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Para o bem do Brasil, está na hora de abrir a caixa-preta do BNDES

A JBS conseguir captar R$ 12,7 bilhões junto ao BNDES | Tomaz Silva/Agência Brasil
A JBS conseguir captar R$ 12,7 bilhões junto ao BNDES (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Poucas coisas tornaram-se tão rotineiras no dia a dia de quem acompanha a crise política e econômica pela qual o país atravessa, do que nossa capacidade de nos surpreendermos com escândalos que já parecíamos ter certeza há anos. Imagine que: 

- O estádio Mané Garrincha, construído em Brasília para sediar a Copa do Mundo, ao custo de R$ 1,5 bilhão, ou 250% mais que seu orçamento inicial, foi superfaturado e rendeu milhões em propinas; 

- A decisão de colocar em uma única empresa, a JBS, 25% de tudo que o BNDES colocou na compra de participações de cerca de 440 empresas, foi uma decisão política; 

- Forçar a Petrobrás a comprar de grandes empreiteiras nacionais as plataformas e navios necessários para explorar o pré-sal, foi uma decisão tomada com base em pagamentos de propina, e não uma escolha econômica; 

- Entregar a Odebrecht 70% dos recursos emprestados para obras no exterior, foi uma decisão tomada com base no pagamento de propinas; 

Pode parecer improvável que diante de todos estes fatos, ainda possamos descobrir novidades realmente relevantes, mas não se esqueça que você está no Brasil, onde o improvável é apenas a manchete do dia seguinte. De tudo aquilo que ainda há por ser descoberto, certamente nenhum superará, ao menos em tamanho, a abertura da caixa preta do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, e motivos para isso não faltam. 

Você emprestou R$ 11,45 mil aos ricos empresários nacionais

Apenas entre 2008 e 2014, em um curto período de 6 anos, o banco repassou a empresários, cerca de R$ 1,1 trilhão. 

Em uma conta rápida, cada um dos 96 milhões de trabalhadores brasileiros, emprestou R$ 11,45 mil aos empresários brasileiros, sendo 68% deste valor para cerca de mil grandes empresas, aqueles que faturam acima de R$ 300 milhões. 

Em outras palavras: se ficou mais difícil pra você financiar aquela casa própria, ou mesmo parcelar um celular no cartão, talvez as próximas manchetes sobre a crise brasileira lhe ajudem a entender o porquê disso tudo. 

Sob a desculpa de impulsionar a economia brasileira, o banco brasileiro de fomento emprestou a estas empresas uma quantia superior a todo investimento americano realizado para recuperar a Europa no pós guerra. Para recuperar a Europa devastada pela segunda guerra, os americanos desembolsaram US$ 13 bilhões (ou $100 bilhões — R$ 315 bilhões ao câmbio de hoje). 

Ao contrário do que ocorreu por lá porém, os efeitos por aqui foram bastante distintos. Nossa taxa de investimentos cresceu de maneira pífia, saltando de 18,2% do PIB em 2008 para 18,3% em 2014. A conta porém, continua sendo paga. Nossa dívida pública no mesmo período mais do que dobrou, atingindo R$ 4,1 trilhões. 

Tudo isso em um esquema dos mais simples. Como não poupa dinheiro, o governo recorreu a empréstimos para fazer a operação. Pagando a taxa Selic na época, em torno de 14,25%, e emprestando ao BNDES ao custo de 5,5%. A diferença, do chamado spread negativo, foi paga pelo tesouro (ainda que durante anos o governo tenha tentado pedalar esta conta). 

Quem recebe Bolsa Família sustenta o luxo de Joesley

Apenas em 2015, pagamos R$ 57 bilhões nesta diferença, ou duas vezes mais do que o gasto com os 12 milhões de beneficiários do programa Bolsa Família. 

Convém lembrar que na prática, cada cidadão do Bolsa Família também paga impostos sobre o que recebe, segundo o IPEA, 53,9% da renda desta parte da população vira impostos, tudo para sustentar o outro grupinho, sob a mais do que desconfiável desculpa de ajudar a economia. 

Segundo Joesley, um dos donos da JBS, a maior beneficiária do banco na área de alimentos, conseguir captar R$ 12,7 bilhões junto ao BNDES, lhe custou o pagamento de R$ 640 milhões em propina, ou 5% do total. 

Casos como estes porém não são isolados, e sequer novidade. Muito antes de os irmãos Batista se sentirem ameaçados a ponto de propor uma delação ao Ministério Público, a revista Época já havia noticiado todo o caminho percorrido pela cervejaria Itaipava para conseguir junto ao Banco do Nordeste, agente do BNDES na região, um empréstimo de R$ 300 milhões, em que fosse dispensada a necessidade de garantias. Por coincidência, poucos dias depois de aprovado o tal empréstimo, os donos da tal cervejaria realizaram uma doação de campanha de R$ 17,4 milhões. 

Tamanhas coincidências forçaram o novo governo que tomou posse em maio de 2016, a colocar no banco Maria Silvia, uma costumeira crítica das políticas citadas aí acima. Como primeira decisão, Maria Sílvia nomeou diretores conhecidos por, durante anos, baterem na tecla de que tamanhos apoios ao setor privado deveriam ser revistos, e que o banco precisava não mais ser um grande amigo de empresários amigos de políticos, mas um banco de fomento como se espera: aquele disposto a financiar infraestrutura de longo prazo, e apoiar o país em setores chave. 

O resultado não demorou a aparecer. 

No breve período em que esteve à frente do banco, Maria Sílvia ajudou a diminuir drasticamente os desembolsos, quase desenfreados até então, aumentando o rigor do banco. Na prática, o freio foi tão forte que sobrou dinheiro em caixa, cerca de R$ 100 bilhões, que o banco prontamente devolveu ao tesouro, para que este quitasse parte da dívida pública, reduzindo seus custos. 

Se para a maioria dos brasileiros, ainda que não tenham percebido, a conta deixou de pesar tanto, para os empresários foi um verdadeiro deus nos acuda. Não demorou para que a nova presidente sofresse críticas de todos os lados. 

Há não mais do que um mês, ventilava na imprensa a informação de que o presidente da República se encarregaria de demiti-la do cargo. Dias depois, o país assistiu a um presidente consentir com um empresário dos mais beneficiados, que era preciso tirar a presidente do banco, que atrapalhava seus negócios. 

Com o áudio gravado por Joesley Batista, demitir Maria Silvia tornou-se politicamente inviável. Nada disso porém, impediu que a própria presidente do banco pedisse demissão. A decisão foi daquelas difíceis de encarar, mas mais do que compreensível. Imagine que você está em um emprego onde os homens mais poderosos do país dedicam parte do seu tempo a lhe criticar e tentar cortar sua cabeça. Difícil não é? Felizmente, a notícia ruim acabou não sendo de todo mal. Em seu lugar, assumiu o então presidente do IBGE, Paulo Rabello de Castro. 

Afinal, quem é Paulo Rabello de Castro, o novo presidente do BNDES? 

"Que se dane o governo. Eu não 'tô' aqui nem para produzir dados bons nem dados ruins para ninguém. Os dados são o que são." 

A frase acima é uma resposta daquelas típicas do economista Paulo Rabello de Castro, quando questionado sobre o fato de os dados do IBGE discordarem da premissa defendida pelo governo de que a economia teria revertido a crise e saído da recessão. 

Rabello é com toda a certeza um dos nomes mais improváveis que você poderia imaginar em um governo Temer. Suas críticas ao modelo de estado inchado criado no Brasil nas últimas três décadas são parte constante do livro “O mito do governo grátis”, de sua autoria. 

Ainda assim, o novo presidente do BNDES se destaca na organização e proposição de ideias de um forte cunho social, além de fiscalmente responsáveis. Prática não muito em voga em Brasília. 

Antes de entrar no governo, Rabello foi responsável pelo projeto Cantagalo, que ajudou a regularizar as moradias da comunidade de mesmo nome no Rio de Janeiro. 

Segundo o próprio Rabello, existem no Brasil por volta de 15 milhões de moradias irregulares, cujo valor total chega a R$ 1 trilhão, e que por não terem escritura, impedem que seus donos possam fazer empréstimos em banco utilizando imóveis como garantias para abrir novos negócios, ou simplesmente ter maior segurança para investir em uma reforma. 

O que pode mudar no BNDES daqui em diante? 

No olho do furacão com a criação de uma CPI para investigar a JBS, o banco deve passar por um período intenso de testes e críticas. Tudo isso porém, em mãos certas, deve leva-lo a mudar de posicionamento. Deixando de ser o berço de políticas que privilegiem pequenos grupos, a algo mais amplo. 

Ao longo dos últimos anos, o governo federal tornou-se o maior responsável por crédito no país, atingindo 53% do total liberado por bancos, e aí que começa a mudança. 

Com Paulo Rabello, o banco deve começar a adotar taxas de mercado, sem garantir subsídios. E em que isso muda? Muita coisa, exceto se você for uma grande empresa. Para os menores, que raramente conseguem boas taxas em bancos em geral, o banco ainda mantém-se uma opção. 

Para uma grande empresa, com capacidade de acessar o mercado internacional e emitir títulos em dólar pagando seus 6% ao ano, pagar algo como 14% ao ano no BNDES é praticamente inviável. 

Para Rabello, o banco tornou-se um grande potencializador de desigualdades, ao privilegiar os ricos, e especialmente escolher quem possui o melhor rating de crédito.

Segundo o próprio, ao privilegiar apenas empresas que conseguiriam captar dinheiro no mercado, como a própria Petrobrás, o banco deixou de ser alguém que financia o desenvolvimento, mas um banco que apenas subsidia quem já sabe andar com as próprias pernas. 

É razoável também se esperar que estas mesmas empresas passem a recorrer mais a bolsa de valores, submetendo-se a regras de gestão e tudo o mais que o banco se mostrou incapaz de cobrar até aqui. 

Mudanças como estas são uma base importante para moralizar o jogo, e essencialmente, fruto de sucessivos escândalos que desnudaram as más práticas de gestão. Lava Jato, Zelotes, Greenfield, pouco importa o nome que você dê, o certo é que a cada vez que um Joesley aparece narrando como roubou dinheiro do seu zé, trabalhador assalariado que tem seu FGTS direcionado para financiar o banco, manter este esquema torna-se politicamente mais difícil. 

Há muito o que esperar, mas ainda muito por cobrar. Sorte que agora há quem escute.

*Felippe Hermes é fundador e articulista do site Spotniks

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