O texto abaixo é um excerto do livro de bolso "O mínimo sobre Marx" (Editora O Mínimo, 2024), de Marize Schons. Como a autora explica em sua introdução, a intenção da obra é “equilibrar propósitos introdutórios sem renunciar à inevitável complexidade do tema. Considero que a discussão panfletária é vulgar e simplificadora, assim como advogo a favor de que Marx não seja excluído dos estudos dos seus potenciais antagonistas intelectuais ou políticos”. Marize Schons é mestre em antropologia e doutora em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e atua como docente no curso de mestrado em economia da OMMA.
O que Karl Marx queria fazer com sua teoria
O materialismo proposto por Marx presume que a matéria tem primazia em relação à mente, o que significa afirmar que as ideias não existem de maneira independente das condições materiais. A intenção de Marx e Engels de desenvolver um projeto “científico” frente às propostas do “socialismo utópico” é sustentado, primeiro, pelo pressuposto que a realidade pode ser conhecida objetivamente e, segundo, de que existe um intercâmbio entre a “matéria” e a “realidade objetiva”. Essa proposta específica de materialismo não busca meramente descrever objetos concretos isolados, mas sim conceber uma proposta teórica e metodológica capaz de explicar o desenvolvimento histórico das relações sociais.
Apesar de autores como Karl Popper e Max Weber questionarem o patamar científico desta proposta, ironicamente, Marx foi a primeiro a colocar seu próprio projeto teórico no centro da distinção entre “ideologia e verdade”. Isso produziu efeitos irreversíveis na discussão sobre o que é conhecimento, tendo em vista que Marx inaugura a ideia de que estar do “lado certo da história” — ser, portanto, “científico” — significa estar subjugado ao entendimento marxista de verdade. Por essa razão, o programa do socialismo científico restringe a ciência a um único caminho: o do materialismo histórico.
Essa postura muitas vezes justificou uma visão radical de reduzir qualquer proposta divergente à mera ideologia.
Como a proposta marxista vê o Estado
A teoria de ideologia de Marx é, na verdade, uma dura crítica à filosofia moderna e liberal e, especialmente, às instituições e conceitos jurídicos produzidos a partir dessa tradição como, por exemplo: o Estado Moderno, a soberania, o direito natural, a liberdade, a igualdade perante a lei, a legitimidade da autoridade política, a democracia representativa e a legalidade.
A discussão sobre o Estado na teoria marxiana geralmente desperta controvérsias. Considerando que partidos no campo da esquerda tendem a ser favoráveis ao modelo de Estado centralizador, essa constatação, por mais que verdadeira, não pode ser compreendida como um resultado imediato dos textos originais de Marx.
Apesar desse tipo de erro ter suas razões — tendo em vista que a teoria social marxista inspirou processos revolucionários que produziram um modelo ditatorial de Estado — o pensamento de Marx não oferece uma teoria sistemática sobre o Estado.
Isso não quer dizer que não podemos encontrar considerações sobre esse tema de maneira destacada nos textos originais.
Em termos gerais, a concepção marxista do Estado representativo burguês mantém um tom estritamente crítico. O Estado é uma superestrutura e, por isso, não existe de maneira independente das condições sociais e econômicas. A partir desse raciocínio, Marx considera que o desenvolvimento da indústria moderna foi responsável pela formação de um tipo específico de Estado, que passou a ser detentor exclusivo do poder político e da administração dos mercados internacionais.
A evolução do capitalismo não só implicou no desenvolvimento da produção de mercadorias e na expansão do comércio, como também produziu novas instituições jurídicas capazes de proteger os interesses da classe burguesa emergente que mobilizou, através do Estado, políticas protecionistas que os protegiam dos competidores internacionais, leis que beneficiavam monopólios e conquistas de privilégios assegurados pelo direito de propriedade. Dessa forma, o Estado consiste em um escritório de administração dos interesses burgueses, sendo as promessas de uma liberdade através da democracia representativa fruto de uma ilusão interessada da classe dominante disposta a perpetuar as relações de exploração.
Apesar da frágil concepção marxista original sobre o Estado Moderno, sua teoria mantém coerência ao admitir que mesmo que o Estado Absolutista tenha obtido recursos através da emergente classe produtiva burguesa, é exatamente esse processo histórico econômico (em que a burguesia passa a deter o controle dos meios de produção) o principal elemento para compreender os motivos que levaram o modelo Absolutista [que Marx associa ao feudalismo do regime anterior à Revolução Francesa] a ser superado pelo Estado burguês.
Essas considerações não esgotam o assunto do Estado na tradição política e intelectual marxista posterior. Na verdade, essa discussão ocupou um lugar muito mais relevante entre os marxistas durante o século XX, sendo um assunto recorrente, apesar de diferentes formas, nas obras de Lênin, dos austromarxistas, dos neomarxistas e do marxismo estrutural.
Ainda que o tema do Estado não seja central nos textos originais, o projeto revolucionário proposto por Marx e Engels incluiu o Estado na condução da transformação social pós-capitalista. A aposta da tomada do poder político e a estatização dos meios produtivos estão relacionadas, em grande medida, com as previsões do colapso do sistema capitalista. Contudo, o papel do Estado para a revolução foi especialmente questionado pelos anarquistas como Bakunin (1989), personagem importante na disputa com Marx pelo controle da Primeira Internacional [referência à Associação Internacional dos Trabalhadores fundada em 1864, em Londres, que reunia uma variedade de correntes do movimento operário, incluindo socialistas, anarquistas e sindicalistas].
Um dos principais focos das críticas de liberais, libertários e conservadores é que a apropriação estatal dos meios produtivos não é um processo que irá aniquilar as desigualdades, mas sim é um processo que irá aprofundar relações de coerção a partir da concentração de poder e recursos nas mãos de uma classe partidária.
A comum explicação do ponto de vista de alguns marxistas é que um Estado socialista, que corporifica os interesses proletários, supostamente é capaz de distribuir os recursos de maneira mais justa e “garantir os direitos fundamentais dos trabalhadores” por serem a expressão de uma nova etapa da história. Isso quer dizer que a promessa revolucionária proporciona uma transformação geral na sociedade, reconfigurando, assim, não só as relações socioeconômicas, mas também transformando a natureza das instituições políticas.
Portanto, a revolução implica na superação tanto do modo de produção capitalista quanto das instituições burguesas que dele decorrem. O socialismo, chamado por Marx e Engels de ditadura do proletariado, é um estágio transitório para a construção de uma sociedade comunista superior.
O Estado burguês é um produto das contradições de classe na sociedade capitalista, que serve como um mecanismo de coerção da classe dominante sobre a classe dominada. Em uma sociedade sem classe como a sociedade comunista, o Estado supostamente perderia sua importância.
Nesse entendimento profético, estima-se, portanto, que a estatização dos meios de produção será capaz de eliminar gradualmente tanto a exploração quanto a necessidade do Estado. Dessa forma, a sociedade comunista é vagamente descrita como uma sociedade sem Estado em que as classes sociais são abolidas, a propriedade dos meios produtivos é comum a todos e a distribuição dos bens e dos recursos é amplamente igualitária.
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