O presidente americano Joe Biden trava uma batalha nas cortes e no Congresso em uma tentativa de impor a vacina para Covid-19 nas empresas. No Brasil, uma portaria do Ministério do Trabalho que considerava discriminatória a demissão de não-vacinados por justa causa foi derrubada pelo judiciário. Já no setor da cultura, há um embate dentro da Advocacia-Geral da União a respeito da obrigatoriedade do passaporte da vacina em eventos financiados pela Lei Rouanet, com o lado contrário, por enquanto, vencendo.
Será que tais imposições são impopulares a ponto de reduzirem a confiança da população nas autoridades? Até agora não se tinha evidência direta disso. Um novo estudo dinamarquês muda esse quadro e corrobora essa opinião.
O estudo, chefiado por Frederik Jørgensen, do Departamento de Ciência Política da Universidade Aarhus, acompanhou de perto as consequências da reintrodução de passaporte da Covid pelo governo dinamarquês em 8 de novembro — desde setembro, o país havia removido todas as restrições. À primeira vista, a política pareceu funcionar: aumentou o número de vacinados no país. Porém, isso veio com o custo da diminuição da confiança dos não-vacinados no governo, o que ameaça o status da Dinamarca como umas das sociedades com o maior nível de confiança social. Uma minoria deles chega a apoiar ações violentas de resistência.
Para descobrir rigorosamente a natureza desse custo social, Jørgensen e seus parceiros entrevistaram 500 dinamarqueses por dia antes e depois da reintrodução do passaporte, totalizando quase 25 mil pessoas do começo de outubro ao fim de novembro. O período inclui as duas semanas imediatamente após a decisão do governo.
Para aferir a confiança nas autoridades de saúde, os pesquisadores colheram o nível de concordância de cada entrevistado com a afirmação “Eu confio na estratégia política por trás do conselho das autoridades de saúde”. Para aferir a motivação dos indivíduos a se engajar nas ações coletivas contra a pandemia, os cientistas mesclaram as respostas a essa afirmação a cinco outras, entre elas “O conselho das autoridades de saúde é suficiente para prevenir a disseminação da infecção”. Estudos anteriores mostram que a adesão dos não-vacinados locais às medidas de segurança era alta.
Custo das medidas autoritárias
Uma estratégia interessante da pesquisa dinamarquesa foi acompanhar como evoluiu a diferença de opinião entre vacinados e não-vacinados com relação ao passaporte da vacina reintroduzido. Como é de se esperar, o grupo não-vacinado já tinha uma maior desconfiança contra as autoridades de saúde. Os pesquisadores marcaram a diferença já existente entre os grupos um mês antes da reintrodução, considerando-a uma referência basal a partir da qual examinar o impacto da decisão do governo.
O principal resultado nas duas semanas seguintes foi uma marcada exacerbação da diferença entre os grupos: os não-vacinados aumentaram a sua desconfiança, o que foi detectado pela análise estatística das respostas. O tamanho do efeito é de até 13 pontos percentuais. O resultado pode não surpreender, mas representa uma forte evidência de que este é um custo das medidas autoritárias.
Ao perder a confiança no próprio governo, os não-vacinados podem passar a não aderir mais às medidas de proteção, abrindo um mecanismo causal direto para o autoritarismo sanitário causar o contrário do pretendido e engatilhar uma situação pior. Ao anunciar a volta do passaporte da covid, a primeira-ministra Mette Frederiksen disse que para os não-vacinados a vida se tornaria mais difícil e que “é assim que eu penso que deve ser”. Ela também os culpa pelo aumento nas infecções: “isso acontece porque [há] um pequeno grupo que não joga de acordo com as regras que temos quando há uma pandemia (...), ele estraga as coisas para a maioria de nós. A meu ver, não há desculpa, nem de caráter moral, para não ir se vacinar”.
A retórica da primeira-ministra dinamarquesa contrasta com a própria da natureza do passaporte da Covid do país, que não é exatamente um passaporte da vacina, pois reconhece a proteção conferida pela imunidade natural. A insistência na dicotomia vacinados vs. não-vacinados obscurece uma distinção muito mais medicamente relevante entre imunizados e não-imunizados.
A estigmatização dos não-vacinados
A estigmatização dos não-vacinados não é aconselhada por especialistas como Günter Kampf, do Instituto de Higiene e Medicina Ambiental da Universidade Médica de Greifswald, Alemanha. Em correspondência à revista médica The Lancet em novembro, Kampf diz que os vacinados “têm menor risco de doença severa, mas ainda são uma parte relevante da pandemia” pois ainda transmitem o vírus, embora menos que os não-imunizados. “Portanto”, continua o médico, “é errado e perigoso falar em pandemia dos não-vacinados” — uma referência direta a um termo usado por Joe Biden. Como explicamos na Gazeta do Povo, até a alegação de que os não-vacinados são a fonte de novas variantes preocupantes como a ômicron não tem completo lastro científico.
Os dinamarqueses do estudo discutido acima, cujo artigo ainda está em revisão, deixam claro que seus resultados não necessariamente servem para justificar um completo abandono de políticas que tenham os não-vacinados como alvo. “Parte da solução pode estar em somente introduzir restrições que são mais trabalhosas para um grupo específico se elas forem proporcionais ao risco da disseminação da infecção associado a esse grupo”, acrescentam. “Pode ser vantajoso não usar justificações moralizantes e de condenação, mas simplesmente fiar-se em comunicação mais imparcial a respeito da disseminação”.