Ativista protesta contra passaportes da Covid em frente ao parlamento em Londres, Grã-Bretanha, 14 de dezembro de 2021.| Foto: EFE / EPA / ANDY RAIN
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Recentemente resolvi adotar o silêncio ante as políticas sanitárias do Brasil, principalmente porque muitos dos assuntos tratados passavam longe das minhas competências analíticas, e, por mais assustador que soe a alguns ouvidos contemporâneos, não somos obrigados a ter uma opinião sobre tudo, sobretudo a respeito daquilo que não conhecemos. Mas uma política autoritária, em especial, soou o meu alarme analítico ‒ e políticas autoritárias fazem parte da minha área de pesquisa. Do que estou falando ? Do já famoso e aclamado “passe sanitário” e das exclusões compulsórias cada vez maiores dos não vacinados da vida pública.

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Pois bem, deixe-me iniciar a crítica justificando alguns pontos pessoais deste ensaio: eu tenho a maldição intelectual de ser fissurado pela era moderna e sua política, e é por isso que alguns assuntos e práticas políticas naturalmente soam absurdas para mim, principalmente quando as analiso ante o panorama da história do século XX. Se você tem algum princípio ético-filosófico vinculado aos destroços humanos deixados pelos horrores inimagináveis que ocorreram no século passado, então não poderá achar minimamente concebível a existência de um “passaporte sanitário” ou de qualquer segregação de não vacinados. Sim, eu já parto desse pressuposto.

É tão bizarro defender tal ideia no século XXI que chega a ser quase boçal. Excluir pessoas da sociedade civil, impossibilitar suas entradas num país, evento, e demais convívios públicos, porque tais pessoas escolheram não se vacinar, isso não é minimamente razoável ‒ sinto muito. E me permita blindar-me das pechas que possam surgir desde já, eu me vacinei sim senhor, tenho a Pfizer em minhas veias, literalmente. Não sou um antivacina, eu sou antiautoritário.

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Para quem está meio perdido até aqui, deixa-me ser mais claro. O século XX foi o século das experimentações políticas; as ideologias de ambos os espectros políticos testaram inúmeras táticas de engenharia e sanitarismo sociais, e três delas foram particularmente desumanas em um nível antes pouco concebido: o apartheid contra os negros, notavelmente horrendo ‒ principalmente ‒ na África do Sul e nos EUA (neste último, na maioria das vezes, denominado de “lei de segregação racial”); o antissemitismo nazista (principalmente o alemão), e a eugenia (de inúmeras nações e credos ideológicos).

Todos esses três experimentos políticos gestaram, no século passado, um dos maiores ‒ talvez o maior ‒ genocídio humano da história. Os horrores subiram a tal nível de desumanidade que, em determinados momentos, era difícil enxergar com clareza e distinção o que estava de fato sendo perpetuado; da extrema-direita à extrema-esquerda tais ideias foram com maior ou menor intensidade praticadas sob argumentos sanitários, políticos e raciais. Os pontos filosóficos comuns dessas três hecatombes políticas são a desumanização severa de um grupo humano; o linchamento supostamente “justificável” de uma turba em troca de uma segurança social, econômica e humana de uma maioria gloriosa e bendita; a separação social supostamente justificável dos “bons”, “limpos” e “puros”, do resto abominável.

Tanto o apartheid, o antissemitismo e a eugenia partem da mentalidade segregacionista, ou seja: crê-se que é necessário separar certo grupo social para que outro esteja em segurança e se desenvolva em paz; e entre a segregação e o extermínio a história mostrou existir uma via muito curta. Os negros americanos, até o início da década de 1960, eram vistos como “sujos”; banheiros, piscinas e lugares determinados em transportes públicos para os “colored” eram mais do que “normal” para muitos. Inúmeros estudos pseudocientíficos e artigos filosóficos forneciam as razões e argumentos altamente elaborados para fundamentar a segregação. O mesmo ocorria com o apartheid, a sociedade civil sul-africana de Broederbond ‒ autodominados “solucionadores de problemas sociais” ‒ teorizava e fundamentava os porquês do apartheid, enquanto o Partido Nacional se empenhava em passar leis racistas sob argumentos pautados nesses “solucionadores”.

Ditadores não devolvem liberdades, tal como o inferno não estorna almas

O antissemitismo, por sua vez, encontrava mil outros acadêmicos dispostos a dar razão à segregação dos judeus, além de elaborar filosofias baratas para fundamentar os absurdos apresentados pelo nazismo nascente. Novas e intrincadas organizações político-ideológicas que pretendiam justificar o ódio aos judeus surgiam sob bandeiras intelectuais. Foi o caso do Movimento Völkisch, que se apoiava em distorções antropológicas e biológicas a fim de justificar a superioridade alemã ante o povo judeu.

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A eugenia foi outra “inconteste” ideia “científica” e evolucionista que encontrava calhamaços de justificativas elaboradas para seus fins torpes; o que haveria de ser mais “teoricamente científico” do que as proposições de Darwin? Ora, a eugenia seria apenas o processo de aceleramento da seleção natural das espécies, só que, ao invés de “natural”, agora o motor seria “científico” ‒ e, por que não, político?!

Todas essas ideias que lavaram o solo do século XX com sangue humano e plantaram uma lavora maldita de milhões e mais milhões de corpos assassinados deviam estar enterradas junto às vergonhas autoritárias daquela época. Havia um consenso mudo ao final da Segunda Guerra, o qual depois se verteu em certeza fulcral após a queda da URSS: não podemos voltar à barbárie desumana que fomos capazes de engendrar. A filosofia social liberal, liberal e conservadora do final do século XX se apoiava nesse ponto comum de partida.

Em Origens do totalitarismo, livro de 1951 da famosa filósofa judia Hannah Arendt, a autora versa sobre a “mentalidade irrigadora” do totalitarismo; um princípio imaginativo que surge tal como um verme filosófico e que, aos poucos, escala lentamente os muros de nossa consciência moral e demais barreiras do bom-senso até alcançar um terreno livre para perpetrar novos absurdos.

Arendt, ao assistir ao processo de condenação de Adolf Eichmann, relatado no livro Eichmann em Jerusalém, mostra a passividade do acusado ante as acusações horríveis imputadas a ele, desde sua ajuda no processo do holocausto até a facilitação de contrabando de judeus de outras partes da Europa para o matadouro polonês. Na maioria das vezes, via-se no acusado uma apatia ante os crimes por ele cometido. Por outras vezes, a sua resposta se limitava a um vazio: “apenas estava seguindo ordens”. Tal cenário levou a filósofa a teorizar o seu conceito mais famoso “a banalidade do mal”. O mal seria tão somente uma banalidade ante a existência, algo que escalou as rupturas da consciência, que encontrou no meio das valas morais certas justificativas que davam, aqui ou acolá, uma fundamentação mais ou menos convincente para o asco político, e ponto, isso já seria mais que o suficiente para agregar milhões de seguidores para engendrar segregações, morticínios e holocaustos.

De maneira sumária, é assim que nascem ideias politicamente bizarras, e com pessoas e ocasiões corretas para a escalada, não costuma demorar para que tais políticas descambam em imolações de grupos sociais considerados “menos dignos”.

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O “passaporte sanitário” e sua segregação evidente nada mais são do que essa larva que está subindo o muro da consciência social, encontrando argumentos mais ou menos elaborados, enquanto explora as frestas da moralidade pública. Tal passaporte é parasita de um momento político específico, nele a larva autoritária cria justificativas para a segregação, separa grupos inteiros da sociedade e ‒ conscientemente ou não ‒ os maculam como impuros, indignos de desfrutarem livremente de entretenimentos, transportes e acessos públicos. Caso não sigamos uma cartilha “científica” supostamente embasada em estudos e opiniões incontestes “dos puros”, estaremos então excluídos de aviões, transportes públicos, trabalhos, igrejas e shoppings.

Não se trata de uma conjuntura hipotética do articulista que aqui escreve, a Itália está multando quem trabalha sem estar com a vacina contra a COVID em dia, quem não tem a carteira de vacinação atualizada, simplesmente não está autorizado a usar os transportes públicos. Na França, os não vacinados estão perdendo seus empregos porque não se vacinaram, tudo isso com apoio de novas legislações e sob os aplausos efusivos das mídias progressistas. Pernambuco ‒ para exemplificar a coisa aqui no Brasil ‒ já decretou que a comprovação do esquema vacinal contra a COVID-19, para acesso a locais públicos no referido estado, já é obrigatório; outros estados devem seguir, com maior ou menor rigor, a ideia do passaporte sanitário.

Guardando as devidas proporções ‒ é claro ‒, o que realmente difere tais atos de segregação da estrela amarela no peito dos judeus alemães são apenas alguns detalhes e disposições políticas. Não estou falando que tais políticas sanitárias contemporâneas escalarão o muro até o advento de novos holocaustos e gulags, mas quem realmente está disposto a pagar para ver até onde tais legisladores sanitários estão dispostos a chegar? Quantos, em 1932, diriam que Hitler faria o que fez? Quem, em 1917, pensaria que a revolução bolchevique culminaria em Holodomor e no Grande Terror?

Grande parte das mídias tradicionais estão apoiando as medidas segregacionistas, boa parte da “população esclarecida” está aplaudindo as medidas autoritárias como profundamente humanizadoras. Falando em autoritarismo, um biólogo influencer já pediu aos líderes políticos do país, no jornal de maior circulação do Brasil, o estabelecimento de um autoritarismo necessário; mas ele foi apenas um corajoso que externou aquilo que inúmeros outros progressistas também defendem. O “autoritarismo necessário” é o mantra midiático e político do progressismo mundial desde o início da pandemia; se tornou algo fofo ser um déspota de jaleco branco.

Por fim, meus caros, estamos trocando as nossas liberdades individuais por uma falsa segurança social que não se provou eficaz nem mesmo no auge da pandemia. O problema real de trocar liberdades por uma segurança autoritária é que os autoritários são aqueles mesmos que fazem leis e decretos, aqueles que não costumam cumprir promessas e que desenham de próprio punho o que é certo e errado socialmente. Deveria ser óbvio, mas relembrarei aqui: ditadores não devolvem liberdades, tal como o inferno não estorna almas.

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