No último domingo, uma faixa negra, com os dizeres “Somos democracia” em branco e vermelho e a imagem de um punho fechado em branco, foi estendida sob o vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista, em São Paulo. Lideraram o protesto integrantes de torcidas organizadas do Corinthians, ainda que membros de outros grupos, ligados a Palmeiras, Santos e São Paulo, tenham aderido. Os hinos das torcidas foram adaptados para se tornar cânticos em protesto contra o presidente Jair Bolsonaro.
Por volta das 14h, quando começava a se dispersar, o grupo encontrou manifestantes a favor de Bolsonaro. A tensão levou a um confronto com a Polícia Militar. O governador João Doria defendeu no Twitter a ação: “A Policia Militar de São Paulo agiu hoje para manter a integridade física dos manifestantes, na Avenida Paulista. Dos dois lados. A presença da PM evitou o confronto e as prováveis vítimas deste embate. Todos têm direito de se manifestar, mas ninguém tem direito de agredir”. Os manifestantes lançavam paus e pedras contra os policiais, que reagiram com bombas de efeito moral. Algumas das pessoas detidas portavam canivetes.
Atos semelhantes aconteceram no Rio de Janeiro, onde torcedores da Democracia Rubro-Negra também protestaram contra Bolsonaro, e em Belo Horizonte, onde os torcedores se identificavam como membros da Resistência Alvinegra e a Galo Antifa. Em São Paulo, a torcida Gaviões da Fiel afirmou que não organizou o ato, mas o considera uma legítima expressão democrática.
Em entrevista concedida ao portal UOL Esporte durante a manifestação, Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões da Fiel, declarou: “Nossa ideia agora é ser um 'gatilho de pólvora'. É riscar o primeiro fósforo, já que os partidos de oposição e movimentos populares não se manifestam.”. Alex Sadro Gomes, presidente da Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil (Anatorg), “Querem impor à força uma agenda sem nenhum debate. Hoje foi uma resposta a este tipo de movimento, uma maneira de dizer para eles que no país o que tem que valer é a democracia”.
Mas será que é, de fato, democrático que torcidas organizadas, tradicionalmente ligadas a atos violentos, saiam às ruas para liderar manifestações políticas? Qual o risco de valorizar ações que parecem buscar confrontos abertos com grupos que pensam diferente?
“Vínculo comprovado”
“De 2010 até 2016 foram 117 homicídios comprovados, média de quase 17 a cada ano”, escreve o sociólogo Mauricio Murad no livro Violência no Futebol. “Os vínculos desses grupos de vândalos infiltrados nas torcidas uniformizadas de futebol com outras 'gangues urbanas', como os skinheads, com o chamado crime organizado, o tráfico de drogas e o mercado negro de armas é conhecido, comprovado empiricamente”.
Em outras palavras, muitas vezes, analisa o especialista, as torcidas são apropriadas por grupos que têm outros interesses. “As facções transgressoras que se infiltram nas torcidas e barbarizam a sua convivência têm práticas militarizadas de poder, hierarquia, organização e funcionamento, muitas vezes são treinadas em academias clandestinas de lutas marciais, localizadas e fechadas pela polícia, em várias cidades brasileiras, onde os 'golpes mortais' têm prioridade”. Existem, diz o autor, “segmentos das torcidas organizadas ligados a segmentos do crime organizado, o que subdivide as torcidas em função das facções do crime e do tráfico”.
Episódios de violência envolvendo as organizadas são comuns. Em 2015, oito membros da Pavilhão 9, do Corinthians, foram assassinados a tiros de pistola 9 milímetros na quadra da torcida. Entre as vítimas estava o ex-presidente da entidade, Fábio Domingos, que participou do incidente de 2013, quando um foguete disparado pela torcida paulista matou o garoto boliviano Kevin Spada, de 14 anos, durante uma partida em Oruro, válida pela Copa Libertadores da América.
Domingos permaneceu detido na Bolívia. Apenas dois meses depois de retornar ao Brasil, também se envolveu na pancadaria envolvendo torcedores de Corinthians e Vasco em Brasília. Na época em que foi assassinado, a política apurou que ele estava envolvido em dívidas com o tráfico de drogas, desde que foi preso com uma carga de cocaína.
As relações suspeitas entre torcidas organizadas e tráfico são recorrentes. Em dezembro de 2014, Audney Pereira Simeoni, presidente da Torcida Jovem da Ponte Preta, time de Campinas, foi preso por associação ao tráfico – mesmo motivo que levou seu sucessor, Romildo dos Santos, para a cadeia. Dois anos antes, Rodrigo de Azevedo Lopes Fonseca, presidente da Gaviões, foi preso acusado dos crimes de homicídio e formação de quadrilha.
Em 2020, 12 membros de duas torcidas organizadas ligadas ao Cruzeiro, a Pavilhão Independente e a Máfia Azul, de Belo Horizonte, foram detidos por associação criminosa. Também neste ano, torcidas organizadas do Internacional, em Porto Alegre, foram alvo de uma operação do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e da Promotoria de Justiça do Torcedor.
Desde aquela época, indícios de que as organizadas têm relações com o Primeiro Comando da Capital (PCC) se acumulam. Em 2016, quatro mensagens de áudio fazendo referência a uma suposta ordem de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder da organização criminosa, teriam orientado as organizadas a evitar situações de confronto. “O cara que brigar, vai apanhar; e o cara que matar, vai morrer. É ordem do PCC, entendeu?”, diz uma das mensagens.
As torcidas negam – em dezembro de 2016, a Gaviões emitiu uma nota afirmando: “qualquer associação das recentes ações em prol da paz nos estádios com ‘mandos criminosos’, não passam de uma desleal tentativa de desmoralizar o que estamos nos esforçando para fortalecer entre as torcidas organizadas do nosso Estado”. Mas, em fevereiro de 2014, a Polícia Federal encontrou 300 quilos de maconha na sede da Torcida Uniformizada do Palmeiras, em uma ação que levou três líderes a serem condenados por tráfico de drogas.
Procurado, o promotor Roberto Bacal, que atua junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo, respondeu, via assessoria de imprensa, que “não concede entrevistas sobre o assunto por motivo de segurança”.
Casos no exterior
A relação entre torcidas organizadas e crime organizada é comum em outros países. Em 2016, por exemplo, a Procuradoria de Turim, na Itália, confirmou a ligação de dirigentes da Juventus (incluindo o presidente Andrea Agnelli) com os crimes de associação criminosa, tráfico de drogas e tentativa de homicídio.
Esse é um fenômeno antigo. Na Europa, desde os anos 1970 as organizadas se tornaram grupos de tendências violentas. "Os grupos do Leste Europeu, bem como alguns grupos na Espanha e Itália possuem constantes manifestações de racismo e xenofobia", afirma Marcelo Palhares na tese de mestradoViolência no futebol brasileiro: os discursos de torcedores organizados.
Na Argentina, em 2018, a polícia levou para a cadeia nove líderes do cartel que vendia cocaína dentro dos estádios de Buenos Aires – eles pertenciam às torcidas organizadas do Deportivo Laferrere e do Argentino Juniors. Dois anos antes, uma disputa por pontos de venda de drogas levou à morte quatro membros de torcidas do Newell's Old Boys.
“No interior destes grupamentos também pode ocorrer a prática de múltiplas atividades ilegais, bem como, de delitos. Inclusive, uma das hinchadas argentinas, a hinchada do Clube Atlético Belgrano, se autointitula com o nome ‘Los Piratas Celestes de Alberdi’”, explica Palhares, fazendo referência aos grupos de torcedores conhecidos como hinchadas. “Este título de ‘Pirata’ é proveniente dos saques e furtos realizados por membros deste grupo, durante as viagens realizadas para assistirem à equipe do Belgrano jogar como visitante”.