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Em "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", Daniel Kahneman discute a influência da intuição em nossas decisões
Em “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar”, Daniel Kahneman discute a influência da intuição em nossas decisões.| Foto: Unsplash/Chen Mizrach

Morto no último mês de março, aos 90 anos, o professor e pesquisador israelense Daniel Kahneman é considerado o pai da "economia comportamental".

Radicado nos EUA, onde lecionou por décadas na Universidade de Princeton, ele se formou em Psicologia, mas venceu o Prêmio Nobel em Ciências Econômicas, em 2002, justamente por integrar o conhecimento das duas áreas.

Um de seus livros mais famosos é 'Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar', lançado no Brasil pelo selo Objetiva e que discute a influência da intuição em nossas decisões.

Leia a seguir um recorte da obra em que Kahneman demonstra como pensamos na vida como uma narrativa — e nos preocupamos tanto com o seu final.

Conhecida por sua música belíssima, a ópera La Traviata, de Verdi é também uma história comovente do amor entre um jovem aristocrata e Violetta, uma cortesã.

O pai do jovem aborda Violetta e a convence a abrir mão de seu amor, a fim de proteger a honra da família e as perspectivas de casamento da irmã do jovem. Em um ato de autossacrifício supremo, Vio­letta finge rejeitar o homem que adora. Pouco depois ela é acometida de consumpção (o termo usado para tuberculose no século XIX).

No último ato, Violetta está morrendo, cercada por alguns amigos. Seu amado foi avisado e corre até Paris para vê-la. Ao saber da notícia, ela é transformada pela esperança e alegria, mas também está se deteriorando rapidamente.

Não interessa quantas vezes você já assistiu à ópera, você é arrebatado pela tensão e medo do momento: o jovem enamorado chegará a tempo?

Há uma sensação de que é imensamente importante que ele fique junto de sua amada antes que ela morra. Ele consegue, é claro, alguns maravilhosos duetos são cantados e após dez minutos de música gloriosa Violetta morre.

A caminho de casa, voltando da ópera, fiquei pensando: por que nos importamos tanto com esses últimos dez minutos? Percebi rapidamente que eu não dava a menor importância ao restante da vida de Violetta.

Se me fosse informado que ela morreu com 27 anos, e não com 28, como eu acreditava, a notícia de que havia perdido um ano de vida feliz não teria me comovido em nada, mas a possibilidade de que perdesse os últimos dez minutos importava um bocado.

Além do mais, a emoção que senti pelo reencontro dos enamorados não teria mudado se eu viesse a saber que na verdade passaram uma semana juntos, e não dez minutos. Se o jovem tives­se chegado tarde, porém, La Traviata teria sido uma história completamen­te diferente.

Uma história é sobre eventos significativos e momentos me­moráveis, não sobre a passagem do tempo. A negligência com a duração é normal em uma narrativa, e o fim muitas vezes define seu caráter. As mes­mas características essenciais aparecem nas regras das narrativas e nas lem­branças de colonoscopias, férias e filmes.

É assim que o eu recordativo funciona: ele compõe histórias e as retém para futura referência.

Não é apenas na ópera que pensamos na vida como uma história e desejamos que termine bem. Quando ouvimos falar na morte de uma mulher que se afastou da própria filha por muitos anos, queremos saber se as duas se reconciliaram quando a morte se aproximou.

Não estamos preocupados com os sentimentos da filha — é a narrativa da vida da mãe que queremos incrementar. Importar-se com as pessoas muitas vezes assu­me a forma de uma preocupação com a qualidade de suas histórias, não com seus sentimentos.

De fato, podemos ficar profundamente comovidos até com eventos que mudam as histórias de pessoas que já morreram.

Sentimos pena de um homem que morreu acreditando que sua esposa ainda o amava, ao saber que ela teve um amante por muitos anos e con­tinuou com o marido apenas pelo dinheiro. Sentimos pena do marido mesmo ele tendo vivido uma vida feliz.

Sentimos a humilhação de um cientista que fez uma importante descoberta que se mostrou falsa depois que ele morreu, mesmo que não tenha sofrido a humilhação.

O mais im­portante, é claro, todos nos importamos intensamente com a narrativa de nossa própria vida e queremos muito que seja uma boa história, com um herói decente.

O psicólogo Ed Diener e seus alunos se perguntaram se a negligência com a duração e a regra do pico-fim governariam avaliações de vidas intei­ras.

Eles usaram uma breve descrição da vida de uma personagem fictícia chamada Jen, uma mulher que nunca se casou nem nunca teve filhos, e que morreu instantaneamente e sem dor num acidente de automóvel.

Numa versão da história de Jen, ela foi extremamente feliz durante toda a sua vida (que durou 30 ou 60 anos), apreciando seu trabalho, tirando férias, passando tempo com os amigos e em seus hobbies. Outra versão acrescen­tou cinco anos extras à vida de Jen, que agora morria quando estava com 35 ou 65 anos.

Os anos extras foram descritos como agradáveis, mas menos do que antes. Depois de ler uma biografia esquemática de Jen, cada participan­te respondia a duas perguntas: “Tomando a vida dela como um todo, até que ponto você acha que a vida de Jen foi desejável?” e “Que total de felici­dade ou infelicidade você diria que Jen experimentou em sua vida?”.

Os resultados forneceram evidência clara tanto da negligência com a duração como do efeito pico-fim. Em um experimento entressujeitos (di­ferentes participantes viram diferentes formatos), dobrar a duração da vida de Jen não teve o menor efeito na desejabilidade de sua vida, ou nos julga­mentos sobre a felicidade total que Jen experimentou.

Claramente, sua vida foi representada por uma fatia de tempo prototípica, não como uma sequência de fatias de tempo. Consequentemente, sua “felicidade total” foi a felicidade de um período típico em sua vida, não a soma (ou integral) de felicidade pela duração de sua vida.

Como esperado segundo essa ideia, Diener e seus alunos também descobriram um efeito menos-é-mais, um indicativo forte de que uma mé­dia (protótipo) veio substituir uma soma. Acrescentar cinco anos “ligeira­mente felizes” a uma vida muito feliz causou uma queda substancial nas avaliações da felicidade total dessa vida.

Por insistência minha, eles também colheram dados sobre o efeito dos cinco anos extras em um experimento intrassujeito; cada participante emi­tiu os dois julgamentos em imediata sucessão.

A despeito de minha longa experiência com erros de julgamento, eu não acreditava que pessoas racio­nais podiam dizer que acrescentar cinco anos ligeiramente felizes a uma vida a tornariam substancialmente pior. Eu estava errado. A intuição de que os decepcionantes cinco anos extras tornavam a vida toda pior foi esmagadora.

O padrão de julgamentos pareceu tão absurdo que Diener e seus alu­nos inicialmente acharam que isso representava a tolice típica dos jovens que tomavam parte em seus experimentos.

Entretanto, o padrão não mu­dou quando os pais e amigos mais velhos dos alunos responderam às mes­mas perguntas. Na avaliação intuitiva de vidas inteiras, bem como de bre­ves episódios, picos e fins importam, mas duração não.

O trabalho de parto e os benefícios de férias sempre surgem como objeções à ideia de negligência com a duração: todos nós partilhamos da intuição de que é muito pior que um trabalho de parto dure 24 horas do que seis horas e de que seis dias em um bom resort é melhor do que três.

A duração parece importar nessas situações, mas isso apenas porque a quali­dade do fim muda com a extensão do episódio.

A mãe está mais esgotada e desamparada após 24 horas do que após seis horas, e o veranista está mais revigorado e descansado após seis dias do que após três. O que verdadeira­mente importa quando aferimos intuitivamente tais episódios é a deterio­ração progressiva ou o incremento da experiência em progresso, e como a pessoa se sente no fim.

Avaliamos as férias pelas lembranças que esperamos armanezar

Considere uma opção de férias. Você prefere passar uma semana relaxante na praia familiar aonde foi no último verão? Ou espera enriquecer seu es­toque de lembranças?

Indústrias distintas se desenvolveram para atender às duas alternativas: resorts oferecem relaxamento revigorante; turismo tem a ver com ajudar as pessoas a construir histórias e juntar lembranças.

O fre­nesi fotográfico de muitos turistas sugere que armazenar lembranças é com frequência um importante objetivo, que molda tanto os planejamentos para as férias como a experiência de gozá-las.

O fotógrafo não vê a cena como um momento a ser saboreado, mas como uma futura lembrança a ser projetada. Fotos podem ser úteis para o eu recordativo — embora rara­mente as olhemos por um longo tempo, ou com a frequência que imaginá­vamos, ou nem sequer as olhemos —, mas bater fotos não necessariamen­te é o melhor modo de o eu experiencial do turista apreciar uma vista.

Em muitos casos avaliamos as férias turísticas pela história e as lem­branças que esperamos armazenar. A palavra inesquecível é com frequência usada para descrever os principais momentos das férias, revelando explici­tamente o objetivo da experiência.

Em outras situações — o amor nos vem à mente — a declaração de que o atual momento nunca será esquecido, embora nem sempre seja bem assim, muda o caráter do momento. Uma experiência sabidamente inesquecível ganha um peso e uma significação que de outro modo ela não teria.

Ed Diener e sua equipe forneceram evidência de que é o eu recor­dativo que escolhe as férias. Eles pediram a estudantes para escrever diá­rios e registrar uma avaliação diária de suas experiências durante as fé­rias.

Os estudantes forneceram também uma classificação global das férias quando elas terminaram. Finalmente, indicaram se pretendiam ou não repetir as férias que haviam acabado de ter.

A análise estatística de­terminou que as intenções para as férias futuras foram inteiramente de­terminadas pela avaliação final — mesmo quando essa pontuação não representou precisamente a qualidade da experiência que haviam descri­to nos diários. As pessoas escolhem por lembrança quando decidem se querem ou não repe­tir uma experiência.

Um experimento mental sobre suas próximas férias vai lhe permitir observar sua atitude em relação a seu eu experiencial:

No fim das férias, todas as fotos e vídeos serão destruídos. Além disso, você vai tomar uma poção que apagará todas as suas lembranças da viagem.

Como essa perspectiva afetaria seu projeto de férias? Quanto você estaria disposto a pagar por elas, comparado a férias normalmente inesquecíveis?

Embora eu não tenha estudado formalmente as reações a essa situação, minha impressão ao discuti-la com as pessoas é de que a eliminação das lembranças reduz enormemente o valor da experiência.

Em alguns casos, as pessoas tratam a si mesmas como tratariam outro amnésico, escolhendo maximizar o prazer total mediante a volta a um lugar onde foram felizes no passado.

Porém, algumas pessoas dizem que não se dariam absolutamente ao trabalho de ir revelando que se importam apenas com o eu recordativo, e importam-se menos com seu eu experiencial amnésico do que com um estranho amnésico.

Muitos observam que não mandariam nem a si mes­mos, nem outro amnésico para escalar montanhas ou fazer trilhas na flo­resta — porque essas experiências são sobretudo dolorosas em tempo real e adquirem valor com a expectativa de que tanto a dor como a alegria de atingir o objetivo serão inesquecíveis.

Para outro experimento mental, imagine que você está diante de uma cirurgia dolorosa durante a qual vai permanecer consciente.

Eles lhe explicam que você vai gritar de dor e implorar que o cirurgião pare. Con­tudo, prometem a você um medicamento indutor de amnésia que varrerá completamente qualquer lembrança do episódio. Como você se sente diante dessa perspectiva?

Aqui, mais uma vez, minha observação infor­mal é de que a maioria das pessoas se revela notavelmente indiferente aos sofrimentos do seu eu experiencial.

Alguns dizem que não dão a menor importância. Outros partilham de meu sentimento, que é de que sinto pena de meu eu sofrendo, mas não mais do que sentiria de um estranho em sofrimento.

Por mais estranho que pareça, eu sou meu eu recordativo, e o eu experiencial, que vive de fato minha vida, é como um estranho para mim.

Conteúdo editado por:Omar Godoy
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