Fábio de Melo não inaugurou a era dos “padres pop” no Brasil – mas, certamente, foi o primeiro a se tornar conhecido no país inteiro por seu senso de humor afiado e informalidade. No entanto, por trás de sua imagem leve, há uma personalidade conflituosa e, muitas vezes, melancólica, que ele mesmo nunca fez questão de esconder em entrevistas.
‘A Vida É Cruel, Ana Maria’, seu recém-lançado décimo sétimo livro (e o primeiro pela editora Record), trata justamente dessa sua faceta intimista. Composta por “diálogos imaginários” com sua mãe, morta em 2021 e mencionada no título, a obra é um mergulho nos questionamentos mais profundos do sacerdote e escritor mineiro – e traz revelações extremamente pessoais. A começar pelo luto que ele enfrentou recentemente.
“Depois que morre a minha mãe, morre também a minha obrigação de ser feliz”, diz a epígrafe do livro, anunciando o tom da conversa mental do padre com Ana Maria, vítima da Covid aos 83 anos (e que, por coincidência ou não, tinha os nomes da avó e da mãe de Jesus).
Um dos temas da obra é o amor e suas ambiguidades. Especialmente o materno: “A maternidade é um mar bravio que singramos à custa de muitos desastres. Mas é também a arca que nos salva de muitos dilúvios”, afirma, sempre de forma aforística.
Outro tópico de destaque, e altamente confessional, dá conta de sua saúde mental. “Você nunca soube dos transtornos depressivos que eu enfrentei. Poucos souberam. O desejo de morrer me assombrava constantemente. E ele me envergonhava. Sobreviver era bem mais do que resistir. Era preciso superar a compreensão promíscua que tinha de mim. Eu me enxergava muito pior do que realmente era.”
O padre ainda faz críticas aos rumos da humanidade, que ele acredita em estar em um franco processo de empobrecimento espiritual e superficialização. “Se a superficialidade não for estancada, não teremos cientistas no futuro. O conhecimento especializado exige foco, paciência, constância, permanência, insistência, perseverança, virtudes raras entre nós. Ou você acha que as grandes descobertas científicas são feitas pelos que varam as noites na boemia, ou pelas hordas que emendam uma festa na outra, que vivem em constante estado de entretenimento?”, diz.
De passagem por Curitiba na última segunda-feira (20), quando participou de uma sessão de autógrafos para 250 fãs em uma livraria, Fábio de Melo conversou com a reportagem da Gazeta do Povo. Na entrevista a seguir, ele fala sobre o novo livro, a superação das diferenças entre pais e filhos, o conflito no Oriente Médio e, claro, o processo de luto que motivou o lançamento de ‘A Vida É Cruel, Ana Maria’.
Esse é o título mais pesado de todos os seus 17 livros. É um aviso para o leitor de que os temas tratados na obra são dolorosos?
O livro é uma reflexão sobre a vida. A vida que eu vivi ao lado da minha mãe e a vida que eu a vi viver. E a conversa com ela parte de situações extremamente difíceis. Nesse sentido, é claro que a narrativa acaba abordando as dimensões mais pesadas da existência. Como a finitude, a precariedade do amor... Porque o amor, embora seja a realidade mais sublime que nós podemos experimentar, é também a que mais nos causa desconforto. É desconfortável amar, é desconfortável saber que você vai perder a pessoa amada. Então o livro vai abordando muitas questões existenciais que muitas vezes são penosas para nós – e que, talvez, por causa da nossa correria, a gente acabe sem pensar nelas. A gente vive sem refletir sobre essas questões.
No final do livro, o senhor afirma que “experimentamos a definitiva [compreensão da] finitude como quem está sendo alfabetizado”. Em que momento percebemos que esse processo de alfabetização foi concluído?
Filosoficamente, há uma corrente que diz que nós podemos experimentar a morte com a morte do outro. A única possibilidade que nós temos de experimentar o morrer antes de morrer é quando morre alguém do nosso lado que nos é muito caro. Ou então quando sentimos o impacto que a morte de uma pessoa muito jovem causa sobre nós. Como foi a morte da Marília Mendonça, do Paulo Gustavo. A finitude do outro nos lembra que nós somos finitos também. Muitas vezes, a dinâmica que nós escolhemos para viver não inclui o pensar sobre a finitude. É um tema ardiloso que a gente costuma jogar para baixo do tapete. A não ser que a gente passe pela experiência de uma enfermidade que nos lembre: “Opa, sou finito também!”. Mas a experimentamos de fato quando começamos a perder as pessoas que compõem a nossa ambiência emocional e afetiva.
Sua mãe foi vítima da Covid, como o Paulo Gustavo. E foi um tipo de luto que outras pessoas vivenciaram ao mesmo tempo, por se tratar de um período marcado pela pandemia. Qual foi a maior dificuldade de passar por esse processo, ao mesmo tempo individual e coletivo?
A grande dificuldade do luto da Covid, a meu ver, foi que ele nos privou dos rituais que nos ajudam a organizar esse luto. Você não poder se despedir da pessoa que faleceu é muito doloroso. Tanto é que, quando passei pela experiência, entrei em profunda comunhão com todas as pessoas que tiveram que sepultar os seus entes queridos sem que pudessem viver e organizar o ritual da despedida.
Em outro trecho do livro, o senhor diz: “Querendo ver, afaste-se”. Passados dois anos da morte de sua mãe, o que o senhor conseguiu enxergar com mais clareza sobre ela e o relacionamento entre vocês dois?
A experiência do distanciamento favorece muito a nossa visão das coisas. Quando estou muito envolvido com um problema, dificilmente tenho uma solução. Preciso dar um passo atrás, acalmar o meu coração, a minha mente, e olhar para aquela realidade que é problemática de uma forma mais pacificada. O distanciamento da minha mãe, especialmente após a morte dela, me ajudou a perceber o mosaico como um todo. Quando fui filho dela, nas oportunidades que tive de ser filho dela de forma presencial, nem sempre consegui absorver a grandeza daquela maternidade. Agora, que se findou o tempo de ser filho de forma corpórea, física, abriu-se um grande horizonte que foi ver a grandeza espiritual que ela desenvolveu ao longo da vida.
O senhor afirma que não conseguiu ter, pessoalmente, os diálogos incluídos no livro com sua mãe porque ela não estudou e não compreendia as dimensões filosóficas e teológicas dos temas tratados. O que diria para as pessoas que têm problemas em se comunicar com os pais, seja por diferenças intelectuais, de valores e até políticas?
A forma mais inteligente de estar ao lado das pessoas que nós amamos é amando. Acho que é a única coisa que nos salva. Inclusive, a organização do luto só é possível quando a gente tem uma consciência tranquila com relação ao outro. Quando você percebe que há obstáculos na compreensão, porque o outro não alcança a sua forma de pensar, opte por não ter razão. Opte por ficar em paz, em vez de ter razão (risos).
Por que o livro é assinado apenas por “Fábio de Melo”, sem o título de “padre”, como em outros lançamentos anteriores?
Acho que é bacana retirar o título de padre para ficar só o escritor. Porque, muitas vezes, quando uma pessoa pega um livro escrito por um padre, ela pode ler na esperança de que vai encontrar algum conteúdo religioso. E nem tudo que escrevo tem uma necessidade de comunicar um conteúdo religioso institucional. Ele é religioso porque tudo aquilo que é humano também é essencialmente religioso. Mas foi uma maneira de trazer uma universalidade ao texto.
O senhor já fez diversas viagens para a Terra Santa, inclusive conduzindo fiéis brasileiros em excursões de turismo religioso. Como recebeu a notícia da guerra entre Israel e o Hamas?
Sim, eu já estive presente ali muitas vezes. É um conflito milenar, com uma dificuldade enorme de ser resolvido. Lamento muito que, num momento em que nós esperaríamos estar num processo avançado de evolução humana, ainda tenhamos guerras. Guerras por territórios, por dignidade. É com muita tristeza que olho para tudo aquilo. É o que posso dizer.
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