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Desde o Viagra, no final da década de 1990, poucos medicamentos subiram na escala de popularidade e se tornaram um marco cultural tão forte quanto o Ozempic, desenvolvido pela Novo Nordisk para tratar o diabetes tipo 2 e que tem entre seus efeitos colaterais a perda de peso. Pode-se pensar em uma revolução científica para tratar, entre outras doenças, a obesidade; mas também de um atalho para atingir um ideal de beleza inatingível, reservado a poucos sortudos.
Até poucos meses atrás, o nome Ozempic pouco ou nada significava para o cidadão comum. Poderia ser um filme, um tipo de dança ou até mesmo um videogame. Por outro lado, hoje em dia, possivelmente restam poucas pessoas que não tenham lido esse nome em algum lugar, que não saibam do que se trata ou, melhor ainda, para que serve. Porque o seu uso não oficial permite atingir um objetivo nada fácil, mas muito cobiçado atualmente: a perda de peso.
Seu nome tornou-se sinônimo de remédios para emagrecer, e pode-se dizer que estamos às portas de uma revolução científica no tratamento da obesidade, mas também diante de uma revolução social e cultural. Porque se Ozempic e seus substitutos que estão penetrando na indústria de perda de peso — Mounjaro, Wegovy, Trulicity — fizeram alguma coisa, foi nos fazer focar em várias questões subjacentes. Uma delas é a forma como nossa sociedade, obcecada pela imagem, entende o (excesso) de peso, além da lacuna de saúde que pode ser aberta entre ricos e pobres, e o poder das redes sociais para popularizar um medicamento.
Um antes e outro depois
"É uma revolução científica." É assim que, de forma clara, o Dr. Javier Escalada San Martín, diretor do Departamento de Endocrinologia e Nutrição da Clínica Universidad de Navarra, se posiciona a respeito dos avanços que o Ozempic trouxe. “Mas não é um tratamento para obesidade, embora muitas pessoas o usem dessa forma. É um tratamento aprovado para diabetes tipo 2.”
Na Espanha, a Previdência Social cobre o custo desse medicamento para pacientes que, além do diabetes tipo 2, apresentam Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 30 (obesidade). “Ou seja, uma pessoa com diabetes e IMC abaixo de 30 não recebe o remédio como tratamento. Não significa que não seja indicado, mas não é subsidiado pela Previdência Social. E isso é um tanto absurdo, porque a proteção cardiovascular agregada que tem sido demonstrada com esse tratamento independe de haver ou não obesidade e, portanto, estamos privando essas pessoas desse benefício”.
Como explica o Dr. Escalada, a semaglutida — o principal agente do Ozempic — imita uma proteína no intestino chamada GLP-1 que ajuda na digestão, estimulando a liberação de insulina após uma refeição e, assim, reduzindo o açúcar no sangue. “Além de melhorar a produção de insulina — o que justifica o uso para diabetes — também tem efeitos sobre o sistema nervoso central. Os reguladores do apetite e da saciedade estão no hipotálamo, e foi observada uma melhora no controle do apetite. Além disso, de forma um pouco mais subliminar, retarda o esvaziamento do estômago, o que provoca uma sensação de plenitude e saciedade gástrica mais duradoura”, comenta. “Além disso, essas moléculas demonstraram não apenas segurança, mas também redução do risco cardiovascular. Há uma diminuição na mortalidade cardiovascular, uma diminuição nos ataques cardíacos e acidentes vasculares cerebrais. Ou seja, Deus veio nos visitar”.
A revolução de alguns
Mas pode ser uma visita reservada para uns poucos sortudos (e ricos). Como comentado anteriormente, apenas em alguns casos o Ozempic é subsidiado pela Previdência Social espanhola e, se os requisitos não forem atendidos, o paciente terá que arcar com os custos. Na Espanha, por exemplo, uma caneta com quatro doses (1 mês de tratamento) sem subsídio fica por cerca de 130 euros [R$ 687 na cotação atual]; e na Grã-Bretanha, de 150 libras [R$ 927]. Mas nos EUA o custo mensal é de US$ 892 [R$ 4.300].
O Wegovy, outro medicamento desenvolvido pela Novo Nordisk com o mesmo composto do Ozempic, mas com dose maior e aprovado especificamente para o tratamento de obesidade associada a outras comorbidades, custa mais de US$ 1.300 [R$6.300] por mês nos Estados Unidos.
Na Espanha, um em cada cinco adultos é obeso. Na Colômbia, 56% da população adulta tem pelo menos excesso de peso e nos Estados Unidos cerca de 40% dos adultos vivem com IMC acima de 30. Ou seja, a obesidade é um problema de saúde pública mundial. Por outro lado, devido ao seu custo, mesmo com todos os benefícios que esses medicamentos podem trazer, seu uso depende do tamanho da conta corrente de cada um, já que o tratamento é por tempo indeterminado — ao ser suspenso a pessoa pode recuperar parte do peso perdido — e, portanto, torna-se uma despesa mensal fixa.
Neste ponto, também vale a pena considerar o paradoxo pobreza-obesidade nos países desenvolvidos: nas regiões mais pobres — ou seja, onde os medicamentos não podem ser pagos — há uma população proporcionalmente maior com obesidade e doenças derivadas, como diabetes tipo 2, acidente vascular cerebral, dislipidemia ou hipertensão, além de uma maior propensão a diferentes tipos de câncer.
Os perigos de frivolizar um medicamento
Além da disparidade socioeconômica que pode se abrir na área da saúde, outro fator relevante no ecossistema que se formou em torno do Ozempic e seus substitutos é sua repentina explosão de popularidade. Embora o Ozempic tenha sido desenvolvido no início da década passada pela Novo Nordisk e esteja no mercado desde 2018, foi no último ano que sua demanda registrou um aumento exponencial, gerando também desabastecimento e problemas de abastecimento para pessoas com diabetes. No espaço de um ano, a contar desde fevereiro de 2022, a demanda por esse medicamento aumentou 111%. Uma das razões para esse aumento repentino pode ser encontrada no TikTok.
O poder que essa rede social tem de viralizar e influenciar a demanda por produtos foi mais uma vez confirmado pelo frenesi que essa droga gerou. A hashtag #ozempic tem mais de um bilhão de visualizações e são inúmeras as contas que contam o “caminho” percorrido com Ozempic e Wegovy. Como se pode constatar pelos vídeos de depoimentos publicados na rede social, esse tratamento tem sido utilizado principalmente para emagrecimento de curto prazo, ou seja, ocasional. No entanto, essa prática traz vários problemas embutidos.
Como explica o Dr. Escalada, não se pode perder de vista que esses medicamentos são exatamente isso: medicamentos. Têm efeitos colaterais — náuseas, vômitos ou cálculos biliares, entre outros — e precisam da supervisão de um profissional para o uso correto. “Realmente, são remédios muito interessantes, mas não podem ser usados só para perder alguns quilos. São drogas desenvolvidas para a obesidade. Não é simplesmente uma injeção e ponto final do problema. É preciso fazer uma abordagem completa do estilo de vida, ver quais fatores estão influenciando nessa situação, análises subsequentes para ver como isso está afetando o paciente”. Ele enfatiza que, assim como o Wegovy, estes são tratamentos desenvolvidos para aliviar a obesidade, não para perda de peso pontual. “As pessoas os usam para isso, é claro. E é muito difícil controlar quando você encontra na internet sem receita. Vai saber o que eles vendem”.
Panacéia de Hollywood
Tanto o Ozempic quanto o Wegovy receberam o apelido de "a droga de Hollywood", ou seja, a injeção dos ricos, porque é lá que se respira dinheiro e onde as celebridades têm recorrido a essas picadas "milagrosas" para atingir seus objetivos físicos. Elon Musk, por exemplo, reconheceu publicamente o tratamento de Wegovy em sua conta no Twitter. Outro caso bastante comentado é o de Kim Kardashian. Há rumores de que ela tomou injeções de Ozempic para perder rapidamente alguns quilos para poder colocar o vestido de Marilyn Monroe com o qual caminhou no Met Gala de 2022.
Pode-se dizer que se tornou uma espécie de símbolo de status. Pelo seu valor económico, pela sua disponibilidade, pelo que proporciona. Perda de peso rápida e aparentemente sem atrito para aqueles que podem pagar. Conforme declarado no site The Cut, "Ozempic faz o trabalho em tempo integral de manter um corpo em perfeitas condições." Ou, pelo menos, em ótimas condições estéticas.
Ozempic, Wegovy e Mounjauro estão mudando mais do que apenas o número na balança ou a circunferência da cintura. Porque o que acontece quando um medicamento contém em si o poder de não apenas tratar a obesidade, mas também de reduzir alguns quilos rapidamente? O que acontece quando o ideal de magreza está —aparentemente — a apenas uma alfinetada de distância?
Como Jia Tolentino se pergunta na revista The New Yorker, esses medicamentos mudarão nossa maneira de entender a magreza (e suas aparentes virtudes) e a obesidade (e suas aparentes falhas de caráter)?
A virtude da Magreza
Desde que a onda do Ozempic foi desencadeada, várias celebridades rapidamente desmentiram seu uso e, mais do que um comentário anedótico, essa reação mostra uma realidade: a magreza ainda é considerada uma virtude. A figura esbelta e definida dessas celebridades se deve a horas de trabalho nas salas de musculação e na barra de flexões, dizendo não aos nachos e sim ao aipo. Ou seja, exercendo força de vontade de ferro.
Embora pensássemos que a era da positividade corporal (que prega a aceitação de todos os tipos de corpos) da última década havia deixado para trás o anseio por um corpo perfeito, parece que foi apenas um período de hibernação até que esses tratamentos voltassem a despertar a ilusão de um padrão físico inatingível. Porque as calças de cintura baixa voltaram às vitrines, o culto à magreza voltou a reinar nos canais online e, segundo alguns, é iminente o regresso ao heroin chic — tendência dos anos noventa com Kate Moss como porta —estandarte que se rendia à aparência abatida.
Podemos dizer que — por uma beliscada semanal para toda a vida — a magreza foi democratizada? Claro que não. Se algo ficou claro nos últimos meses, é que magreza ainda é poder; em particular, poder econômico. Porque o uso de Ozempic e Wegovy para perda de peso a curto prazo trouxe consequências reais para os pacientes que mais precisam desses medicamentos: por um lado, para o tratamento do diabetes e, por outro, para o controle crônico do peso. Algumas companhias de seguros, por exemplo, recusaram-se a cobrir o Wegovy por considerá-lo um 'remédio de vaidade'.
Como se vê, vários são os debates que se abriram com esta nova revolução científica. No entanto, como escreve Derek Thompson no jornal The Atlantic, em vez de uma revolução na saúde pública, por enquanto, parece ter reduzido “a complexa interação de genes, ambiente, dieta, metabolismo e exercícios a uma simples injeção com um preço de luxo”. Ou seja, pode ser que, hoje seja um avanço ao alcance de poucos que, considerando a finalidade para a qual está sendo utilizado, não precisem dele. Podemos falar de uma revolução científica, sim. Mas a revolução cultural ainda está para ser vista. Porque mais do que uma tábua de salvação para pessoas com obesidade, parece que ela está se firmando como uma via rápida para alcançar um corpo digno do Instagram.