• Carregando...
Fachada do Supremo Tribunal Federal brasileiro
Fachada do Supremo Tribunal Federal brasileiro| Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil

Tanto nos Estados Unidos como na América Latina, as Supremas Cortes, competentes para julgar a constitucionalidade das leis, decidiram mudanças notáveis ​​em questões controversas (aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, eutanásia...), muitas vezes ignorando os parlamentos e a opinião pública. Agora, a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a inexistência de um direito constitucional ao aborto desconcertou aqueles que consideravam a Doutrina Roe inabalável. As forças que têm confiado nas Cortes Supremas para promover a mudança social de acordo com suas ideias descobrem que o "governo dos juízes" pode se voltar contra elas.

Para aqueles que rejeitam a decisão da Suprema Corte dos EUA sobre o direito constitucional ao aborto, não se trata apenas de uma sentença equivocada. Na sua opinião, a decisão do caso Dobbs põe em causa a legitimidade do tribunal. Até que ponto alguns juízes não eleitos pelo povo podem tirar dos cidadãos um direito reconhecido desde o Roe v. Wade, de 1973?

Mas não se pode dizer que são “os juízes contra o povo”. Há também uma clara divisão na opinião pública. Segundo pesquisas após a sentença, por exemplo, a da CBS News, 59% são contra a anulação de Roe, enquanto 41% aprovam. Nem tudo é tão preto e branco na questão do aborto. Quando as pesquisas entram em detalhes, 65% dos entrevistados dizem que o aborto deveria ser ilegal na maioria dos casos no segundo trimestre (pesquisa AP-NORC de junho de 2021), uma limitação que Roe não permitiu ao torná-lo possível até 24 semanas.

E muitas vezes se esquece que Roe deu lugar a práticas tão permissivas que não seriam admitidas pelas leis que autorizam o aborto em outros países. Pensemos na lei "restritiva" do Mississippi que deu origem à nova sentença: quer proibir o aborto a partir da 15ª semana, enquanto na França é permitido até a 14ª semana.

Deixe os parlamentos decidirem

Ao devolver agora aos estados o direito de decidir sobre o aborto, a Suprema Corte permite que a questão seja regulada por meio de um processo democrático que Roe tirou deles. Em 1973, apenas quatro estados permitiam o aborto sob demanda, outros quatorze o autorizavam em certos casos, e a maioria o proibia, a menos que a vida ou a saúde da mãe estivesse em perigo. Então, também a opinião pública estava dividida. E também, então, os juízes da Suprema Corte se arrogaram o direito de decidir por si mesmos a existência de um direito constitucional ao aborto, e assim tirar do feto a defesa legal que protegia sua vida. Todas as leis estaduais de aborto democraticamente elaboradas foram derrubadas em virtude de um direito constitucional detectado pelos juízes, por uma maioria de 7 a 2.

Repensar a legislação do aborto dentro de um debate parlamentar pode pelo menos servir para introduzir as nuances e restrições que as pesquisas refletem. As leis serão diferentes de acordo com os estados, mas o mesmo acontece em muitas questões nos EUA.

Não muito tempo atrás, os defensores do casamento gay fizeram um grande esforço para levar seu caso à Suprema Corte. E, quando em 2015, o Supremo reconheceu por 5 a 4 o direito ao casamento de casais do mesmo sexo, pareceu-lhes que a Corte cumpria perfeitamente a sua missão.

Vale lembrar que então o juiz da corrente conservadora Antonin Scalia qualificou a decisão como um "atentado à democracia", pois supunha "uma modificação constitucional por uma comissão de nove membros que não foram eleitos pelo povo". Na mesma linha, o presidente da Corte, John Roberts, escreveu em seu voto dissidente que a sentença “invalida as leis matrimoniais de mais da metade dos estados e ordena a transformação de uma instituição social que tem sido a base da sociedade humana há milênios (...) Quem pensamos que somos?”.

Decisões na América Latina

A diferença entre então e agora é que aqueles considerados progressistas, que viam no sistema judicial um aliado, descobriram que ele se volta contra eles. Os três juízes nomeados por Trump produziram uma mudança na maioria, embora, como pode ser visto em outras decisões, nem sempre votem em bloco. Mas aqueles que desqualificam a Suprema Corte, com sua nova maioria conservadora, dizem que vão transformar em lei uma agenda política de direita, sem mandato democrático ou medo da opinião pública.

Mas o mesmo pode ser dito do Supremo Tribunal quando teve outra maioria, e de outras Cortes Supremas da América Latina que decidiram mudanças de longo alcance nas questões discutidas, ignorando parlamentos e opinião pública.

Na América Latina, em muitos casos, os ativistas, em vez de ganharem apoio nos parlamentos, têm buscado um pronunciamento das Cortes Supremas, consideradas mais progressistas do que os representantes eleitos pelo povo.

Assim, em fevereiro passado, o Tribunal Constitucional colombiano descriminalizou o aborto até a 24ª semana, o que permitiria uma das leis mais frouxas do mundo. E antes disso, a lei nem proibia totalmente o aborto. Desde 2006, isso foi admitido nos casos usuais de perigo à vida ou à saúde da mulher, malformações no feto incompatíveis com a vida, estupro ou incesto. O que se consagrava agora era o aborto sob demanda, até que o feto fosse viável.

A maior parte da imprensa europeia saudou a sentença como um grande avanço social. Poucos se perguntavam então se alguns juízes poderiam impor seus critérios aos representantes políticos e resolver uma questão que também não tinha maioria na opinião pública. Segundo levantamento da consultoria internacional IPSOS, em 2021, 26% dos colombianos eram a favor do aborto a pedido e 36% apenas em determinadas circunstâncias, como as que já haviam sido aprovadas desde 2006. No entanto, o Tribunal Constitucional optou pela fórmula mais extrema.

Sua decisão não respondeu a um julgamento de uma lei aprovada no parlamento, mas a uma ação movida diretamente em 2020 pelo movimento feminista Causa Justa. Para alguns analistas, o Tribunal Constitucional da Colômbia, criado na Constituição de 1991, é um exemplo claro do que se chama na teoria constitucional de "governo dos juízes" que se sobrepõe ao "governo do povo". Como principal garantidor da Constituição, pode intervir nas atribuições de outros poderes públicos, o que muitas vezes obscurece a divisão de poderes. De fato, foram as decisões do Tribunal Constitucional que legalizaram a eutanásia para pacientes não terminais na Colômbia, o casamento gay em 2016 e agora o aborto. No caso do aborto, a Corte ressaltou que o Congresso e o Governo devem cumprir a sentença "imediatamente" e implementar as medidas legislativas e administrativas "no menor tempo possível".

Ativistas buscam pronunciamentos judiciais

A posição do Tribunal Constitucional da Colômbia não é um caso excepcional na América Latina. Se olharmos para os países que aprovaram o casamento gay, apenas em três (Argentina, Uruguai e Chile) houve iniciativa do parlamento, enquanto nos outros cinco a aprovação decorreu de decisões do Tribunal Constitucional: Brasil (2013), México (2015), Colômbia (2016), Equador (2019), Costa Rica (2020).

Tampouco se pode dizer que essas sentenças sempre responderam a um clima favorável da opinião pública. No Equador, quando o Supremo Tribunal aprovou o casamento gay em 2019, as pesquisas registraram 23% a favor e 51% contra. Na Costa Rica, em 2017, havia 35% a favor do casamento gay e 65% contra. Na Colômbia, em 2022, houve mais equilíbrio: 48% a favor e 46% contra.

Quando não havia a maioria dos partidos políticos a favor da medida, também se buscou a intervenção de órgãos como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Foi o caso da Costa Rica, quando um governo cessante, que havia prometido aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, solicitou à Corte um parecer consultivo dizendo se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos incluía a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito a transexuais mudarem legalmente seu gênero. No parecer consultivo, publicado em 2018, a Corte Interamericana respondeu sim a ambos questionamentos, embora não sejam mencionados no texto da Convenção. Com base nisso, o Supremo Tribunal de Justiça da Costa Rica decidiu em 2018 a inconstitucionalidade das normas do Código de Família que proibiam explicitamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Déficit democrático

Nestes casos, reconhece-se claramente que os tribunais superiores estão obrigando os parlamentos a fazer algo para o qual não há maioria, mas que é “progressista”. O problema é que, como aconteceu agora nos EUA, o déficit democrático enfraquece a decisão dos tribunais superiores.

Por isso, enquanto alguns dizem que a decisão Dobbs representa uma crise de legitimidade para a Suprema Corte, outros respondem que é mais uma crise de "liberalismo jurídico", que conta com uma elite de juristas e juízes para promover o que consideram avanços sociais. E agora eles se encontram na desconfortável posição de se manifestar contrários a que os estados decidam democraticamente.

A queda de Roe força os democratas a reconsiderar o papel dos tribunais na mudança social. Como Fraser Myer escreveu – ao contrário da decisão de Dobbs – “o problema para os liberais hoje é que eles torcem pelos tribunais, porque perderam a fé na democracia. A guerra legal e a revisão judicial parecem-lhes meios mais desejáveis ​​de provocar mudanças sociais do que o compromisso democrático”.

A tarefa de adequar a lei às mudanças sociais, no marco constitucional, corresponde ao poder legislativo. Se você quer promover uma determinada agenda social, você terá que convencer a opinião pública, mobilizar pessoas com ideias semelhantes, eleger representantes políticos que possam apoiá-los e aprovar leis. Esperar que os tribunais superiores sejam a alavanca para a mudança social é um atalho pouco convincente, a menos que seja para solicitar proteção judicial contra a arbitrariedade legislativa.

Agora, nos EUA, os democratas lamentam que na época de Barack Obama não tenha sido aprovada no Congresso uma lei que garantisse o direito federal ao aborto. Na época, supunha-se que Roe seria inabalável. Em contraste, o movimento pró-vida não desistiu politicamente nem nos piores momentos. Manteve o debate vivo na opinião pública, promoveu iniciativas para ajudar mulheres com gravidez difícil, buscou apoio político, promoveu leis restritivas ao aborto nos estados. Também a nomeação dos três juízes por Trump teria sido impossível sem essa base.

Também agora que Roe caiu, não devemos esquecer que uma decisão da Suprema Corte não substitui uma política pró-vida. E nos EUA há muito espaço para elaborar uma política familiar mais generosa para ajudar as famílias com menos recursos.

Custou ao movimento pró-vida superar quase cinquenta anos, mas no final conseguiu que os estados recuperassem seu poder legislativo sobre o assunto. Alguns aproveitarão para manter o aborto sob demanda, outros introduzirão restrições ou proibirão. Mas desta vez pode-se dizer que o "governo dos juízes" devolveu ao povo o direito de decidir.

© 2022 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]