Na obra “Sobre a Questão Judaica”, escrita em 1843, Karl Marx faz uma reflexão sobre a situação dos judeus na Prússia. O livro expõe a visão teórica de direitos dos homens sob a perspectiva marxista — a qual não ficou restrita à época, mas também serviu de base para toda a visão de direitos humanos dos marxistas.
Ele rejeita a interpretação de “direitos” trazida pelo iluminismo. Rejeita a ideia de direitos como algo natural, afirmando que não seria algo inato ao homem, mas sim uma conquista da “luta contra as tradições históricas em que o homem, até agora, foi educado”. Daí advém a expressão “conquistar direitos”, costumeiramente utilizada por grupos integrantes da esquerda contemporânea.
Quem mereceria esses direitos? Apenas aqueles que tivessem lutado e, portanto, os merecido, isto é: o discurso marxista denota a subjetividade dos direitos, haja vista que eles possuem sua existência atrelada ao mérito político frente à sociedade. Não se trataria, assim, de um fundamento objetivo universal, que se aplicaria a todos igualmente, como defende a visão liberal.
Essa visão de mundo parece ter sido familiarizada por espectros políticos além da esquerda marxista, uma vez que integrantes de parcela da direita também buscam subjetividade para conferir alguns dos direitos mais básicos a indivíduos da sociedade.
O que Danilo Gentili tem a ver com isso?
A condenação de Danilo Gentili a seis meses de detenção, por injúria direcionada à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), causou alvoroço entre ambos os lados do espectro político, sendo o assunto mais repercutido desta quinta-feira (11) nas redes sociais.
Algumas vozes brasileiras identificadas como à esquerda criticaram a sentença, vide a economista Laura Carvalho, responsável pelo programa econômico do ex-presidenciável socialista Guilherme Boulos. Ela saiu em defesa de Danilo ao escrever em seu Twitter:
“absurda essa condenação do @DaniloGentili. A defesa da liberdade de expressão tem de ser incondicional nesse momento. Quem comemora não percebe que os comediantes progressistas podem sofrer em dobro com esse tipo de arbitrariedade.”
Além dela, outras figuras como o comediante Fábio Porchat e o apresentador Marcelo Tas se manifestaram igualmente contrários à condenação.
Entre as justificativas dadas para a adequação da sentença, constam os argumentos de que a injúria configura crime, sendo tipificada pelo artigo 140 do Código Penal, e que, portanto, a “liberdade de expressão não é absoluta”.
Contudo, argumentar com base em um ordenamento jurídico positivado possui dois problemas principais. Inicialmente, porque a condenação ocorreu na primeira instância, podendo ainda ser revertida em 2º grau.
E, na medida em que ela contrariou precedentes jurisprudenciais — a interpretação dada pela juíza do caso destoa do entendimento majoritário de juízes em casos semelhantes —, a possibilidade de reversão em favor de Danilo aumenta.
Como analisou o jornalista Carlos Andreazza, “a decisão é excêntrica, juridicamente precária, desprovida de lastro jurídico, e submete todo cidadão ao risco desproporcional de se ver de repente preso em decorrência de uma ofensa, por estúpida que seja”.
A outra questão é a falta de coerência de uma esquerda que critica diversas legislações em vigor, defende o garantismo penal e adota postura combativa ao cerceamento de liberdades individuais pelo Estado, mas baseia a moralidade em uma lei. Nesse sentido, Thomas Jefferson é categórico: “se uma lei é injusta, um homem está não apenas certo em desobedecê-la, mas é obrigado a fazê-lo”.
Celebrar uma condenação por crime contra a honra é chocar o ovo da serpente. O jornalista Paulo Cezar de Andrade Prado é um exemplo de vítima da privação de liberdade em virtude de crime contra a honra: ele ficou detido por mais de um mês em 2018, tendo sido condenado por difamação em ação movida em 2013 pelo também jornalista Milton Neves. O processo faz menção ao blogueiro tê-lo chamado de “barrigada perdida”.
Muitas celebridades se posicionaram publicamente em favor de Danilo Gentili. Rafinha Bastos foi um deles: “é um absurdo que um comediante perca um processo judicial por algo que falou, seja contra político, seja contra cantora, seja contra celebridades. Não é só comediante que tem de ter essa liberdade: queria viver em uma sociedade democrática e livre para não haver restrição aos meus pensamentos e à minha fala". Os humoristas Antônio Tabet, Dani Calabresa e Maurício Meirelles, entre outros, foram alguns dos que também manifestaram apoio a Gentili.
O apoio de parcela da esquerda à condenação do apresentador contrasta com a pesquisa do instituto Ipsos que demonstrou que o direito mais citado globalmente que deve ser defendido é a liberdade de expressão, com 32% dos entrevistados. Isto é, mundialmente a livre expressão é uma preocupação superior ao que se verifica no Brasil. Todavia, três quartos dos brasileiros acreditam que direitos humanos beneficiam quem não os merece.
Talvez indique que o brasileiro não tem compreensão do que é, de fato, a liberdade de expressão.
As críticas realizadas por diversas organizações internacionais à falta de liberdade de expressão no país são comuns. Levantamentos que analisam a liberdade de expressão sob um ponto de vista desejável em instituições democráticas são unânimes em manifestar preocupação com a criminalização da calúnia, difamação e injúria. Ela está presente em estudos como o da organização não governamental Artigo 19, o Freedom House, elaborado pela revista britânica The Economist, e dos Repórteres Sem Fronteiras quando analisam o Brasil.
Não é de se espantar que tenhamos uma população que defende, em sua maior parte, a economia ser regulada mais pelo Estado do que pelo mercado, além de atribuir ao governo as responsabilidades de redução das desigualdades e provimento de serviços básicos. Aparentemente, os brasileiros também clamam pelo ente governamental quando se trata de cercear o direito de adversários políticos — já que o posicionamento costuma variar de acordo com quem, e não o que, está em pauta.
Um exemplo foi o silêncio de parte da esquerda brasileira acerca da nomeação de diversos nomes controversos para a Suprema Corte por parte do Partido dos Trabalhadores, durante sua permanência no Palácio do Planalto. A direita denunciou por anos que estava em curso um “aparelhamento do STF”. Porém, quando Jair Bolsonaro ventilou a possibilidade de aumentar o número de ministros ou dar fim à PEC da Bengala — que estabelece aposentadoria compulsória de magistrados a partir dos 75 anos, e não mais 70 — para ganhar mais indicações, a esquerda se apressou em acusar uma tentativa de aparelhamento do Tribunal.
Como afirmou Paulo Polzonoff Jr., “somos uma sociedade que depende do Estado até mesmo para proteger coisas etéreas e subjetivas como ‘o bom nome’, ‘o bom conceito junto à sociedade’, ‘a honradez’. […] Cabe a ela, à juíza onipotente, zelar pela honra não só do indivíduo que se sente ultrajado, como também pela honra coletiva, pela ‘honra social’”.
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