Simone Weil, a autora de Pela Supressão dos Partidos Políticos, é uma figura de difícil definição. Ainda bem. Com uma rápida busca na Internet, o leitor ficará sabendo que ela fez parte do Partido Comunista quando jovem, que trabalhou na linha de produção de uma fábrica de carros para saber como era a vida dos operários e que, depois de uma conversão religiosa, abandonou quaisquer pendores coletivistas – algo que ela via como a materialização do mal.
Essa incapacidade de compartimentalizar o pensamento de Simone Weil parece uma afronta à forma como hoje em dia encaramos o trabalho intelectual. Tentamos o tempo todo fazer com que obra e biografia se enquadrem em algum tipo de caixinha ideológica – até para que possamos tirar conclusões rápidas sem nos aprofundarmos. Weil tinha ojeriza a esse tipo de estratégia preguiçosa. Para ela, a reflexão em si, e não uma eventual conclusão ou aplicação prática da ideia, era o caminho que levava a Deus.
Weil também é dona de uma prosa enfática. Em Pela Supressão..., ela abusa do recurso retórico do exagero ironicamente panfletário para levar o leitor não a comprar a ideia do título – algo nitidamente utópico e em desconformidade com a tradição democrática –, e sim para que ele reflita sobre o papel dessas instituições essenciais para o funcionamento do Estado moderno na infeliz aniquilação do pensamento individual.
Escrito em meio à Segunda Guerra Mundial, o livro que se consome rapidamente pergunta ao leitor que com ele tiver a sorte de se deparar: você já parou para questionar as instituições que embasam essa coisa que muitos têm como valor absoluto chamada “democracia”? Seria a política partidária uma consequência lógica de uma busca legítima pelo bem comum ou uma forma de aniquilar a individualidade?
“Os partidos políticos surgiram na vida pública europeia como uma herança do Terror [francês ] e, em parte, sob influência da prática britânica. O simples fato de eles existirem hoje não é, em si, motivo o bastante para que os preservemos. O único motivo legítimo para preservar algo é sua bondade. Os males dos partidos políticos são evidentes demais; portanto, o problema a ser analisado é este: eles têm em si algo de bom a ponto de compensar seus males e tornar sua preservação desejável?”
Em tempos de ameaças totalitárias, ataques reais ou fantasiosos a uma democracia que poucos são capazes de definir com clareza e delírios de ruptura institucional, Weil soa perigosamente (e enganadoramente) revolucionária ao dizer algo capaz de chocar o leitor mais sensível. Para ela, “a democracia, o governo da maioria, não é boa em si. Ela é apenas um meio para se buscar a bondade, e sua eficiência é duvidosa”.
Mas insisto. Weil não pretende, em Pela Supressão..., criar um estado anárquico. Tendo os horrores de Hitler diante de si e percebendo a facilidade com que as ideologias totalitárias conquistavam a mente e a alma das pessoas, ela buscou identificar a origem dessa submissão. E o encontrou, à moda de Edmund Burke, na Revolução Francesa de 1789, o ponto culminante do Iluminismo. “O verdadeiro espírito de 1789 consiste em pensar não que uma coisa é justa por causa do desejo do povo, e sim que, em certas condições, o desejo do povo provavelmente se adequará à justiça”, escreve, explicando que, num sistema político-partidário corrompido, a Verdade não é guia, e sim escrava.
Escravização do pensamento
Aqui é impossível não traçar um paralelo com o Brasil de 2020, com duas dezenas de partidos políticos difusos, com a defesa da democracia sendo usada como bandeira de prototiranos e com as paixões coletivas que levam as pessoas a se organizarem em tribos, hostilizando-se mutuamente em infindáveis querelas que não chegam a lugar nenhum.
“Quando um país está tomado pela paixão coletiva, ele se torna unânime no crime. Se o país se torna vítima de duas, quatro, cinco, dez paixões coletivas, ele se divide entre várias gangues criminosas rivais. As paixões divergentes não se neutralizam, como aconteceria no caso de um punhado de paixões individuais. Elas são poucas e poderosas demais para que haja qualquer neutralização. A competição as exaspera; elas entram em conflito com um estrondo infernal e, em maio a tal balbúrdia, as vozes frágeis da justiça e verdade são abafadas”.
Para ela, os partidos políticos (e, de uma forma mais abrangente e radical no restante de sua obra, tudo o que cheira a “social”) são uma versão moralmente corrompida da capacidade de livre associação defendida pelos conservadores como uma maneira de se fugir do controle estatal. É como se os partidos fossem cada qual um miniestado dentro do Estado, reproduzindo uma forma de organização no qual a hierarquia pressupõe submissão completa ao ideário, por mais vago e irreal que ele seja.
Pior! Weil aponta a ineficácia desse sistema de cooptação e escravização do pensamento e da ação do qual ninguém hoje ousa discordar para não correr o risco de ser visto como um ditadorzinho de meia-tigela. Ao ensejar um ambiente de conflito permanente, os partidos políticos se transformam num “fim em si” – o que, para ela, é algo diabólico. Afinal, só Deus é um fim em si mesmo.
O tribalismo, as lutas ideológicas e a compartimentalização intelectual e moral são, para Weil, “um mecanismo incrível que, em escala nacional, garante que nenhuma mente seja capaz de se dar ao trabalho de perceber, nas questões públicas, o que é bom, justo e verdadeiro. Como resultado – exceto por algumas coincidências esparsas – nada se decide, nada se executa além de medidas que vão contra o interesse público, a justiça e a verdade”.
Uma decisão espiritual
O alvo central de Pela Supressão...,contudo, e por mais contraintuitivo que isso possa parecer, não são os partidos políticos, e sim as pessoas que a seus líderes e doutrina se sujeitam. Sim, porque a alma humana,e não os sistemas de governo, é que está no centro da obra de Simone Weil. Para ela, a decisão de se deixar levar por um conjunto de ideias e um líder é antes de mais nada uma (péssima) decisão espiritual.
“Um homem que não tomou a decisão de permanecer fiel exclusivamente à luz interior gera mentira no âmago da sua alma. Para isso, seu castigo é a escuridão interior.”
Não que ela veja este homem como um ser desprovido de virtudes e irredimível. Afinal, não são apenas a preguiça intelectual e a submissão consciente a um ideário o que caracterizam esse ser escravizado pelo que ela chama de “paixões coletivas”. Partindo de um ponto de vista compassivo que lhe é característico, Simone Weil vê no Homo pars um ser que usa um meio equivocado para encontrar a Verdade e que, por isso, acaba trilhando a estrada larga da mentira.
“A mentira e o erro (as duas palavras são sinônimos) são produto de pensamentos daqueles que não desejam a verdade ou daqueles que desejam algo além da verdade. Por exemplo, eles desejam a verdade, mas também a conformidade com essa ou aquela ideia”.
A consequência mais grave dessa necessidade de se conformar e de obrigar o outro à conformidade é, evidentemente, a relação de força, de violência mesmo que se vê hoje em dia, quando não nas interações físicas, nas virtuais. Reduzido a uma ortodoxia fundamentada no desejo mundano de poder e reduzindo o outro ao papel de inimigo, alguém a ser exterminado antes que venha a se transformar num algoz, o homem contemporâneo se vê em meio a uma guerra que não tem outro objetivo que não sua perpetuação. Tudo sob a justificativa falaciosa do bem comum, da democracia e da justiça.
Por fim, a seu modo meio torto, ironicamente panfletário e inegavelmente exagerado, Weil defende que o homem, impotente diante da deusa Democracia e de seus capangas, os partidos políticos, rebele-se contra o pensamento coletivo, esse que apaga sua luz interior e o condena à escuridão e conflito eternos. Mas ele só conseguirá fazer isso se, antes, perceber que age assim por puro prazer e pela esperança tola de conseguir construir um Paraíso sem antes passar pelas tribulações do Purgatório.
“Quando um homem entra para um partido, ele adota uma disposição intelectual para mais tarde se expressar com palavras como ‘Na condição de monarquista, na condição de socialista, eu acho que...’ Isso é tão fácil! Isso significa não pensar em nada. Nada é mais fácil do que não ter de pensar”.
Isentona
Simone Weil, que sempre teve a saúde frágil, morreu em 1943. Não se sabe ao certo as causas de sua morte. Há quem acredite que ela tenha morrido de fome, depois de se recusar a comer mais do que a porção que acredita que seus compatriotas na França ocupada pelos nazistas podiam ingerir. E há quem diga que ela morreu de um prosaico ataque cardíaco.
Hoje em dia, aquela que Camus considerava “o único grande espírito da nossa época”, seria chamada de “isentona”, quando não de “comunista arrependida” por uns e “conservadora traidora da causa” por outros.
O que, curiosamente, acaba por provar o ponto que ela defende com fervor em Pela Supressão dos Partidos Políticos.
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