Conversando com o meu amigo Paulo Polzonoff Jr., ele me sugeriu que escrevesse este artigo. “Tenta relacionar a literatura com as coisas que vão acontecendo, a pandemia, a CPI, essa loucura toda que estamos vivendo”, disse ele.
Agradeci e disse que gostava da ideia, até porque gosto muito de literatura. Mas depois, quando o papo acabou e voltei para os meus botões, encontrei-me pensando se realmente seria capaz de escrever algo que interessasse minimamente aos leitores e que, de alguma forma, juntasse duas coisas aparentemente tão diferentes: a literatura e, digamos, a CPI e Renan Calheiros.
Demorei um tempo até lembrar do conselho do Prof. Antolini para o Holden Caulfield em “O Apanhador no Campo de Centeio”, pouco antes de ele, adolescente rebelde e desajustado naquela sociedade norte-americana dos anos 1950, abandonar mais um colégio sem terminar o semestre.
“(...) Você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enjoada, pelo comportamento humano. Você não está de maneira nenhuma sozinho nesse terreno, e se sentirá estimulado e entusiasmado quando souber disso. (...) Muitos homens, muitos mesmo, enfrentaram os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quiser”.
É isso. A literatura, como dizia C.S. Lewis, ensina-nos que não estamos sós. Que não somos os únicos a ficar desencantados, desanimados e até enjoados com um comportamento tão vil e tão cínico e tão desumano quanto o de um Renan Calheiros. E isso, de alguma forma surpreendente, nos torna mais humanos, mais solidários, mais sofridos, sim, mas ao mesmo tempo mais unidos. “Não sou eu o único que fica enjoado com um homem como esse. Ainda bem”.
A literatura nos ensina ainda que não somos os únicos a ficar empolgados, animados e apaixonados para contribuir com o nosso verso nesse maravilhoso e surpreendente teatro da vida, como dizia Walt Whitman num dos seus melhores poemas, no qual, olhando para a sua própria vida e a para a sociedade sórdida que o rodeava, perguntava: “O que vale a pena por tudo isto? Resposta: que você está aqui, que a vida e a identidade existem, que o poderoso drama da vida continua e você pode contribuir com um verso”.
Sim. Se você conhece esse poema (O me! O Life!), terá percebido que Whitman escreveu play onde traduzi por drama. E terá razão. Mas em minha defesa e em defesa da minha tradução, também se pode traduzir dessa forma. A ação do teatro, a peça teatral pode ser nomeada de play. E a vida – a vida/life- de Whitman é realmente isso: um maravilhoso drama em que cada um de nós poderá ou não contribuir com seu próprio verso.
Não dá para gostar dos tempos que nos tocaram viver e é normal pensarmos que gostaríamos de que nada disto tivesse acontecido, como exclamava um Frodo desolado ao perceber o peso do Anel e a extensão das sombras de Mordor. Que seria ótimo se não houvesse nem pandemia, nem Covid-19, nem Renan, nem Bolsonaro. Mas, como respondeu Gandalf, “é isso que pensam todos os que testemunham tempos sombrios como este, mas não cabe a eles decidir, o que nos cabe é decidir o que fazer com o tempo que nos é dado”.
É verdade que não encontro, por enquanto, nenhum exemplo vivo para entusiasmar o leitor. Mas esse é precisamente o poder e a magia da literatura. Ela dá-nos uma forma de olhar para o mundo ao nosso redor e implicar-nos pessoalmente. As palavras dos poetas e os textos dos romances renovam nossos olhos cansados e desanimados perante tanta desumanidade e tanta insensatez.
Vemos, graças a Shakespeare, Cervantes, Dostoiévski, Tolstói, Jane Austen, Emily Brontë, George Sand, Emily Dickinson e Susanna Tamaro, o que são a dor, o amor, a paixão, a traição, a generosidade, a vileza, a corrupção, a honestidade e tudo o que de humano e de desumano vive ao nosso redor e nos habita. E aprendemos com todos eles a ser mais humanos, melhores seres humanos.
A literatura envolve o leitor e o livro, o eu do leitor com os muitos eus das personagens, aproxima experiências, força a comparação, faz com que nós, enquanto leitores, não abdiquemos da nossa condição de humanos. É uma forma de conhecimento que não é nem analítica nem simplificadora, mas é reflexiva, intimista e complexa.
A literatura permite, como diria Ortega y Gasset, encontrar os ossos e a carne dos conceitos. Dá-nos a circunstância, a complexidade, a ambiguidade, a cor e a textura do real. Tudo aquilo que o conceito abstrato nos esconde e teima em fazer-nos acreditar que não existe quando, na verdade, é o que dá o tom e o sentido humano da vida: a tensão de uma espera, a ansiedade de uma procura, as lágrimas de uma derrota, a alegria inexprimível de um encontro. O desespero, a angústia e a esperança da Humanidade vivida e por viver.
Mas, para convencer-se disso, é preciso realmente deixar-se encantar pela literatura.