Autoridades têm detectado uma movimentação da facção criminosa para ingressar em tribunais de justiça e no Ministério Público por meio de concursos públicos.| Foto: Pixabay
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Não é de hoje que o Primeiro Comando da Capital (PCC) utiliza o serviço de advogados para cometer crimes. Mas a principal organização criminosa no Brasil também trabalha para formar os próprios juízes e promotores.

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Autoridades têm detectado uma movimentação da facção criminosa para ingressar em tribunais de justiça e no Ministério Público por meio de concursos públicos. Até onde se sabe, não há fraude envolvida no processo de seleção: tudo seria feito dentro das regras como parte de uma estratégia de longo prazo, que inclui o financiamento das mensalidades de Direito a jovens que, no futuro, possam ser aprovados nos concursos públicos e passem a atuar como agentes do crime organizado dentro da máquina estatal.

As tentativas de infiltração se tornaram mais frequentes nos últimos anos e chamaram a atenção do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Na última semana, o órgão determinou na que a Polícia Federal investigue a tentativa do PCC influenciar o Judiciário por dentro. O corregedor do CNJ, Luis Felipe Salomão, assinou a ordem.

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O avanço do PCC nesse campo é mais um passo na estratégia do grupo, cuja atuação vem se tornando mais sofisticada, e se assemelha ao comportamento de grupos criminosos de outros países — como a máfia de Chicago, chefiada por Al Capone nos anos 30, e a organização liderada pelo traficante colombiano Pablo Escobar.

Tecnologia para barrar a infiltração

Embora mantenha discrição sobre o tema, o Ministério Público do Estado de São Paulo confirma que o PCC vem tentando se infiltrar no poder público.

O subprocurador-geral José Carlos Cosenzo afirma que o fato já é conhecido há alguns anos. “Nós já detectamos, alguns concursos atrás, da mesma forma que a magistratura detectou”, diz. Ele acrescenta que a facção criminosa tem bancado as mensalidades do curso de Direito para futuros advogados e agentes públicos. “Eles patrocinam o curso de Direito na universidade para depois a pessoa advogar para eles e tentar ingressar nas carreiras jurídicas. Eles tentam colocar gente no Ministério Público e no Judiciário”, explica.

O método “tradicional” do PCC para influenciar a atuação da Justiça e dos órgãos de segurança pública envolve dois caminhos: a violência direta e a corrupção. No primeiro caso, as consequências costumam ser pesadas. No segundo, a tentativa de cooptação pode ter o efeito contrário do desejado. A formação dos próprios quadros para influenciar a atuação da Justiça é, de certa forma, uma tentativa de evitar esses riscos. Ao comprar a lealdade do futuro bacharel de Direito, o PCC passa a ser credor de uma dívida sem prazo de validade. “Para eles, é melhor colocar uma pessoa que eles já conhecem desde muito antes”, analisa Cosenzo.

Não necessariamente os integrantes do PCC prestam concurso para os cargos mais altos, como o de promotor e juiz. Outras funções, como oficial de promotoria e analista, também são procuradas pelos criminosos. “É mais fácil se infiltrar em cargos menores onde você tem acesso aos processos do que num cargo maior em que você é vigiado por todos”, afirma o subprocurador.

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Cosenzo explica que o Ministério Público tem aprimorado a investigação sobre os inscritos nos concursos. Além do cruzamento de dados com outras unidades da federação, o processo inclui entrevistas com pessoas próximas do candidato e, mais recentemente, ferramentas digitais que ajudam a detectar qualquer suspeita no passado do candidato. O trabalho tem o apoio do Cyber Gaeco, unidade criada em 2018 como um braço do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado.

Depois de tomarem posse, os aprovados no concurso também passam por dois anos de acompanhamento rigoroso durante o estágio probatório. "No tempo em que ele está no estágio probatório, nós continuamos fazendo o levantamento dos antecedentes e do histórico social. Se tiver algum problema de qualquer ordem que possa prejudicar a atuação do membro como integrante do MP, ele é dispensado”, explica Cosenzo.

O subprocurador diz que não pode detalhar os números, mas afirma que o número de candidatos ligados ao PCC vinha crescendo na última década, até que houve uma queda considerável no último concurso. Ele atribui a diminuição aos esforços adotados para barrar candidatos ligados à organização criminosa.

O Ministério Público do Estado de São Paulo realiza concursos, em média, a cada dois anos. Atualmente, o órgão tem um processo de seleção em andamento.

"Sintonia dos Gravatas"

As evidências da infiltração do PCC em órgãos estatais existem pelo menos desde a década passada.

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Em maio de 2015, agentes da penitenciária de Presidente Venceslau encontraram uma carta em que os criminosos tratam de uma mesada de R$ 5.000 paga a Luiz Carlos dos Santos, então integrante do CONDEPE (Conselho Estadual e Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo). Os intermediários do acerto eram dois advogados: David Gonçalves e Vanila Gonçalves.

A carta dizia: “O Luiz Carlos do CONDEPE, ele esta trabalhando com’ nóis’, já foi autorizado a inclusão do nome dele na folha de pagamento no quadro dos gravatas”, dizia o texto, assinado por “Sintonia Final” — a cúpula do PCC. Na carta, a operação era tratada como prioridade. “Não será economizado moedas para essa situação, tudo que for necessário de dinheiro pode ser usado, sem miséria, o quadro de gravatas também já foi avisado da prioridade deste projeto.”

Durante as investigações, os promotores descobriram que Vanila e Davi tentaram se tornar conselheiros do CONDEPE, mas fracassaram. O pagamento de propina a Santos era o plano B. O órgão é composto por 18 integrantes, indicados por diferentes setores da sociedade. Santos era vice-presidente do colegiado.

O juiz do caso, Gabriel Medeiros, afirma nos autos que os criminosos do “passaram a interferir em órgãos públicos e autoridades do Estado, como Delegados de Polícia, Juízes, Promotores, etc.” — graças à influência exercida pelo conselheiro cooptado. Um dos objetivos era forjar denúncias irreais sobre as condições dos presos para fundamentar futuras denúncias a órgãos internacionais.

Santos ganhava bônus para cumprir algumas missões, como realizar audiências públicas chamando atenção para as supostas condições precárias dos presídios.Os advogados recebiam um pagamento mensal do PCC.

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Na sentença de condenação de Abel Pacheco de Andrade, um dos líderes do PCC, o juiz Gabriel Medeiros escreveu que os criminosos “estenderam tentáculos para o seio do poder público.”

A investigação também trouxe à luz o papel dos advogados dentro do PCC. O núcleo jurídico da facção (chamado de “Sintonia dos Gravatas”) foi estruturado em 2016. Na época, havia 40 advogados atuando como agentes da organização criminosa. Esses intermediários são peças-chaves na engrenagem do PCC por poderem se comunicar de forma sigilosa com os chefes do grupo e receber grandes somas de dinheiro disfarçados como honorários.

A partir da estruturação da “Sintonia dos Gravatas”, eles passaram a prestar assistência aos familiares, bancando despesas médicas e os custos de funerais e outras tarefas, mais nebulosas, como a cooptação de agentes do Estado para favorecer o PCC. “Os advogados integrantes do corpo jurídico do PCC raramente realizavam serviços de índole jurídica aos líderes, pois essa tarefa ficava a cargo de outros advogados contratados para esse fim específico”, afirma o juiz na sentença.

Servidor da Justiça cooptado

No ano passado, o Ministério Público do Mato Grosso do Sul encontrou outras provas da infiltração do PCC no Judiciário. Advogados (inclusive um defensor público) atuavam em conluio com o então chefe do cartório da 1ª Vara de Execução Penal do Tribunal de Justiça do Estado. Rodrigo Pereira da Silva Corrêa usava o acesso privilegiado aos sistemas internos para fornecer informações aos membros do PCC. Em troca, recebia propina — intermediada por advogados da facção.

As informações vazadas incluíam dados sobre futuras remoções de detentos ligados à organização criminosa, e motivaram o planejamento de atentados (abortados) contra autoridades do Judiciário. Em 2021, já sob suspeita de ligação com o PCC, Rodrigo havia sido removido do cargo no tribunal.

Estratégia previsível

Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul e autor de livros sobre criminalidade, como 'Violência, Laxismo Penal e Corrupção do Ciclo Cultural', Diego Pessi afirma que a tentativa de influenciar o poder público é parte da própria natureza das organizações criminosas: “O assédio do crime organizado às instituições não é algo recente no Brasil. A história desses grupos criminosos mostra que, desde sempre eles buscaram uma relação promíscua com o poder”, explica.

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Olavo Mendonça, major da Polícia Militar do Distrito Federal e especialista em segurança pública, concorda: ele diz que a tentativa de se infiltrar no poder estatal é um passo previsível na trajetória do PCC. "Não existe crime organizado poderoso sem a infiltração no poder público", diz. Mendonça afirma que a polícia também já notou uma movimentação suspeita em seus concursos. “Aqui no Distrito Federal já aconteceram tentativas de infiltração. E, em todas as vezes que a gente soube, a Polícia Militar tomou as devidas providências e a pessoa foi excluída." Para Mendonça, a tática de infiltração é pouco frutífera: "É impossível ter uma pessoa tentando se infiltrar e que tenha um comportamento 100% normal. Eles facilmente identificáveis. Se não num primeiro momento, num segundo”, diz.

Por outro lado, Mendonça diz que a infiltração é menos comum do que a cooptação direta. "Em 90% das vezes eles buscam as pessoas que já estão dentro das corporações. É muito mais fácil cooptar do que colocar alguém para dentro desde o começo”, diz.

De certa forma, o subprocurador Cosenzo concorda. Ele afirma que o PCC tem poucas chances de sucesso em sua tentativa de subverter o Ministério Público e o Judiciário. “É dificílimo. A probabilidade é quase zero, por causa da forma como fazemos a investigação sobre a vida social dos candidatos”, assegura.

Já Diego Pessi lembra que, embora a varredura cuidadosa sirva para afastar os membros do PCC, é preciso acompanhar de perto uma possível mudança de estratégia da organização. Pessi diz que o crime organizado modifica a sua forma de atuação continuamente, sempre em busca de brechas legais. “Os processos de seleção realizados pelo MP e magistratura são rigorosos, inclusive no que concerne à análise da vida pregressa dos candidatos. Mas isso não significa que não haja motivos para preocupação”, alerta.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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