Decisões ecológicas radicais com bases em decretos são como um jogo de xadrez com consequências letais: você pode achar que comer aquele bispo na casa ao lado é a melhor coisa a ser feita no momento, mas quando vai ver está bem na frente da rainha inimiga, prestes a ser devorado. Essas metáforas com “comer” e “devorar” podem parecer forçadas, mas, na China, uma decisão equivocada tomada pelo Timoneiro Mao fez com que a população tivesse que fazer exatamente isso: comer uns aos outros.
Em 1958, Mao Tsé-Tung, já oficialmente há quase 10 anos no poder como Supremo Líder da China comunista, decidiu implantar um de seus planos mais ambiciosos: o Grande Salto para a Frente. A China nessa época ainda era um país predominantemente rural e com praticamente todos os problemas que assolam qualquer estereótipo de fim-de-mundo terceiro-mundista: falta de qualquer tipo de higiene e saneamento básico, ciclos de secas e enchentes, pobreza generalizada e uma dependência total da agricultura local, a ponto de qualquer irregularidade nas colheitas gerar fomes devastadoras.
Com o Grande Salto veio outra campanha, a das Quatro Pragas. Segundo o governo chinês, quatro pragas que assolavam o país precisavam ser eliminadas: os mosquitos, que transmitiam a malária, os ratos, que transmitiam a praga (peste bubônica), as moscas, por motivos ainda mais óbvios que os dois primeiros – e os pardais, animais que comiam as sementes, frutas e grãos, devastando pomares e colheitas e tirando das mãos do pobre camponês o fruto do trabalho suado dele.
Asilo diplomático de pardais
Não foram poupados esforços na matança de pardais. Camponeses formavam “equipes sanitárias” e se reuniam em volta das árvores onde os pássaros se refugiavam, batendo panelas para que os pobres coitados tivessem medo de pousar e acabassem despencando do céu de cansaço. Ninhos e ovos eram destruídos, filhotes trucidados e os adultos eram simplesmente exterminados à bala ou estilingue. Quem levasse uma carcaça de pardal até um escritório do governo recebia uma recompensa e concursos eram promovidos para ver quem matava um maior número de passarinhos. Só em Pequim, 800 mil pardais foram mortos em três dias.
Alguns pardais procuraram até mesmo asilo diplomático. A Embaixada da Polônia em Pequim acolheu alguns animais e recusou o pedido do governo chinês para que seus enviados entrassem lá para espantar os intrusos. Logo o prédio acabou cercado por manifestantes com tambores. Depois de dois de batucada intensa, os diplomatas poloneses foram obrigados a usar pás para limpar os cadáveres dos pardais nos jardins da Embaixada.
Consequência: fome e canibalismo
Em 1959, a quantidade de plantações devastadas por insetos cresceu exponencialmente. Para a surpresa de Mao, esses insetos também eram devorados pelos pobres pardais. Com o extermínio dos pássaros, enxames de gafanhotos percorriam o interior da China, devastando com gosto ainda maior os frutos do suor do já sofrido camponês chinês. Ninguém mais tinha o que comer. Era a Grande Fome – ou, na novilíngua maoísta, os “Três Anos de um Período Difícil” ou os “Três Anos de Desastres Naturais”.
O governo chinês estima o número de vítimas em 15 milhões. Estimativas de estudiosos independentes colocam este número entre 45 e 78 milhões. O jornalista Yang Jisheng, que escreveu o livro Tombstone [Lápide], publicado nos EUA ano passado e banido na China, estima o número exato em 36 milhões.
Entre outros motivos pelo qual o livro foi banido está o mais sombrio: ele revela que os chineses começaram a comer uns aos outros. “Pais comiam os filhos, filhos comiam os pais”, escreve Jisheng. Pessoas se matavam por comida, ou para comerem – ou não serem comidas.
O canibalismo neste período continua um dos tabus mais duradouros na China que aos poucos se descola da herança sangrenta comunista. E o toque de sadismo na história: enquanto o povo literalmente se matava de fome, sementes e grãos destinados a cumprir as metas de exportação da China lotavam armazéns gigantescos, sob o sigilo de um governo totalitário.
“Esqueçam isso”
A Academia Chinesa de Ciências acabou “recomendando” que Mao pusesse um fim na campanha. Em sua soberana complacência, o Timoneiro decretou: suanle. “Esqueçam isso”. Mas sem pôr um fim à campanha das Quatro Pestes. Mao simplesmente trocou os pardais pelos percevejos e fingiu que nada tinha acontecido enquanto seu país tinha sofrido a maior fome da história e um dos maiores cataclismos ecológicos da história da humanidade.
A tradição taoísta chinesa prega o respeito à natureza, viver em harmonia com florestas, montanhas, lagos, rios e todos que os habitam. Já para a religião maoísta, todas essas coisas viraram meros recursos a serem dominados e utilizados para o bem do homem – uma acusação que, paradoxalmente, é a primeira a ser feita contra o capitalismo pelos ambientalistas de esquerda.
Em 1958, Mao lançou o slogan “O Homem Deve Conquistar a Natureza”. As montanhas deveriam se curvar e os rios deveriam dar passagem à humanidade. Claro que a realidade, eterna inimiga do comunismo, se revelou um grande empecilho e a natureza se recusou a obedecer Mao. Não por acaso, alguns dos piores desastres ambientais ocorreram durante governos socialistas ou sob regimes de esquerda, como Chernobyl e a drenagem do Mar de Aral.
Crime grave
Demorou décadas, mas tanto a população de pardais quanto o meio-ambiente acabaram voltando ao normal. O pardal não só voltou a ser facilmente encontrado na China como se tornou espécie protegida na país. Caçar e consumir pardal é proibido e matar mais de 20 animais é considerado um crime grave.
Em 2017, um homem chamado Wang foi preso na província de Zhejiang depois de matar 44 pardais. Wang estaria com fome e, depois de atravessar um campo repleto desses passarinhos e passar uma tarde tentando pegar um pardal para se saciar, ele voltou no dia seguinte com uma rede e se vingou.
Um ano antes, 36 pessoas foram presas em Pequim por comercializar pardais, incluindo diversos donos de restaurante que tinham a iguaria no cardápio.
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