Os memes já podem ser considerados documentos históricos? Se a resposta for sim, um desabafo da atriz Luana Piovani que viralizou em 2019 certamente vai servir como material de apoio no futuro, quando alguém pesquisar a influência de Paula Lavigne – empreendedora, produtora cultural e mulher de Caetano Veloso – no meio artístico brasileiro.
Em entrevista ao site Universa, Luana falou, entre outros assuntos, sobre a pressão que recebia para se engajar em causas sociais. E o seguinte trecho bombou nas redes sociais: “Eu queria postar foto dos meus filhos e tinha que postar o negócio da Amazônia. Daí eu tinha que postar os golfinhos, era o tubarão, era o Leonardo DiCaprio, era o 342, era a Paula Lavigne dentro do nosso grupo falando não sei o quê. Daí tem que ir para Brasília, daí não sei o que mais, daí vamos não sei o que do gay, vamos na manifestação a favor do GLSTUVXZ. Meu Deus do céu, dá muito trabalho. Não estou conseguindo postar eu bonita de biquíni”.
Lavigne não gostou e respondeu com ironia. Postou uma foto sua na praia, usando roupa de banho, com a legenda “Eu, Paula Lavigne de biquíni, a chata dos grupos”. Em seguida, outras artistas declararam seu apoio à empresária. E suas seguidoras na internet promoveram um “biquinaço” na internet para esculachar Luana Piovani – publicando imagens em praias e piscinas e marcando a produtora nas postagens.
A picuinha foi boba, mas ilustra bem o poder político e de articulação da “Janja do Caetano”, que atualmente tenta mobilizar a classe cultural, parlamentares e o público em torno da aprovação do Projeto de Lei 2370. Mais conhecida como “PL dos Direitos Autorais”, a proposta é um fatiamento do PL 2630, o “PL das Fake News” (ou “PL da Censura”), também defendido por Lavigne e seus “representados” antes de ser implodido.
O novo texto, de autoria da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e apoiado pela Janja “de verdade”, confronta diretamente os interesses das big techs. A proposta estabelece que serviços como Twitter, Facebook e YouTube paguem direitos autorais referentes à reprodução de obras musicais e audiovisuais, além de conteúdos jornalísticos, em postagens de seus usuários.
Resumindo vulgarmente: se você, internauta comum, usar o trecho de uma canção qualquer num tweet, o Elon Musk vai ter de pagar por isso. E ele não poderá se recusar a exibir o seu post na plataforma da qual é dono.
À primeira vista, um projeto sobre o trânsito de informação concebido por uma parlamentar comunista por si só já soa, por motivos históricos, como uma tentativa de controle da liberdade de expressão. Além disso, a proposta foi apresentada às pressas, seguida de pouquíssimo debate. E o pior: é defendida por um grupo que já batalhou pela censura de biografias não-autorizadas.
Para quem não se lembra, “Paulinha”, como Caetano costuma chamá-la, também esteve à frente do movimento ‘Procure Saber’, cuja atuação, há dez anos, quase tornou o Brasil o “paraíso dos livros chapa-branca (nas palavras do escritor Laurentino Gomes). Apoiado no argumento do direito à privacidade, o grupo exigia que biógrafos e editoras pedissem a autorização das personalidades retratadas (ou de suas famílias) antes de publicar obras do gênero. O tema foi levado ao Supremo Tribunal Federal e, em 2015, todos os nove ministros da corte votaram contra a censura prévia desse tipo de material.
PL dos Direitos Autorais desagradou até setores da esquerda
Ou seja, há motivos de sobra para a sociedade desconfiar. Inclusive representantes de ambos os lados da polarização política se manifestaram contrariamente ao PL 2370 antes de ele “empacar” no Congresso (como está até agora).
Para a oposição, a aprovação do projeto inviabilizaria a operação das big techs no Brasil, pois seria muito difícil analisar, precificar e pagar por todos os conteúdos previstos na lei. Sem contar que a proposta nega a própria natureza da internet, baseada na livre circulação e compartilhamento de informações.
“Isso é simplesmente inviável, matematicamente e economicamente falando. É uma bomba devastadora, um plano para tornar o Brasil tão inóspito que as grandes plataformas serão obrigadas a sair do país”, disse, em tom alarmista, o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) em sua conta no Instagram.
Já a esquerda, especialmente a militância mais radical, aponta que o aspecto do projeto voltado aos conteúdos jornalísticos beneficia apenas os grandes conglomerados da imprensa. Afinal, o texto estabelece a remuneração a partir de critérios como audiência, ineditismo e qualidade – o que esmagaria as iniciativas menores ou independentes.
Em uma live transmitida recentemente pelo portal esquerdista GGN, o jornalista José Arbex (cujo currículo inclui passagens por veículos como Folha de S. Paulo, Caros Amigos, Brasil de Fato e O Trabalho, este último de viés trotskista) chegou a chamar os parlamentares petistas de “débeis mentais” por apoiarem o PL dos Direitos Autorais.
No meio da confusão, há juristas que consideram a proposta “precária” e “vaga”, além de demonstrarem preocupação com a menção à criação de “câmaras de arbitragem”, que resolveriam eventuais conflitos entre as partes envolvidas.
De qualquer forma, o projeto segue travado em Brasília. Nos bastidores, há quem diga que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), apenas simulou um esforço para aprová-lo – e, no fundo, nunca se esqueceu de quando os artistas, por meio do movimento ‘342 Artes’ (também liderado por Paula Lavigne) fizeram campanha, em 2021, a favor de seu adversário na disputa pelo cargo, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP).
Na ocasião, figuras como Fábio Porchat, Marcelo Adnet, Ingrid Guimarães e Leandra Leal usaram a hashtag #LiraNão para pressionar os parlamentares a não votarem no candidato do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Mas o fato é que o tema não despertou o interesse da sociedade, como comprova um estudo realizado por pesquisadores da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas. Eles analisaram a repercussão do debate sobre a Projeto de Lei 2370 nas principais redes sociais, e o resultado foi um número de menções muito menor do que o registrado durante as discussões em torno do PL das Fake News, cujo pico aconteceu em abril.
E o mais interessante: o relatório destaca que nem Jandira Feghali, nem o deputado Elmar Nascimento (União-BA), relator da proposta, postaram sequer um “ai” acerca do assunto em seus canais virtuais.
“Paulinha” declara guerra contra as big techs
Mas não pensem que Paula Lavigne assumiu a derrota. Pelo contrário. Agora ela culpa a Meta (dona do Facebook e do Instagram) e o Twitter pela baixa adesão à causa da revisão dos direitos autorais para os artistas.
No último dia 23, ela publicou a seguinte mensagem em suas redes: “Para vocês verem como é pesado o jogo das big techs no debate (...) Foi eu postar a matéria da CNN Brasil sobre os principais pontos de nossa reivindicação que o alcance orgânico foi ZERO. Isso mesmo. De maneira inédita, praticamente nulo o alcance do post. Estranho, não?”.
Dias depois ela emplacou um artigo no jornal O Globo intitulado “Pelo direito do setor artístico de reivindicar seu direito”. “É razoável entender que, se uma plataforma fornecer e exibir um filme de dez anos atrás, criadores envolvidos na obra devem ser remunerados. Disponibilizou e alguém deu play? As empresas (não quem usa a internet) pagam aos criadores e artistas o fruto de um novo ciclo de exploração econômica da obra na janela digital”, diz o texto (que não teve muita repercussão).
Dona de uma elogiada capacidade de gestão, responsável por organizar e multiplicar o patrimônio de Caetano Veloso, Paula Lavigne empresaria outros artistas e já produziu filmes como ‘Lisbela e o Prisioneiro’, ‘Orfeu’ e ‘Dois Filhos de Francisco’. E apesar do fracasso à frente dos movimentos ‘Procure Saber’ (agora ressuscitado com novas pautas) e “342 Artes” (o nome vem do número de votos necessários na Câmara para o impeachment do ex-presidente Jair Bolsonaro), ela está com tudo dentro do governo atual — o que lhe deu força para tentar emplacar o PL 2370.
Seu grupo de influência, chamado nos bastidores de ‘Máfia do Dendê’, puxou uma extensiva e eficiente campanha pelo voto útil em Luiz Inácio da Lula Silva no último pleito. Sabe-se que Caetano sempre preferiu outros nomes da esquerda, como Ciro Gomes e Marina Silva, mas se rendeu a Lula para evitar a reeleição de Bolsonaro (cujo desprezo pela classe artística privilegiada é notório).
Com a vitória do petista, as portas do Planalto se abriram para a realeza baiano-carioca. A começar pela nomeação da cantora Margareth Menezes como ministra da Cultura, no final de 2022. Já em abril deste ano, Lavigne desembarcou em Brasília com uma tropa de artistas para defender a PL das Fake News antes do seu sepultamento. Figuras como Marisa Monte, Roberto Frejat, Glória Pires e Caio Blat estiveram com ela na comitiva — que voltou ao Congresso no início de maio, para propor a versão alternativa/fatiada do projeto original.
Em julho, a empresária viajou novamente à capital federal, mas para participar de um evento que coroou essa nova fase de alinhamento com o poder: o casamento do senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) com a advogada Priscila Carnaúba. Paula e Caetano foram padrinhos dos noivos, bem como Janja e Lula.
O ápice do festerê foi uma versão da música ‘Como Nossos Pais’ (composta por Belchior e eternizada na voz de Elis Regina), cantada em trio pelo baiano, Orlando Morais (marido de Glória Pires) e a primeira-dama da República. “Morri, mas passo bem”, disse a socióloga, feliz da vida, depois da “canja”.
Na verdade, a Janja é a Paulinha do Lula, e não o contrário.
Homenagem à empresária causa tumulto na Assembleia Legislativa do Rio
Um episódio recente que passou batido pela imprensa nacional foi a confusão protagonizada por parlamentares da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) durante a votação de uma homenagem à Paula Lavigne, realizada no final de agosto. Apresentada pela deputada Dani Balbi (PCdoB), a proposta de concessão de uma medalha por seus serviços prestados à cultura fluminense rendeu gritos, ofensas e acusações de misoginia.
O tumulto começou quando o ator e deputado pelo PL Thiago Gagliasso (aquele que brigou com o irmão mais famoso, Bruno, por causa de política) tentou dificultar a realização da sessão, pedindo verificação de quórum. Em seguida, Anderson Moraes, também do Partido Liberal, fez uma brincadeira de baixo gabarito para quem quisesse ouvir, deixando os adversários revoltados.
“Nada pessoal, pelo contrário. O próprio deputado Pedro Ricardo [PROS] disse que, se fosse pelas atitudes dela de hoje, votaria contra. Mas, em memória da juventude dele, por várias homenagens que ele já prestou para ela, votou a favor”, disse Moraes, dando duplo sentido à palavra "homenagem".
Renata Souza (PSOL), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, reagiu: “Ele tratou de objetificar Paula Lavigne. Repudio veementemente a fala do deputado, que foi extremamente misógina e machista. Quando nós chegamos a lugares que esses homens não têm a capacidade de chegar porque são misóginos e odeiam mulheres, temos falas absurdas, nojentas”, afirmou.
A sessão foi suspensa, mas o tumulto continuou com os microfones desligados — e os deputados de esquerda e de direita trocando acusações. Quando os ânimos se acalmaram, a votação foi retomada e a homenagem, aprovada.
Procurada pela reportagem da Gazeta do Povo, a assessoria de imprensa da Uns Produções, empresa comandada por Paula Lavigne, chegou a sinalizar com a possibilidade de uma entrevista. Uma série de perguntas por escrito foi enviada, mas, segundo sua equipe, não serão respondidas em virtude da agenda de compromissos intensa que o casal Veloso cumpre na Europa, onde o cantor atualmente faz uma turnê.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
A gestão pública, um pouco menos engessada
Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura