O homem é um animal racional e ético, capaz de arrazoar sobre o bem comum e fazer para si uma elevada autoimagem. Mas o homem também é um macaco muito esperto, que bota o seu primo chimpanzé no chinelo. Quando um chimpanzé cutuca alguma frutinha com uma vareta para colher benefícios, os cientistas ficam extasiados com a genialidade do macaco. Já quando querem elogiar a inteligência da humanidade, apontam para um sublime tratado filosófico, uma sinfonia imortal ou as descobertas científicas mais estupefacientes.
Mas, se quisermos demonstrar a excepcional esperteza do macaco humano, digamos que o homem é um macaco tão esperto, mas tão esperto, que consegue fazer gato para não pagar conta de luz. Disso resulta que somos um bicho meio esquizoide, pois todos trazemos em nós o Homem Racional, com sua autoimagem elevada, e o Macaco Esperto, cheio de artimanhas para conseguir o que quer. Com sua esperteza, bem pode reduzir o Homem à condição de seu advogado.
Enquanto fui professora, certa feita o meu Macaco apareceu de surpresa. Pulou de um galho quando eu fui aplicar a prova e um aluno, esperançoso, perguntou: “Pode ser em dupla?” O Macaco Esperto exultou e exclamou: “Que beleza! Metade das provas para corrigir!” Afugentei-o com meus brios de Homem Racional, mas tive meu momento arquimediano. Exclamei “Eureca”, porque descobri que uma possível explicação a prova e dupla é a redução pela metade de provas do professor.
A prova em dupla parece invenção do tinhoso, que a colocou em sala de aula para falar aos macacos de cada ser humano envolvido e minar todo projeto sério que uma escola ter. Macacos espertos querem notas boas, macacos espertos querem ter o mínimo de provas para corrigir. A escola vira um simulacro.
Uma elucidadora história da educação
No recém publicado Escola Partida (Contexto, 2020), de Ronai Rocha, descobri que a prova em dupla não foi obra do tinhoso em algum momento da Criação. Era coisa relativamente nova, uma coqueluche que veio nos anos 1970 e chegou no pacote da pedagogia crítica.
Aprendi outras coisas, também: que é só a partir de 1961 que os primeiros anos de escolaridade, que incluem a alfabetização, se tornam obrigatórios no Brasil. Era o ensino primário, que terminava no atual quinto ano (quarta série, para quem está na casa dos 30). Depois, para passar para o curso ginásio, iniciado aos 11 e concluído aos 14, a criança tinha que ser aprovada por um exame de admissão. Se não passasse, não entrava e a vida escolar acabava aí.
Esse exame de admissão foi abolido somente em 1971, e na mesma ocasião o ginásio se tornou obrigatório. Sabem quando o ensino médio se tornou universal? 2009. Para pôr as coisas em perspectiva: quando Niemeyer desenhava Brasília com Lúcio Costa e João Gilberto gravava Chega de Saudade, a alfabetização sequer era obrigatória no Brasil.
O primeiro boom educacional foi, portanto, a década de 1960, e foi precedido pelo movimento da Escola Nova, capitaneado por figuras como Anísio Teixeira, Cecília Meirelles, Roquette Pinto e Fernando de Azevedo. Nas poucas ocasiões em que se fala da Escola Nova, logo se segue a historiagem esquerdista que afirma que tudo acabou por causa do misterioso assassinato de Anísio Teixeira num elevador que teria sido sabotado pelos militares.
No livro de Ronai Rocha, temos uma história mais factível. O que veio depois da Escola Nova? A Pedagogia Crítica, encabeçada por Paulo Freire. Durante a vigência da última ditadura, na década de 1970, essa pedagogia passou a ser a dominante. E cá estamos até hoje.
O motivo do livro
Ronai Rocha recua na história para mostrar exemplos de escola com partido. Começa com a Alemanha nazista, vai à China maoísta. Daí, chega enfim ao Brasil, onde identifica dois maoísmos tropicais: o primeiro é aquele que começou na década de 1970 e o segundo é um efeito colateral deste.
O novo livro de Ronai Rocha não deixa de ser uma sequência do seu Quando ninguém educa. Este mostrava que a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, nem sequer pretendia ser um livro de pedagogia. Era, na verdade, o livro de um comunista voltado a criticar o dirigismo estalinista e apoiar o maoísmo. Por razões que a própria Razão desconhece, tornou-se a Bíblia de pedagogos brasileiros e referência para anglófonos.
No livro novo, ele retoma as críticas: “Há uma atitude de complacência com algo que deveríamos ter reconhecido como um ataque à escola, mas que foi recebido como uma crítica razoável. […] Penso numa lista que inclui os ataques explícitos aos professores que se recusavam a rezar pela cartilha do progressismo pedagógico. Na culta e vetusta Itália dos anos 1970, circularam manifestos esquerdistas contra os professores que, em espírito francamente maoísta, recomendavam aos estudantes […]: ‘O professor nos controla, nos seleciona, nos reprime: devemos denunciá-los a todos!’ […]. Nosso maoísmo foi mais discreto, mas existiu. Com a publicação da Pedagogia do oprimido, Paulo Freire deixou clara sua adesão ao maoísmo.”
Em seguida, coteja trechos desse livro para mostrar que são paráfrases de Mao.
Ao fim e ao cabo, justo quando o Brasil universalizava a escola, difundiu-se entre nós essa ideia de que escola era opressão. De tanto se deplorar a “educação bancária” que ensinava a ler e escrever, nossos professores se sentiram à vontade deixar os alunos semianalfabetos enquanto faziam proselitismo para a chegada da Revolução, quando, aí sim, todas as injustiças seriam desfeitas e a escola seria boa. Oferecemos, pois, um lixo de educação ao povo.
Voltemos a Ronai Rocha, com ênfase minha: “As escolas [foram] expandidas sem que sejam mantidos os padrões de excelência dos estabelecimentos equivalentes no centro da cidade porque há menos expectativas dos consumidores. O sucesso dessa onda de expansão do ensino estava ligado à inexperiência e benevolência dos consumidores desse novo serviço, que acolhiam de boa vontade uma geração de profissionais formados de uma forma acelerada e superficial”.
Aqui, chegamos ao motivo do livro e ao segundo maoísmo tropical. O motivo é o Escola Sem Partido, interpretado por Ronai Rocha com otimismo e cautela ao mesmo tempo. O otimismo reside em ele crer que isso signifique uma postura ativa, e não mais passiva, do usuário da escola pública. O movimento aponta um problema real, causado pela pedagogia crítica dos anos 1970. Agora, finalmente, usuários do ensino básico reclamam e saem da passividade.
Em favor da razoabilidade do Escola Sem Partido, Ronai Rocha experimenta repetir as 6 frases do projeto retirando o não caso a frase seja negativa, ouacrescentando-o, caso afirmativa. Por exemplo: “O professor se aproveitará da audiência cativa dos alunos com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária”. Das 6 frases, 5 soam como absurdos evidentes, de modo que vemos com facilidade a razoabilidade da proposta.
Há uma exceção, que é o preceito segundo o qual o professor deve deixar que os filhos “recebam a educação moral que esteja de acordo com as próprias [i. e., dos pais] convicções morais.” Ora, se tivermos um pai do PCC, o Escola Sem Partido garante que a criança deve ser educada conforme os preceitos morais dos manos. O exemplo é meu, mas Ronai Rocha aponta que os pais podem ter todo tipo de convicção moral, tipos que a escola não deve em hipótese alguma contemplar.
Decidir as fronteiras entre a educação familiar e a escolar é algo importante. Ao cabo, um mal do Escola Sem Partido termina por ser essa invasão da esfera do professor e o incentivo de um outro maoísmo, que manda os alunos filmarem e denunciarem professores conforme a ideologia.
De volta às macacadas
Algo que, a meu ver, vale ser apontado, é a complacência que a pedagogia crítica gera entre os professores. A rotina extraclasse dos professores consiste em preparar aulas e corrigir provas. Com o seminário, o professor não precisa dar aulas. Com trabalhos em grupo e das provas em dupla, divide o número de provas. É bom, também, que o professor estude a matéria e se mantenha atualizado.
Cheguemos ao entorno de uma faculdade de humanas: sempre haverá um bar e sempre haverá alunos, às vezes com professores, falando de política. Com a pedagogia crítica, essa coisa tão aprazível se reveste com um manto de seriedade. Os outros são bancários, eu sou crítico. É tudo desculpa para fazer macacadas.
Disso não se segue que haja uma conspiração de professores pelo menor esforço. O próprio Ronai Rocha conta que, jovem, acreditou nos franceses. Foi dar aula para professores somente para ver-lhes a frustração, ao concluírem que eram meros prepostos do capitalismo. Essa pedagogia destrói o respeito que o Homem Racional tem por si mesmo, e faz dele o advogado do Macaco Esperto.
Como tirar os professores dessa complacência? Decerto tem que haver pressão externa. Mas sabemos que, infelizmente, os complacentes têm uma resposta para essa pressão: vão se dizer donos de consciência crítica e tachar os outros de extrema-direita.
Será que um dia as faculdades de pedagogia mudam?