Uma peça de teatro de título “A MAP’s Tale” (“A História de um MAP”, em tradução livre), deve estrear em fevereiro próximo em um pequeno teatro de Berlim, Alemanha. MAP é a sigla em inglês para “pessoa atraída por menores”, um termo que tem sido proposto por alguns ativistas e acadêmicos no lugar de “pedófilo” para traçar uma distinção entre pedófilos que não cometem abuso sexual e os que concretizam suas inclinações parafílicas criminosas. A peça é baseada na vida de “Adam”, descrita em um episódio do podcast This American Life, sediado em Nova York e com mais de 430 mil seguidores no Twitter.
O autor do episódio, o jornalista e produtor Luke Malone, com passagem na HBO e publicações como Washington Post, Slate e The Atlantic, comemorou na rede social no fim de novembro: “ótima notícia: minha história sobre jovens pedófilos não-infratores está sendo transformada em uma peça patrocinada pelo governo federal alemão e o Senado de Berlim”. O tweet, com baixo engajamento (27 curtidas), recebeu respostas negativas: “nojento”, disse uma conta. Outra conta, com 1300 seguidores, disse em japonês “os pedófilos estão usando bandeiras do arco-íris e chamando a si mesmos com um novo nome ‘MAP’ para promover a ‘diversidade sexual’ (...) como uma instituição pode ser enganada por uma mentira tão transparente?”.
A companhia de teatro responsável, Monstress Mess, abriu uma campanha de financiamento público da peça no site Indiegogo. De uma meta de quase R$200 mil, a produção arrecadou, até o momento, 11% do valor, doado por 60 pessoas. A companhia usa ambos os termos “pedófilo” e “MAP” para o protagonista, mas chama a pedofilia de “orientação sexual”: a peça “retrata um jovem menino que passa pela puberdade descobrindo que sua orientação sexual é focada em crianças”. Na literatura especializada, o termo “orientação sexual” é reservado para sexualidades legalmente reconhecidas em que os participantes são todos adultos capazes de consentimento. A pedofilia é tratada como uma “parafilia”, uma forma não normal de sexualidade. A sinopse diz que “desde os 14 anos ele embarca em uma jornada sem fim de batalha contra seus desejos, acessando tratamento disponível e descobrindo seu lugar na sociedade”. O roteiro inclui falas reais do pedófilo entrevistado no podcast americano.
A Monstress Mess se justifica dizendo que a peça é apoiada por pesquisa conduzida por profissionais de saúde mental, entrevistas com “Adam” e sob orientação do próprio Luke Malone. A produção buscaria “expor as simplificações exageradas e associações com crime que atualmente moldam nossas percepções de todos os MAP’s e matam qualquer discurso em torno de modos possíveis de prevenir o abuso infantil”.
Passado sombrio das autoridades alemãs
Durante os anos 1960, o Senado de Berlim autorizou e patrocinou um “experimento” conduzido pelo sexólogo Helmut Kentler sobre crianças vulneráveis e órfãs. Em 1988, Kentler declarou ao senado que o estudo havia sido um sucesso. Ele era um acadêmico famoso, autor de muitos livros sobre educação sexual e cuidado parental, presença constante nos jornais e canais de TV da Alemanha. Filho de oficial nazista, ela acreditava que a liberação sexual poderia “prevenir outro Auschwitz”. Ele não era o único, no clima de revolução cultural dos anos 60: no país, diversas creches encorajavam as crianças a ficarem nuas e explorarem os corpos umas das outras, e o Partido Verde, influente até hoje, defendeu a abolição da idade mínima de consentimento para sexo entre crianças e adultos. Começando com a formalização da relação entre um menino de 13 anos que se prostituía e um pedófilo que o alimentava a troco de sexo, Kentler pôs em curso um programa de adoção de vítimas por abusadores. Ele chegou a defender o experimento no parlamento em 1981: “Essas pessoas somente toleram esses meninos débeis mentais porque estão apaixonadas por eles”.
Marco, uma das vítimas do programa, hoje um homem adulto, disse à revista New Yorker em 2021 que foi profundamente afetado pelo abuso. “Se alguém morresse na minha frente, eu ajudaria, mas isso não me afetaria emocionalmente. Eu tenho um muro e as emoções só batem contra ele”. Ele viveu com o pedófilo a quem foi entregue por Kentler, aos cinco anos, até 2003, quando tinha 21 anos. O governo tirou Marco da guarda da mãe porque ela, pobre e divorciada, o deixou vagar pelas ruas até ser atropelado. Ela continuou lutando para retomar a guarda durante toda a infância dele, sem sucesso. Após a adoção, ele ainda via a mãe uma vez por mês, mas o abusador desmarcava e dificultava as visitas. O sexólogo culpava as visitas da mãe pelo desinteresse do menino na escola: “seus sucessos educacionais são arruinados por poucas horas na companhia de sua mãe”, disse Kentler às autoridades de serviço social. Ele também defendeu o pedófilo de acusações de relações impróprias com os oito meninos que adotara.
Um relatório de 2020 encomendado pelo Senado de Berlim e produzido por acadêmicos da Universidade de Hildesheim concluiu que “o Senado manteve lares adotivos e apartamentos compartilhados para jovens berlinenses com homens pedófilos em outras partes da Alemanha Ocidental”. Os autores dizem que muitos desses pedófilos eram homens poderosos, alguns eram atores do Senado, que viviam sozinhos “e ganharam esse poder da academia, instituições de pesquisa e outros ambientes pedagógicos que aceitavam, apoiavam ou até punham em prática posturas de pedofilia”. Entre as autoridades que sabiam disso, mas toleravam, essa tolerância foi conquistada “porque ‘ícones’ de políticas de reforma educacional apoiavam esses arranjos”. Ícones como Kentler. Teresa Nentwig, uma cientista política que estudou Kentler, sugere em um livro que ele próprio conduzia seu “experimento” privado com três meninos adotados. Ela relata ter encontrado resistência para seus estudos e abandonou o mundo acadêmico. O psicólogo e sexólogo morreu em 2008, aos 80 anos.
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