Na Islândia, quase não nascem mais crianças com síndrome de Down – o governo local informa que são apenas duas ou três por ano, na média da última década. Na Dinamarca, de todas as gestações de fetos com a síndrome, 98% não chegam a nascer. O percentual é de 90% no Reino Unido e 77% na França, para os casos em que a condição é diagnosticada durante a gestação.
Mas isso não significa que a medicina encontrou alguma forma de tratar a síndrome, causada pela presença de um cromossomo extra nas células. Esses países estão simplesmente investindo em técnicas de identificação. E, quando reconhecem a condição, as mães são fortemente orientadas a abortar esses bebês.
Essa é uma tendência que vem se espalhando pela Europa, e pode levar o continente a eliminar a síndrome dentro de uma geração. No continente como um todo, 92% das gestações de bebês com a síndrome não são concluídas – a estimativa, a mais confiável disponível, deve estar defasada, porque foi produzida em 1999 e, neste meio tempo, muitos países ampliaram suas taxas de aborto de portadores da síndrome, caso da Finlândia, que entre 2008 e 2018 saltou de 50% para 70% a taxa de gravidezes interrompidas em caso de diagnóstico de Down. Como definiu a atriz americana Patricia Heaton em um artigo sobre o tema, “a Islândia não está eliminando a síndrome. Está apenas matando todo mundo que a tem. É uma grande diferença”.
Em geral, esses países adotam o mesmo procedimento: durante o processo de acompanhamento do pré-natal, realizam exames capazes de identificar a diferença na composição genética das células dos bebês – geralmente coletam amostras do líquido que cerca o bebê, ou fazem biópsia de uma pequena porção da placenta. Na sequência, encaminham as mães para serviços de atendimento público que oferecem a elas a possibilidade de evitar o nascimento do feto.
“Ação imoral” e eugenia
Anualmente nascem cerca de 3 a 5 mil crianças com síndrome de Down em todo o mundo, o que significa que, se todos os países seguissem o exemplo da Islândia, em uma década seriam eliminadas até 50 mil vidas, o equivalente a um sexto das 300 mil pessoas portadoras de Down atualmente no Brasil.
São pessoas que, na média, poderiam viver por 60 anos – cinco décadas atrás, numa época em que ainda era comum internar portadores da síndrome em manicômios, a expectativa de vida não passava dos 20 anos. O aumento da expectativa de vida é resultado da melhoria dos padrões alimentares e médicos, já que a síndrome, cujos primeiros registros datam desde, pelo menos, o ano 3.200 a.C., não tem cura.
Ainda assim, diferentes pesquisas de opinião, datadas tanto de 1983 quanto de 2012, indicam que a maioria das mães, ao saber que os filhos são portadores da síndrome, tendem a concordar com o aborto.
“É imoral qualquer entidade estatal dar suporte, declarado ou não, a políticas que induzem mães e provocar abortos”. afirma o médico Stephen Camarata, professor de psiquiatria da Universidade Vanderbilt, especialista no desenvolvimento infantil e em condições que prejudiquem o desenvolvimento da linguagem, como autismo e síndrome de Down.
“A história ensina que leis fortes, aplicadas de forma ativa, são fundamentais para proteger os direitos – e as vidas – das pessoas vulneráveis, incluindo os portadores de deficiências”, prossegue o professor. “No momento em que uma sociedade decide eliminar a síndrome de Down ou qualquer outra situação considerada ‘anormal’, ela está caminhando para apoiar tentativas de criar ‘raças perfeitas’”.
Reação
A expressão “raças perfeitas” utilizada pelo professor, em referência a práticas nazistas de castração e genocídio de pessoas portadoras de deficiências, costuma ser repetida na Alemanha, onde a prática do aborto de fetos portadores da síndrome também é comum, e incomoda pela semelhança com ações de extermínio. “Na Europa em geral, a legislação a respeito do aborto viola os direitos mais fundamentais das pessoas portadoras de deficiência”, escreveu Alice Neffe, conselheira legal da organização Alliance Defending Freedom (ADF), em artigo sobre o problema.
Campanhas públicas contrárias à prática acontecem em diferentes países europeus. Na Inglaterra, por exemplo, Heidi Crowter, uma cidadã britânica de 24 anos, portadora da Síndrome, entrou na Justiça para tentar impedir que a legislação facilite o aborto nesses casos – a lei atual permite o aborto até 24 semanas, mas no caso de bebês com síndrome de Down as mães são autorizadas a interromper a gestação até a última semana de gravidez. “Neste momento, no Reio Unido, bebês podem ser abortados se forem considerados ‘seriamente incapacitados’. Essa definição inclui a mim, apenas porque tenho um cromossomo extra”, ela declarou, em fevereiro.
Também na Inglaterra, o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, já se manifestou usando comparações com o regime de Adolf Hitler: “O Reino Unido e a Europa têm praticado eugenia”, ele declarou, em 2018. “Ainda que as motivações e as razões sejam diferentes da Alemanha da década de 1930, o resultado é o mesmo”.
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