As ruas de várias cidades da Bolívia foram tomadas por manifestantes que pedem a anulação do novo Código Penal do país, promulgado em 15 de dezembro do ano passado. Enquanto o governo de Evo Morales trata o movimento como uma tentativa de tirá-lo do poder, diferentes setores da sociedade estão fazendo paralisações em protesto à reforma.
Já houve mobilizações em La Paz, Cochabamba, Chuquisaca, Oruro e nesta quarta-feira (17) manifestantes bloquearam diversas ruas da capital do distrito de Beni, Trinidad. Foram relatados enfrentamentos entre manifestantes e grupos pró-governo que estavam levantando os bloqueios. Fotos que estão circulando nas redes sociais mostram alguns feridos, aparentemente atingidos por objetos cortantes.
Em La Paz, nesta semana, uma marcha encabeçada pela Central dos Trabalhadores Bolivianos (COB) recusou a proposta de Morales que previa a abertura do prazo de um ano para debater sobre o Código Penal e reafirmou a demanda pela anulação da reforma.
Ações conjuntas dos departamentos bolivianos também estão sendo estudadas e existe a possibilidade de uma paralisação nacional ou uma marcha até a sede do governo. Nesta quarta (17), cinco dos nove comitês cívicos do país se reuniram em Cochabamba para determinar as medidas de pressão a serem adotadas.
Segundo o jornal boliviano Los Tiempos informou, o presidente Evo Morales disse nesta segunda-feira (15) que os protestos são uma “conspiração” apoiada por inimigos externos e por grupos de direita. “Na Bolívia não existe uma revolta, o que existe é uma conspiração de grupos de direita contra a nossa revolução política e cultural. (...) O problema não é o Código Penal, é um problema político”, declarou Morales.
O presidente anunciou que dará um prazo de um ano para discutir a nova legislação, o que não fez diminuir os protestos da população. “Se for comprovado que afeta a uma organização social, a um setor social, a um grupo de profissionais, vamos modificar [o novo Código Penal] enquanto o Código não está em vigor”, disse o presidente.
Antes de sancionar a legislação polêmica, os bolivianos já não estavam contentes com Morales. Em outubro milhares de pessoas protestaram contra a decisão da Suprema Corte da Bolívia de permitir que o presidente concorra novamente ao cargo máximo do país nas eleições de 2019, contrariando o referendo realizado em fevereiro de 2016, quando a maioria da população votou contra mais uma reeleição de Morales.
Motivos dos protestos
A nova onda de protestos que está tomando a Bolívia surgiu com a aprovação, no mês passado, de um controverso Código Penal, que deve entrar em vigor em 18 meses. Vários pontos da legislação são questionados por diferentes setores da sociedade, como trabalhadores, imprensa, grupos religiosos, transportadores, ambientalistas e políticos de oposição.
A classe médica foi a primeira a defender a anulação do novo Código Penal. Ainda em setembro, antes da aprovação, o Colégio Médico iniciou uma paralisação para protestar contra o artigo 205 da lei, relacionado à má prática médica e que previa prisão de até dois anos caso o profissional de saúde provocasse danos à saúde dos pacientes.
A greve durou 47 dias e, segundo noticiou o jornal boliviano Los Tiempos, a demanda pela derrubada do artigo foi atendida. Entretanto, os médicos voltaram a protestar depois que a ministra da Saúde, Ariana Campero, disse que haveria sanções aos médicos que participaram da paralisação.
“Foi revogado o [artigo] 205 e tem que haver uma posição que busque de uma vez a atenção aos doentes do país. Não é preciso colocar mais lenha na fogueira, é preciso que mais hospitais sejam abertos; o 205 foi revogado”, declarou Campero à rádio boliviana Erbol nesta quarta-feira. Agora, de acordo com a ministra, apenas o Colégio Médico de Santa Cruz de La Sierra mantém greve por tempo indeterminado.
Religião
As manifestações contra o novo Código Penal começaram a ganhar mais corpo depois que religiosos se deram por conta de que um artigo específico da lei criminaliza o “recrutamento de pessoas para participação em organizações religiosas ou de culto”.
Em um vídeo gravado durante a 35ª Convenção Nacional da Bolívia e publicado no Youtube, o pastor Júlio César Barros, líder da Assembleia de Deus de Cochabamba, disse que houve uma alienação política por parte das lideranças cristãs do país, já que os evangélicos só tomaram conhecimento sobre a legislação próximo ao fim da tramitação no Poder Legislativo.
“De fato, essa nova lei aprovada pela câmara vai entrar em vigor em 18 meses. Porém através da movimentação dos médicos na Bolívia, que já estão há mais de 50 dias de greve, todas as coisas que eles estão fazendo, por que afetaram muito o direito dos profissionais da área de saúde, descobrimos essa lei que foi aprovada contra a Igreja do Senhor Jesus”, declarou o pastor Júlio César Barros em vídeo publicado no sábado (13).
Um dos líderes da Igreja Católica na Bolívia, o arcebispo de Santa Cruz de La Sierra, Sergio Gualberti, também criticou o governo de Morales. “...()hoje em nosso país, ignorando o clamor do povo, se tenta impor um sistema que permite se perpetuar no poder, que limita as liberdades, que abre espaço a perseguição à oposição e favorece a impunidade frente à corrupção dos que governam”, disse o arcebispo durante uma missa neste domingo (14).
Greve de fome e crucificação
17 deputados da oposição disseram ter feito greve de fome para protestar pela revogação do novo Código Penal. Nesta semana, três deles tiveram que deixar a Assembleia Legislativa Plurinacional em macas e ambulâncias após seis dias sem se alimentar.
Na segunda-feira (15), o deputado do partido de centro Unidade Democrática Enrique Siles deu um passo além da greve de fome e resolveu se “crucificar” na praça central de Cochabamba. Amarrado com cordas e fitas e com cartazes colados ao corpo, ele encenou uma crucificação para pedir a anulação da nova lei sobre crimes. Siles disse que estava sem comer há oito dias.
Tortura em Igreja
Na quinta-feira (11), em La Paz, a Universidade Maior de San Andrés e outros setores se mobilizaram contra o Código Penal, aproveitando o início do Rally Dakar na cidade. Um grupo de estudantes tentou bloquear uma rota do Dakar em Pérez Velazco, mas a polícia interveio de forma violenta.
Segundo o jornal Los Tiempos, os estudantes, desesperados, buscaram abrigo no Museu de São Francisco, que faz parte do Convento de São Francisco, mas cerca de 20 policiais adentraram o local de forma violenta para prendê-los.
De acordo com o relato dos universitários, eles estavam indefesos, mas mesmo assim os agentes os reprimiram de forma unilateral e “pularam sobre os corpos caídos”.
“A tortura que é um crime na legislação internacional, no direito internacional dos direitos humanos, está tipificada como praticar atos de sofrimento físico e psicológico contra uma pessoa que não pode se defender, [neste caso os estudantes] estavam absolutamente dominados”, disse Waldo Albarracín, reitor da universidade, que cobra do governo uma investigação sobre a atuação dos policiais nesta ação, alegando que os estudantes foram torturados e que um deles teve as costelas fraturadas.