Pais homossexuais (dois homens biológicos) de um menino de 9 anos que se identifica como menina querem pressionar a Federação de Patinagem do Paraná a aceitar que a criança entre no banheiro das meninas acompanhado por um deles no campeonato estadual marcado para os dias 24 e 25 de março, em Londrina, no Norte do Paraná.
A entidade esportiva aceitou, pela primeira vez no Brasil, a participação do menino na categoria feminina – ele se veste e age como menina –, mas indicou que ele só poderá utilizar o banheiro das meninas se estiver sozinho ou acompanhado de responsável do sexo feminino. Como a criança está sob os cuidados de um casal homoafetivo masculino, o casal Gustavo Uchoa Cavalcanti e Cleber Reikdal – técnicos na Academia de Patinação Footwork, em Curitiba –, os dois pais viram preconceito na decisão e querem pressionar a entidade a mudar essa medida, tendo buscado também a Defensoria Pública do Paraná. Além disso, eles alegam que não está claro ainda que, se quiser, a menina trans será autorizada a entrar sozinha no banheiro feminino, já que a ata de assembleia realizada na Federação cita apenas que ela deverá ser acompanhada por um acompanhante do sexo feminino.
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“No ano passado, essa menina [menino biológico que tinha então 8 anos] fez a inscrição como um menino [em uma competição]. Mas era uma modalidade de novatos e no dia do campeonato os pais que a adotaram, que são técnicos de uma escola de patinação filiada à federação, apresentaram uma documentação a qual dizia que ela era trans, com um laudo médico comprovando isso e pedindo a nossa colaboração para que ela fosse chamada pelo nome social”, afirma Ricardo Di Petroro, presidente da Federação de Patinagem do Paraná.
“Como era uma categoria para novatos, que ela participava sozinha, para não trazer nenhum constrangimento à menor, acatamos a decisão da médica e ela foi chamada com o nome social que eles escolheram, e tratada como uma menina”, diz Di Petroro. (Sobre esse ponto, Cleber, pai da criança trans, contesta essa informação e afirma que a filha não teria sido chamada pelo nome social, mas pelo nome no registro civil).
Como no ano seguinte a criança entraria na categoria iniciante e disputaria de fato com as meninas, a entidade, em assembleia, decidiu seguir as recomendações do Comitê Olímpico Internacional (COI), divulgadas em 2015, que não cita crianças trans, mas recomenda a inclusão desses atletas e define em que condições mulheres trans (homens biológicos) podem ser aceitas na categoria feminina. Mas havia um problema a discutir: em qual banheiro ela entraria.
“No ano passado, nós tivemos um constrangimento, que um dos pais dessa menina trans entrou no vestiário feminino e constrangeu algumas mães de outras meninas. Na época nós conversamos com eles, explicamos o fato, e foi resolvido na hora sem maiores constrangimentos. Para esse ano, para evitar isso, nós colocamos na ata que ela está apta a participar do campeonato, que está liberada a utilizar os banheiros femininos, só colocamos a proibição de ela entrar com os pais”, diz Di Petroro.
Uma das mães presentes no ano passado conta que, como o universo da patinação é permeado por questões homossexuais, as famílias em geral não nutrem preconceitos em relação ao assunto. O incômodo, entretanto, veio com a presença de um homem no banheiro. “São muitas atletas entrando e saindo do banheiro, nem sempre têm box reservado. E elas ficam nuas porque vão trocar de roupa. Dentro da escola, existem atletas que podem ajudar essa criança, técnicas mulheres. Do mesmo jeito que eu respeito os homossexuais, também é preciso haver respeito com os heterossexuais. Tem que ter limite”, diz Tatiana Cristina do Nascimento, mãe de uma atleta que pratica patinação na Escola Curitibana de Patinação (ECPA).
No ano passado, ela lembra o susto das presentes quando viram um dos pais do menino dentro do banheiro olhando para elas. “Eu estava com minha filha e mais uma coleguinha dela e a mãe da colega. Estávamos nos boxes reservados para trocar de figurino. Quando saímos, ele [Cleber] estava parado, dentro do banheiro, de braços cruzados olhando para nós”, lembra. Naquele momento, as mães o conheciam como funcionário de uma escola de patinação, porque ninguém sabia que ele era o pai de uma menina trans e fizeram uma representação junto à Federação para reclamar da presença dele no local.
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O pai da menina trans, Cleber, por outro lado, classifica como “maldade” exigir que a filha entre com uma mulher, já que ela tem dois pais e nenhuma mãe. Ele também assegurou que outros pais podem entrar com suas filhas no banheiro, informação não confirmada pela Federação. E afirmou que a Federação não respeitou o nome social da menina em todos os campeonatos. “Eu poderia entrar no banheiro com a minha outra filha, mas eu não posso entrar com essa”, afirma Cleber.
A insistência de entrar com a menina trans, de acordo com Cleber, é o medo de que ela sofra algum tipo de retaliação. A menina foi adotada em 2016 e, segundo o pai, ela teria sofrido discriminação no lar em que morava. “Não me sinto confortável de deixá-la sozinha, sendo que alguém possa abordá-la e falar alguma coisa para ela”, afirma.
Menino em competição de menina
O documento do Comitê Olímpico Internacional de 2015, que fundamenta a decisão da Federação de Patinagem do Paraná de permitir que a menina trans participe da categoria feminina, não cita como as federações devem agir em relação às crianças. No caso dos adultos, quando o atleta é um homem biológico e se identifica como uma mulher é necessário controlar o nível de testosterona para que possa ser incluído na categoria feminina.
“Este é o primeiro caso no Brasil de uma competição que autoriza uma criança transexual a competir na categoria feminina em qualquer esporte. Sei que existe caso nos Estados Unidos no atletismo”, ressalta Bruno Cavalcante de Oliveira, diretor jurídico da Federação de Patinagem do Paraná.
Para fundamentar a decisão de permitir a participação da menina trans na categoria feminina, a entidade seguiu o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “O ECA dispõe no artigo 18 que a criança não passe por situação vexatória, que seria ela, vestida como uma menina, de collant, fosse chamada com nome de menino e na categoria masculina. Isso geraria uma comoção”, diz.
A diretora técnica da Federação, Fabiana Consentino, que decidiu se abster na votação que aprovou a participação da menina trans nessa categoria, vê com cautela essa decisão. “Acho que a criança tem o ECA que a ampara. Mas como não temos nenhum estudo comprovando o benefício ou não da parte física de um transgênero competindo em igualdade com um gênero feminino nessa idade, e como não quis prejudicar a atleta em questão, eu preferi me abster”, afirma Fabiana.
Segundo ela, em adultos já está comprovado que, mesmo aqueles que já passaram por tratamento hormonal e têm nível de testosterona menor do que o nível máximo permitido, saem em vantagem pela composição corporal em relação às mulheres, em qualquer competição. A patinação utiliza força, impulso, rotação, sustentação e, por isso, comparado a um corpo masculino, o corpo feminino estará sempre em desvantagem.
“É só analisar a patinação no gelo: quantas rotações no ar um homem dá e uma mulher consegue dar, em qualquer idade. A mesma coisa na patinação sobre roda, em que homens dão três voltas com folga e pouquíssimas mulheres conseguem”, completa Fabiana.
Em relação às crianças, porém, ela frisa que não há pesquisas definitivas ainda – e nem se, psicologicamente, é benéfico para a criança participar dessa forma nas competições.
A decisão da Federação de Patinagem do Paraná foi aprovada pela Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação, em assembleia no dia 10 de março, na presença de presidentes das onze federadas. “Desde o primeiro momento ela foi autorizada a participar da categoria feminina. Nunca foi vetada a participação dela”, reforçou Moacyr Neuenschwander Filho, presidente da Confederação. “O fato de que ela possa talvez ter alguma vantagem sobre as demais meninas que estão competindo não compete a nós identificar, esse aspecto fisiológico. Acredito que temos que promover a inclusão, aceitar a situação e não ter preconceito”.
Sobre o uso do banheiro, Juliana Bicalho, fundadora da Federação de Patinagem do Paraná – foi presidente nas duas primeiras gestões da entidade e, agora, a escola dela, a Dancing Patinação, em Londrina (PR), é filiada à Federação – frisa que em nenhum momento a menina trans foi impedida de entrar no banheiro feminino, apenas de ser acompanhada por um homem.
“Ela pode ir acompanhada ou desacompanhada. Mas, para entrar acompanhada no banheiro feminino, precisamos de alguém que se identifique com o gênero feminino. Porque do mesmo jeito que garantimos a individualidade dela temos as outras alunas e mães, que também frequentam o mesmo local chamado banheiro feminino. Nenhum pai entra com a sua filha. Nossa preocupação é que todos estejam bem, tanto ela quanto as outras meninas”, afirma.
A defensora Camille Vieira da Costa, que está mediando o caso na Defensoria Pública do Paraná, fará uma reunião com os pais e representantes da Federação para encontrar uma solução que respeite os interesses de todos os envolvidos. A Defensoria informou ainda que o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos e o Núcleo da Infância e da Juventude, coordenados por Cínthia Azevedo Santos e Marcelo Lucena Diniz, respectivamente, estudam a criação de um protocolo para orientar futuros casos.
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