Em dezembro de 1976, Henry Ford II, o filho mais velho de Edsel Ford e o neto mais velho de Henry Ford, pediu demissão do conselho de administração da Fundação Ford, cargo que havia assumido 33 anos antes, em 1943. “A fundação é uma criatura do capitalismo – uma afirmação que, tenho certeza, é chocante para muitos profissionais que atuam na área da filantropia”, escreveu ele na carta em que comunicava a decisão.
“É difícil de encontrar um reconhecimento desse fato em qualquer atividade da fundação. Talvez seja hora de os administradores e os funcionários examinarem nossas obrigações com o sistema econômico e considerarem como a fundação, sendo um dos filhos mais proeminentes do sistema, deveria agir com maior sabedoria a fim de fortalecer seu progenitor”. Com isso, a fundação deixava de ter um Ford – o irmão Benson havia abandonado a entidade um ano antes.
Na avaliação produzida por Henry Ford II há quase 43 anos, a fundação criada por seu pai e seu avô em 1936, a partir de uma doação de US$ 25 mil, estava dissociada da realidade, encastelada em conceitos anticapitalistas e presa e uma estrutura inflada. Vinda de dentro da família fundadora, a crítica ecoava uma dificuldade conceitual antiga.
O objetivo da instituição era amplo demais: reduzir a pobreza e a injustiça, fortalecer valores democráticos, promover cooperação internacional e proporcionar uma evolução no conhecimento humano. O orçamento, elástico: na segunda metade do século 20, a Fundação Ford se manteve como a maior do mundo – mais recentemente, foi superada pela entidade criada por Bill Gates. Para a autocrítica produzida em 1976, era muito dinheiro, muitas pessoas, objetivos dispersos e contraditórios com o fato de que só o capitalismo poderia gerar uma fundação desse porte.
Vila Sésamo e Aids
Fundada em Michigan, a fundação manteve atuação regional até o início dos anos 1950, quando se mudou para Nova York e passou a atuar de forma global, começando pela abertura de um escritório em Nova Déli, na Índia. O edifício-sede atual, projetado pelo arquiteto Kevin Roche e construído nos anos 1960 na rua 34, é considerado um marco no movimento de criação de amplos espaços verdes dentro de prédios. Por duas décadas, até um grande corte de orçamento iniciado em 1974, a família repassou mais de US$ 4 bilhões para a entidade. O distanciamento dos Ford não mudou os objetivos da fundação, que seguiu atuando em uma série de diferentes áreas de atuação.
A Fundação Ford foi uma das primeiras a fornecer bolsas de estudo de nível universitário para minorias em diferentes países do mundo, com o objetivo de formar líderes a partir de comunidades excluídas e aumentar a diversidade nos postos de comando – um dos estudantes dos anos 60, Kofi Annan, se tornaria secretário-geral da Organização das Nações Unidas em 1997.
A entidade também financiou institutos de arte, bancou a produção de romances e peças de teatro e investiu em centros de defesa dos direitos civis de minorias, como o Native American Rights Fund. “O Programa de Desenvolvimento de Lideranças da Fundação Ford investiu mais de US$ 11 milhões entre 1967 e 1975 para formar novos líderes rurais, capazes de desenvolver projetos de sua escolha”, descreve Joan Roelofs, professora de ciência política do Keene State College, em New Hampshire, a autora de Foundations and Public Policy: The Mask of Pluralism [“Fundações e políticas públicas: a máscara do pluralismo”].
Além disso, a Fundação Ford bancou ainda uma rede de televisão educativa, a National Educational Television – o programa Vila Sésamo foi criado, em 1969, graças a uma doação de US$ 1 milhão vinda da fundação. Ao longo das décadas de 70 e 80, os investimentos em medicina foram ampliados. O nascimento de Louise Brown, o primeiro bebê de proveta, que veio ao mundo em 1978, foi concretizado graças a uma doação de mais de US$ 1 milhão. Anos depois, a entidade passaria a sustentar pesquisas para identificar as causas e buscar possíveis tratamentos para a aids.
Ao longo da Guerra Fria, a instituição conviveu com a suspeita de que muitos dos grupos financiados no exterior, especialmente no Leste Europeu, eram braços da CIA, a agência de espionagem americana, e tinham como objetivo formar jovens para fazer oposição aos regimes comunistas. A fundação nunca confirmou esses boatos, ainda que o presidente da instituição entre 1958 e 1965, o diplomata John McCloy, tivesse sido comandante da Alemanha ocupada depois da Segunda Guerra – na época, ele deu suporte para as primeiras ações da CIA na região.
“A CIA usa fundações filantrópicas como a forma mais eficiente para canalizar altas quantidades de dinheiro para projetos da agência sem informar os objetivos”, afirma, em artigo sobre o tema, James Petras, professor aposentado de sociologia da Binghamton University. “A conexão Fundação Ford-CIA foi um esforço deliberado e consciente para fortalecer a hegemonia cultural dos Estados Unidos”.
FGV e CUT
No Brasil, a entidade se instalou em 1962. Entre os primeiros beneficiários estava a Fundação Getúlio Vargas. “À taxa média de quase 42 doações por ano e em dólares de 2001, a Fundação distribuiu um total de 347 milhões de dólares ao longo de 42 anos, financiando uma enorme variedade de atividades que vão desde ensino das ciências a reforma da polícia”, descreve o livro 40 Anos da Fundação Ford no Brasil, publicado pela entidade em 2002.
As ações educacionais e a distribuição de bolsas são estratégicas. Por exemplo, entre 2001 e 2012, o Programa Internacional de Bolsas da Fundação Ford ofereceu, no Brasil, 343 bolsas de pós-graduação para negros e indígenas moradores, preferencialmente das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Deste total 308 alunos alcançaram as titulações de mestrado ou doutorado.
Mas o escopo da fundação é mais amplo e abrange de grupos ambientalistas e feministas a associações de quilombolas. Só na década atual, a instituição concedeu fundos a dezenas de instituições. Para a Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo, foram doações anuais variando de US$ 100 mil a R$ 200 mil, totalizando mais de US$ 1,1 bilhão. Outros US$ 600 mil foram cedidos para a Universidade Federal do Maranhão. A União dos Movimentos de Moradia de São Paulo ficou com US$ 930 mil entre 2013 e 2018. A Central Única das Favelas do Rio de Janeiro recebeu US$ 150 mil em 2015, mesmo valor cedido para a Central Única dos Trabalhadores (CUT) em 2014.
Desde 2016, o diretor do escritório da fundação no Brasil, baseado no Rio de Janeiro, é Atila Roque, ex-diretor executivo da Anistia Internacional Brasil, além de ex-diretor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e da Associação Brasileira de ONGs.
Em fevereiro de 2019, novamente um Ford – no caso, Henry Ford III, neto de Henry Ford II – assumiu um posto no conselho da fundação. Em paralelo, a fundação retomou as atenções para a região original, o estado de Michigan, e anunciou a reabertura do escritório da entidade em Detroit. Mas, ao que tudo indica, as ações internacionais serão mantidas.
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