Com mais de 1,2 milhão de reproduções no YouTube (até a publicação desta reportagem), o documentário “Bolsonaro e Adélio - uma fakeada no coração do Brasil” é um compilado das maiores teorias da conspiração inventadas acerca do atentado contra o então candidato à presidência da República em 6 de setembro de 2018.
Produzido pelo portal Brasil 247, apoiador do Partido dos Trabalhadores (PT), e endossado por dirigentes da legenda, o filme insinua, a partir de uma “investigação” feita pelo jornalista Joaquim de Carvalho, que a facada que Jair Bolsonaro levou durante um evento de campanha em Juiz de Fora (MG) foi forjada para deixá-lo de fora dos debates: o presidente teria, na verdade, feito uma operação para retirar um tumor no intestino. "É fora de dúvida que aquela facada, ou suposta facada, mudou a história do Brasil e possibilitou a ascensão de um projeto autoritário", afirma o jornalista.
Contudo a maioria das teorias levantadas pelo documentário já foi desmentida pelas duas investigações conduzidas pela Polícia Federal, enquanto outras são simplesmente contraditórias ou implausíveis. Em 2019, Adélio Bispo foi considerado inimputável pela Justiça Federal de Juiz de Fora, por conta de um diagnóstico de transtorno mental, e segue internado na penitenciária federal de Campo Grande (MS).
A PF também concluiu que ele agiu sozinho e não encontrou evidências reais de que tenha havido um mandante. Ainda assim, desde o começo do ano, o presidente Jair Bolsonaro vem tentando reabrir o caso através do advogado Frederick Wassef, com o argumento de que é preciso elucidar quem pagou pela defesa do agressor
O “conluio” em Juiz de Fora
Um dos elementos apresentados pelo documentário é o da falha de segurança incomum ocorrida no dia do atentado. É sabido que a viagem de Bolsonaro do Rio de Janeiro a Juiz de Fora contou com um esquema de segurança diferente do usual: Bolsonaro costumava viajar na companhia do ex-presidente do PSL, Gustavo Bebianno, do general Santos Cruz e de uma equipe de segurança responsável pelo colete à prova de balas.
No dia 6 de setembro, entretanto, seu filho, Carlos Bolsonaro, teria insistido para ir no carro, alterando a configuração prevista, e Bolsonaro desembarcou para o encontro com o público sem o equipamento, contra a indicação de seus apoiadores. A falha foi confirmada por Bebianno em entrevista ao programa Roda Viva.
No documentário, o jornalista liga esta lacuna a outro fato conhecido, o de que Adélio Bispo esteve presente no clube de tiro .38, na Grande Florianópolis, na mesma semana que Carlos e Eduardo Bolsonaro, dois meses antes do atentado, para insinuar que esta seria a ocasião na qual tudo teria sido “combinado”. Nenhum dos envolvidos ocultou a presença no local (Adélio chegou a dar “check-in” no Facebook) nem há provas de que o agressor tenha encontrado os irmãos no mesmo dia.
O “ápice” da armação teria acontecido sob os olhos atentos da multidão que acompanhava Jair Bolsonaro na rua Halfeld: Adélio Bispo teria se aproximado com o auxílio dos seguranças voluntários de Bolsonaro (que seriam, depois, alocados em cargos na Polícia Federal e na Abin) e simulado a facada. Sem nenhum ferimento, Bolsonaro teria sido conduzido à Santa Casa de Juiz de Fora e, de lá, para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para a realização da verdadeira cirurgia de retirada do tumor.
Todo o “esquema” teria exigido dezenas de participantes: o documentário apresenta um esquema complexo para insinuar que a faca de Adélio foi entregue ao dono de um estabelecimento próximo ao do local da facada, e que “nunca foi encontrada” (o objeto está guardado no Museu da Polícia Federal); apela para o velho argumento da “ausência de sangue” no chão do local onde Bolsonaro foi socorrido — já exaustivamente rebatida por médicos — e, depois, insinua um conluio entre os hospitais de atendimento.
Conspiração médica
O documentário acusa o Hospital Albert Einstein de omitir o prontuário da vítima, oferecendo apenas um documento assinado pelo médico responsável pela cirurgia, o doutor Antonio Luiz Macedo. Bolsonaro, de fato, foi atendido no Hospital Albert Einstein por intervenção de seus apoiadores e porque não queria ser internado no mesmo hospital em que Lula e Dilma foram tratados, o Sírio-Libanês. Ocorre que, antes desta decisão ser tomada, três médicos do Sírio-Libanês foram à Santa Casa e examinaram o candidato. Em nenhum momento a veracidade da facada foi questionada a sério.
Outra “evidência” sem comprovação apresentada pelo documentário é a de que um fotógrafo teria sido propositalmente distraído para não fotografar o momento exato da facada, sendo que a cena estava sendo gravada de perto por profissionais de vídeo e dezenas de aparelhos de celular.
Há ainda a tentativa de caracterizar Adélio Bispo como um militante de direita, por causa de uma suposta filiação passada ao Partido Social Democrático (PSD), e que só teria começado a atacar Bolsonaro após o suposto encontro com Carlos em Santa Catarina. A informação, contudo, é falsa: Adélio relatou à PF que suspeitava ter sido filiado ao PSD à revelia e assinou um documento pedindo a desfiliação, usado como “prova” no documentário. O partido confirmou à Folha de S. Paulo que o agressor nunca esteve em seus quadros. Nada disso, contudo, é mencionado pelo documentário.
Joaquim Carvalho tampouco esclarece que uma das últimas “evidências” apontadas pelo documentário — uma voz que, segundos antes da facada, diz “calma aí, calma aí cara” — já consta no relatório final da investigação: o dono da voz prestou depoimento à PF e explicou ter achado que Adélio era apenas um apoiador afobado que queria tocar em Bolsonaro. Nada foi encontrado contra ele.
Às contradições flagrantes, some-se uma lista de ilações sem nenhum sentido: um vídeo anterior à facada, que mostra Michele Bolsonaro e um pastor orando com as mãos na barriga de Jair Bolsonaro, e serviria como “prova” de um problema pregresso no intestino; a escolha da cidade de Juiz de Fora para o atentado por conta de um ex-prefeito eleito após levar uma pedrada na cabeça (o que tornaria a cidade mais “propícia” para o ataque) e uma série de questionamentos às finanças de Adélio, já conferidas pela Polícia Federal e descritas como compatíveis com seus rendimentos.
A lista de 21 perguntas enviadas pela Folha de S. Paulo ao Brasil 247 elenca as principais lacunas do documentário, e não foi respondida pelos produtores. Ainda que haja pontas soltas no caso Adélio Bispo, a questão que mais evidencia a implausibilidade da gigantesca conspiração é, possivelmente, a mais óbvia: por que nada disso veio à tona nos últimos três anos, se o esquema deveria contar com o silêncio da “equipe de aliados próxima do candidato, familiares, seguranças, agentes da polícia federal, seguranças eventuais, testemunhas próximas, policiais federais destacados para a investigação, integrantes do Ministério Público, médicos, enfermeiros e funcionários da Santa Casa de Juiz de Fora, do hospital Albert Einstein, entre várias outras pessoas?”.
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