Na semana passada, durante uma audiência pública na Comissão de Seguridade e Família da Câmara dos Deputados, Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, relembrou críticas que havia feito a Pica-Pau, Popeye e outros personagens clássicos da animação. “Eu questionei o Pica-Pau há 30 anos, questionei o Popeye. Tô questionando muita coisa agora. O Popeye machucava aquela Olívia, gente. Ele e o Brutus esticavam aquela mulher. Não somos objeto. Então, eu, como educadora, questiono sim”, disse.
Embora não se questione as boas intenções de Damares, é possível que a ministra tenha se equivocado. Tanto Popeye quanto Pica-Pau trazem consigo valores de direita e ostentam traços de caráter tipicamente conservadores e liberais que os tornam referências infantis há mais de oito décadas.
Popeye, de herói de guerra a defensor da família
Criado pelo cartunista E. C. Segar, o marinheiro teve sua primeira aparição na clássica tirinha para jornais Thimble Theatre, publicada em 1929 em centenas de periódicos norte-americanos.
Embora a tirinha já estivesse em seu décimo ano de existência na ocasião da estreia de Popeye, logo ele assumiu o protagonismo da obra. Assim, conquistou uma grande base de fãs antes mesmo de aparecer pela primeira vez nos cinemas, em 1933, numa produção do Fleischer Studios, bem-sucedida casa de animação do período. De lá para cá, o marujo esteve presente em centenas de produções para cinema e, a partir de 1960, televisão.
O principal aspecto da personalidade do herói é sua vontade de brigar pelo que ele acredita ser o certo. Seja a defesa da donzela em perigo (Olívia Palito, eterna paixão do marinheiro) ou alguma outra causa, o baixinho não pensa duas vezes antes de se arriscar para tentar resolver a injustiça com a qual se depara.
Mesmo sendo mais fraco que Brutus, Popeye tenta de tudo para que o malfeitor pare de incomodar seu alvo. E ele não depende apenas de seus poderes de espinafre para isso. Popeye sempre tenta intervir sem este recurso, se arriscando pelo que acredita independente de o inimigo ser maior e mais imponente.
Ao se deparar com inimigas, Popeye age como cavalheiro e evita agressões, mesmo que essas vilãs o ataquem, como se vê em seus embates com a maligna Bruxa do Mar.
É importante notar que Popeye tem um bordão muito famoso em terras americanas, mas que se perdeu no Brasil devido às diversas traduções. Desde sua criação, o marinheiro repete a frase "I Yam What I Yam", um trocadilho que significa algo como “eu sou/como o que sou/como” – numa demonstração de orgulho por sua autenticidade e crenças, como um perfeito conservador.
Propaganda de guerra
Como o herói estava no auge durante os anos 1940, Popeye foi usado em produções norte-americanas que incentivavam a luta na Segunda Guerra Mundial. Sem nenhum traço de politicamente correto, Popeye estrelou peças publicitárias nas quais incentivava a compra de títulos de guerra, para que o cidadão ajudasse a derrotar os soldados do Eixo, chamados de "japanazis". Por coerência, o vilão Brutus não se envolveu nessas produções, o que ressalta o caráter heroico do protagonista.
Um dos curtas do marinheiro mais famosos deste período é "You're a sap, Mr Jap!", de 1942. Na animação, Popeye navega pela costa norte-americana em um pequeno barco da Marinha quando se depara com um também modesto navio japonês que lhe propõe um acordo de paz. Na verdade, é uma armadilha e a embarcação inimiga se revela gigantesca e tem por objetivo invadir os Estados Unidos. Sem hesitar, o marinheiro derrota sozinho toda a tropa nipônica.
Acusada de retratar japoneses de modo estereotipado, a animação permaneceu banida por décadas, mas atualmente pode ser encontrada na internet.
Popeye era visto como um verdadeiro símbolo da sociedade ocidental, tanto que ele também foi usado como vilão em propagandas nazistas durante a guerra. No curta “Nimbus Libéré”, produzido em 1944 por franceses simpatizantes de Hitler e usado pelo Eixo, Popeye aparece ao lado de outros ícones da animação norte-americana, como Mickey Mouse, Pato Donald e Gato Félix. Os personagens são retratados como pilotos aliados, bombardeando terras europeias e massacrando inocentes, para a felicidade de um judeu, retratado de acordo com estereótipos nazistas.
O pai de família
Ressaltando a importância da família, uma das últimas produções com o personagem foi “Popeye e Filho”, de 1987. Na série animada, o marinheiro já está casado com Olívia Palito e agora ambos se dedicam a cuidar do filho, que dá sequência à tradição e mantém uma rivalidade com o filho de Brutus. Os episódios, além de bem-humorados, também carregavam diversas lições de vida, bem ao estilo de outras animações da Era Reagan, como “He-Man”.
Além dos filhos, o marujo já teve de lidar em diversas ocasiões com seus quatro sobrinhos. Os quadrigêmeos sempre representaram um desafio para o velho lobo do mar, que precisou aprender a educar crianças que, até então, não eram bem-comportadas.
Se ainda restam dúvidas quanto ao caráter familiar do personagem, podemos buscar exemplos em um dos melhores termômetros para definir uma sociedade: o mercado. Ao longo de suas décadas de estrelato, Popeye sempre foi usado como modelo a ser seguido em produtos que tinham como público-alvo as crianças ou a família.
É o caso de um clássico comercial brasileiro de 1993, no qual o marinheiro conta com a ajuda de uma família para derrotar Brutus e salvar Olívia.
Pica-Pau e o senso de justiça da menor minoria possível
O Pica-Pau surgiu diretamente nas telas do cinema, em 1940, durante a chamada Era de Ouro da animação norte-americana. Ao longo de sua carreira, o insano pássaro estrelou várias produções para cinema e TV, além de um filme, produzido em 2017. Embora Pica-Pau: O Filme seja uma produção norte-americana, ele não foi lançado nas telas dos Estados Unidos. Estrelada pela brasileira Thaila Ayala, o filme foi pensado para ser lançado nos cinemas brasileiros.
Isso mesmo, embora Pica-Pau tenha décadas de existência como um grande astro da animação, é no Brasil que ele faz sucesso. A franquia é tida como algo ultrapassado ou esquecido em outros países.
O que explica a grande afeição dos brasileiros em relação ao personagem? O fato de o passarinho ser o rei do politicamente incorreto. Qualquer espectador que já teve acesso aos desenhos animados sabe que Pica-Pau não se dobra a nenhuma regra de conduta que busque restringir a liberdade de ação ou expressão.
Por ser contra vendedores, caubóis, operários, encanadores, vendedores de pipoca ou autoridades. Pica-Pau não tem o mínimo pudor de expressar o que pensa, rindo, apelidando e questionando tudo que julgue ser injusto, independente de quem esteja do outro lado.
Contra o autoritarismo do Estado
Assim, entramos em outro conceito importante na gênese do amalucado ser. Este conceito pode até ser explicado por uma das opiniões de Damares, que afirmou ver no Pica-Pau “um personagem arrogante, egoísta, malcriado, desobediente e malvado”. Se pudéssemos fazer uma análise política do mascote, seríamos capazes de encontrar nele vários toques do individualismo que permeia o libertarianismo.
Seria o Pica-Pau mesmo malvado? Ou, na verdade, apesar de uma ou outra atitude questionável, ele é um grande exemplo de alguém que coloca os desejos da menor minoria possível, o indivíduo, à frente de qualquer coletividade?
Usando de sua grande sagacidade, Pica-Pau consegue burlar e derrotar regras totalitárias quando o sistema se molda para oprimir seres fracos como ele.
Um bom exemplo é o episódio no qual o protagonista descobre que sua carteira de motorista está prestes a expirar. Por meio do agente Leôncio, ele é submetido a uma série de exames e procedimentos injustos, visando sua reprovação (e, por consequência, mais dinheiro encaminhado ao Estado). Então Pica-Pau resolve usar de toda a sua habilidade para se defender, deixando claro que aquele processo é injusto e totalitário.
Herói anti-hipocrisia
Outro exemplo é o famoso episódio das Cataratas do Niágara, no qual Pica-Pau resolve mostrar como o Estado pode ser hipócrita, levando os agentes da lei a violarem as próprias regras e se aventurarem em barris nas cachoeiras, embora isso seja proibido.
Em outra ocasião, Pica-Pau enfrenta uma organização governamental que deseja a desapropriação de sua nova casa, supostamente justificada pela importância daquela corporação. E assim surge um dos mais famosos bordões da animação, dito pelo surpreso funcionário estatal que se vê confrontado pela primeira vez: “Em todos esses anos nessa indústria vital, essa é a primeira vez que isso me acontece”.
O Pica-Pau tampouco se rende ao erro de se julgar superior a qualquer minoria, tratando-a com a hipócrita condescendência vista na esquerda. Quando ele lida com índios, por exemplo, os trata como seres individuais, reconhecendo que existem nativos dos mais diversos caráteres, bons e maus. É uma visão oposta à que prega que indígenas (ou outros integrantes de minorias) devem ser tutelados pelo Estado, permanecendo protegidos como se fossem seres incapazes.
E o que dizer das aventuras de Pica-Pau no Velho Oeste, quando, acompanhado apenas de seu velho cavalo Pé de Pano e de uma violinha, o bicho faz justiça e acaba com a criminalidade? Em várias ocasiões, ele observa a inanição da figura estatal, representada pelo xerife que não age, e resolve intervir na situação, prendendo bandidos e garantindo a paz de uma comunidade que há muito sofria.
Outro ponto importante, mais conservador, da personalidade de Pica-Pau, é a valorização da família e da tradição. Em diversos momentos, ele se reúne com seus sobrinhos para relembrar antigas passagens ou orientá-los quanto ao futuro, sempre mantendo o bom humor.
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Em um deles, Pica-Pau inclusive faz referência a figuras e passagens importantes da história norte-americana, como George Washington, a travessia do Rio Delaware, a assinatura da Declaração de Independência e a expansão para o oeste americano.
É possível citar muitos outros exemplos, tanto do Pica-Pau quanto do Popeye. A conclusão, claro, fica por conta do leitor. Mas, talvez, esses clássicos da animação não sejam parte da existente deturpação da moral e de conceitos vitais para a sociedade por meio de obras culturais, tão verdadeira nos últimos tempos.