sugestivos como “Ao farol do marxismo”, “Ferida colonial”, “O Deus problema”, “Religião como discurso de ódio” e “Bíblia: a escritura sagrada????????” (assim mesmo, com vários pontos de interrogação).
Em 2022, Guilherme Terreri, seu nome real, chegou a ser cancelado por parte da esquerda ao se recusar a votar em Lula no primeiro turno das eleições – declarou apoio à candidata Sofia Manzano, do PCB. Segundo ele, a fala do petista durante a campanha tinha um "tom de reconciliação com os golpistas responsáveis pela desgraça que hoje acomete os trabalhadores e povos pobres do Brasil”. Terreri, como era de se esperar, fez a pazes com a militância na segunda etapa do pleito.
Como se vê, na era do socialismo pop, há um comunista para cada tipo de pessoa. É só escolher o que mais combina com o freguês, quer dizer, com o camarada.