“O maior problema de Hollywood é a pedofilia”, diz o ator Corey Feldman em praticamente todas as suas entrevistas. A ponto de muitos jornalistas já terem afirmado, não sem um tom de ironia, que a frase virou o seu “mantra pessoal”.
Pois agora, aos 52 anos, o ex-astro mirim dos anos 1980 (estrelou filmes como ‘Goonies’, ‘Conta Comigo’ e ‘Sem Licença para Dirigir’) finalmente está sendo levado a sério. E por causa de um escândalo no qual sequer está envolvido.
Feldman voltou a ser lembrado graças a ‘O Lado Sombrio da TV Infantil’, minissérie documental da plataforma Max que, desde já, é um dos maiores sucessos de 2024 no streaming.
A produção revela os bastidores sombrios do canal Nickelodeon, responsável por revolucionar a cultura teen a partir do final da década de 1990.
Ligada à gigante do entretenimento Paramount, a “Nick”, como também é conhecida no Brasil, inovou ao criar séries de comédia protagonizadas por crianças e adolescentes.
Sem caráter educativo e mais próximos da linguagem dos sitcoms, programas como ‘iCarly’, ‘Drake & Josh’ e ‘Brilhante Victória’ conquistaram pelo menos duas gerações de espectadores em todo o mundo e obrigaram concorrentes como a Disney a copiar seu modelo.
Mas os garotos que cresceram vendo esses programas e hoje são adultos perceberam algo estranho nos conteúdos – especialmente nos assinados pelo produtor e roteirista Dan Schneider, idealizador das principais atrações do canal.
E começaram a postar nas redes sociais trechos das séries que chamam a atenção por um humor de duplo sentido e cenas de cunho sexual.
Os cortes trazem pequenos detalhes, como meninas segurando objetos fálicos ou vestindo trajes sugestivos, porém carregados de significado erótico.
Ou seja: era como se os adultos da equipe de criação “contrabandeassem” para dentro dos programas piadas internas impróprias e de mau gosto para se divertir entre si.
Em paralelo à descoberta dos antigos fãs, pipocaram várias denúncias de artistas e técnicos com relação ao comportamento de Schneider nos estúdios gravação.
Cruel e autoritário, ele é acusado de levar seus funcionários à exaustão e manter um ambiente de trabalho altamente “tóxico”, como se diz atualmente.
O mais chocante, no entanto, vem agora. Três pedófilos atuaram nos bastidores do canal e tiveram livre acesso às crianças durante muito tempo – sendo que um deles estuprou de forma brutal o ator Drake Bell, uma das maiores estrelas da casa, então com 15 anos.
Os criminosos acabaram sendo condenados e presos em algum momento. A Nickelodeon, contudo, conseguiu, habilmente, abafar os casos.
E mesmo após a grande repercussão de ‘O Lado Sombrio da TV Infantil’, segue emitindo comunicados burocráticos sobre sua “preocupação com a integridade do elenco”.
Já Dan Schneider, afastado da empresa desde 2018 justamente por sua conduta antiprofissional, gravou uma entrevista “chapa branca” na qual se desculpa de forma genérica com quem “eventualmente prejudicou”.
Uma nota oficial divulgada por seus assessores, no entanto, trata de uma verdade inconveniente e quase sempre ignorada quando esse tipo de abuso é revelado: a conivência de quem está ao redor.
“Todas as histórias, diálogos, figurinos e maquiagem foram totalmente aprovados por dezenas de adultos. Um grupo voltado para boas práticas leu e aprovou os roteiros, e os executivos de programação revisaram e aprovaram os episódios. Além disso, sempre havia pais, cuidadores e amigos dos atores assistindo às filmagens e aos ensaios”, diz o texto.
Não que isso limpe a barra Schneider, porém amplia o leque de responsabilidades.
Conforme afirmou o ator Bryan Hearne, ex-integrante do cast da Nick, “Há um ponto fraco no estrelato infantil: as crianças são apenas cifrões no set de filmagem”.
Como “o show não pode parar” – e o dinheiro precisa entrar –, executivos, produtores e técnicos permanecem em silêncio diante da exploração e dos abusos sofridos pelos astros mirins.
Muitos deles representam a única fonte de renda dos pais, que também acabam fazendo vista grossa em nome de uma possível ascensão na carreira dos filhos.
Abuso infantil é uma constante desde os primeiros tempos da indústria do cinema
Crianças trabalham no mundo artístico desde que as companhias de teatro pioneiras começaram a excursionar pela Europa (isso se não contarmos os circos).
Na indústria do cinema não foi diferente, e os primeiros registros de menores obrigados a cumprir longas jornadas de trabalho remontam às primeiras décadas do século passado.
Biografias de ícones primordiais como Judy Garland e Shirley Temple são recheadas de relatos sobre gravações exaustivas – muitas delas “turbinadas” pelo uso de anfetaminas.
As jovens atrizes ainda eram incentivadas a fumar e obedecer a uma rigorosa dieta líquida, para não aparecerem acima do peso nas telas.
Nesse ambiente insalubre, não é surpresa que os abusos de ordem sexual também acontecessem.
Garland foi assediada dos 16 aos 20 anos pelo lendário chefão da MGM Louis B. Mayer, enquanto Temple afirmou ter sido obrigada a ver, ainda aos 12, o pênis de outro executivo do mesmo estúdio – só para ficarmos nos dois nomes citados acima.
E a prática não é uma exclusividade norte-americana. Um dos casos europeus mais conhecidos é o do sueco Björn Andrésen, intérprete do personagem Tdazio na adaptação do romance ‘Morte em Veneza’, dirigida em 1971 por Luchino Visconti.
Assim como o adolescente criado pelo escritor Thomas Mann, Andrésen passou a ser “fetichizado” por homens adultos. Estimulado a frequentar bares suspeitíssimos, iniciou uma rotina de participação em orgias e consumo de todo o tipo de droga.
Descartado pela indústria, cresceu desamparado e sofrendo de depressão, como mostra o documentário o ‘O Menino Mais Bonito do Mundo’, sobre sua trajetória.
Mas nada se compara ao boom dos astros-mirins dos anos 1980, período em que Hollywood descobriu o filão dos filmes protagonizados por adolescentes.
De Brooke Shields a Corey Feldman, passando por Drew Barrymore, Alyssa Milano, Christina Applegate e tantos outros, a quantidade de jovens milionários em Los Angeles era tão grande que um novo mercado foi criado na cena noturna local: o das discotecas para menores de idade.
Na mais conhecida delas, o clube Sodapop, crianças-prodígio festejavam e se entorpeciam ao lado de astros adultos como se isso fosse algo normal.
Anos mais tarde, descobriu-se que o proprietário do lugar, Alphy Hoffman, abusou sexualmente de diversos clientes embriagados.
Pelo menos dois frequentadores famosos da boate tiveram uma morte trágica, relacionada a problemas com álcool e drogas – Corey Haim (do clássico da Sessão da Tarde ‘Garotos Perdidos’) e River Phoenix, irmão mais velho de Joaquin Phoenix, vencedor do Oscar por ‘Coringa’.
Mas não pense que esse tipo de final terrível ficou para trás junto com a loucura hedonista da década de 1980. Há apenas dois anos, em 2022, outra ex-estrela infantil, o cantor e ator Aaron Carter, comoveu os fãs ao morrer na banheira de casa.
Irmão menos famoso de Nick Carter, integrante da boyband Backstreet Boys, ele se afogou enquanto estava sob o efeito do medicamento Alprazolam.
Aliás, o mundo da música também é repleto de talentos precoces que se tornaram adultos problemáticos. Whitney Houston, Amy Winehouse, Britney Spears, Demi Lovato, Justin Bieber, o rapper Lil Wayne e o próprio Michael Jackson são apenas alguns deles.
Primeira lei de proteção aos astros mirins foi promulgada na década de 1930, na Califórnia
A preocupação com os astros infantis em Hollywood remonta ainda aos anos 1930, quando entrou em vigor na Califórnia a Lei Coogan – que exige a abertura de um fundo onde parte dos rendimentos dos atores mirins é depositado para uso futuro.
O nome é uma referência a Jackie Coogan, conhecido por contracenar com Charles Chaplin no filme ‘O Garoto’, na década anterior. Quando cresceu e ganhou alguma autonomia, o ator descobriu que foi roubado pelos próprio pais.
Algo semelhante aconteceu com figuras como Macaulay Culkin, de ‘Esqueceram de Mim’ (outro prodígio cuja carreira não deslanchou e amargou anos afundado no vício).
O que indica a existência de brechas na legislação, modificada há cerca de 20 anos para incluir mais mecanismos de proteção.
No ano passado, o estado de Illinois aprovou uma lei voltada para uma atividade em alta no mundo todo: a dos influenciadores infantis.
De acordo com a proposta, os pais devem transferir 50% dos ganhos dos menores que aparecem nas plataformas da internet para contas bloqueadas até sua maioridade.
Quanto à jornada de trabalho, a maioria dos estados norte-americanos garante que ela não exceda o tempo de seis horas. E, em alguns lugares, é obrigatório reservar três horas para aulas com um professor durante o dia.
Além disso, há diversas fundações voltadas para o apoio a artistas-mirins e suas famílias.
A mais famosa, The Actors Fund, tem entre seus idealizadores o diretor Ron Howard – que ingressou na indústria como astro teen e se consagrou na vida adulta ao vencer o Oscar pela condução do longa ‘Uma Mente Brilhante’ (2002).
O instituto de Howard e organizações como Child Actor Advocates, The Young Entertainer Awards Foundation e MusiCares fornecem uma variedade de serviços e programas de apoio para os profissionais de entretenimento em todas as fases de suas carreiras, incluindo assistência financeira, serviços de saúde e aconselhamento.
Todo esse aparato de suporte, no entanto, mostrou não ser suficiente para conter a pedofilia e o abuso psicológico denunciado por ‘O Lado Sombrio da TV Infantil’.
Como bem lembrou o crítico de televisão Eric Deggans, da rede pública americana NPR, a Nickelodeon não é mais uma potência como há 20 anos.
Mas a Disney, a Apple TV+ e a Netflix ainda produzem um número considerável de séries que empregam centenas de crianças e adolescentes todos os anos.
“Se esses jovens atores estão em situações desconfortáveis, ou que acham injustas, deveriam ter a liberdade para falar sem se preocupar em perder o emprego ou encerrar a carreira. E os adultos também”, afirmou.