Não é à toa que, nas eleições argentinas, para compor chapa como vice-presidente Maurício Macri convidou o senador peronista Miguel Pichetto. Apesar da derrota nas eleições de 2015, o peronismo não está enfraquecido na Argentina. A principal adversária de Macri, a ex-presidente, senadora e candidata a vice da chapa vitoriosa das primárias de Alberto Fernandes, Cristina Kirchner, se define como “peronista radical", e não kirchnerista.
Quando Macri se elegeu presidente, o movimento peronista estava dividido entre dois candidatos, como explica o cientista político Luis Tonelli. “Alberto Fernández [que venceu as primárias do dia 11 de agosto] obteve a mesma porcentagem que Daniel Scioli nas primárias de 2015", analisa. Além disso, em 2015 o peronismo garantiu nas eleições o comando de 13 das 24 províncias no país. Entender um pouco do que representou o General Juan Perón, que governou o país entre de 1946 a 1952, e entre 1973 a 1974, ajuda a entender a formação ideológica dos argentinos.
“Em três mandatos presidenciais, [Perón] acuou a iniciativa privada, produziu inflação, agrediu opositores, atacou a imprensa, recebeu nazistas alemães, aliciou sindicalistas e colocou os seus para repreender manifestações contrárias. (...) Construiu com os trabalhadores uma relação de dependência e adoração. Tal como Getúlio Vargas e outros líderes latino-americanos na época, incorporou o 13º salário, folgas, férias, aumentou salários e reduziu jornadas de trabalho”, escrevem Leandro Narloch e Duda Teixeira no livro Guia Politicamente Incorreto da América Latina.
Com Perón surgiu o peronismo (ou justicialismo), movimento baseado em sua ideologia e na ideologia de sua segunda esposa, a mítica Eva Perón. O peronismo pode ser definido sob três pilares principais: a busca pela justiça social, a independência política e a soberania nacional. Embora seja associado ao sindicalismo, contudo, o justicialismo não tem um lado político homogêneo. De acordo com Ernesto Calvo, professor de Ciência Política da Universidade de Maryland, “o peronismo das províncias da Argentina tende a ser de direita e, na área metropolitana do país, de esquerda”.
Perón não se apresentava como um ideólogo socialista. Pelo contrário. Em discurso em frente a Bolsa de Valores de Buenos Aires em 1944, ele afirmou: “Meus queridos capitalistas! Não se assustem com o movimento trabalhista! O capitalismo nunca esteve tão seguro, porque eu também sou capitalista. O que eu quero é organizar os trabalhadores para que o Estado possa controlá-los e determinar regras para eles, neutralizando em seus corações as paixões ideológicas e revolucionárias que podem colocar em perigo nossa sociedade capitalista pós-guerra. Mas os trabalhadores só serão facilmente manipulados se nós dermos a eles alguns benefícios".
Sob o governo de Perón, a constituição argentina foi alterada para que as empresas fossem obrigadas a se submeter aos interesses governamentais. Ele fechou a economia do país, estatizou empresas e instituiu um forte controle de preços, obrigando fazendeiros a vender seus produtos a preços muito abaixo dos que poderiam obter no mercado internacional.
A imprensa oposicionista era reprimida e a propaganda política elogiava o governo de Perón. A doutrinação por meio de cartilhas de alfabetização era parte importante da propaganda e as crianças aprendiam a ler com frases como “Perón e Evita nos aman”, “Perón es un buen gobernante”. Menções e elogios aos presentes dados pela Fundação Eva Péron eram comuns nesses livros.
Seu ideário continuou influente mesmo depois de ele sofrer um golpe de militares. Duas décadas mais tarde, o peronismo retornou ao poder, com a vitória de Héctor Cámpora nas eleições de 1973. A primeira medida dele foi a de anistiar os presos políticos, o que permitiu que Perón voltasse ao país. Para abrir caminho para o líder, Cámpora renunciou após um mês e meio de mandato e convocou novas eleições, vencidas por Perón, tendo sua terceira esposa Isabel Martínez de Perón como vice-presidente.
Apesar desse mandato não ter durado muito para o general, que morreu no ano seguinte, suas ideias estão bem vivas na política argentina. Desde a sua morte, em 1974, a Argentina teve 27 anos de governos explicitamente peronistas, 7 anos de governos militares, 7 anos e meio de governo da União Cívica Radical e, desde o final de 2015, o governo de Maurício Macri, que contou com vários peronistas em seu governo.
Para professor de relações internacionais da UERJ Maurício Santoro, nenhum dos partidos conseguiu colocar a Argentina novamente em uma trajetória sólida de crescimento como a vivida pelo país no fim do século XIX e início do século XX. “Essas várias mudanças de governo representaram giros consideráveis em políticas públicas importantes, de regras para investidores internacionais à política externa. O país muda muito de curso, é difícil ter estabilidade. É um contraste com o Brasil, onde até recentemente havia um consenso maior e uma continuidade de políticas entre um governo e outro”, explica.
Sobre Perón, o professor afirma que se trata do político mais importante da Argentina no século XX e que, sim, ele continua a influenciar de forma decisiva a vida pública do país. “Sua visão econômica era bastante nacionalista, semelhante ao modelo desenvolvimentista do Brasil nas décadas de 1940-50”, afirma. Ele diz que, de modo geral, essa é a linha de pensamento do partido, mas que há exceções, como na administração de Carlos Menem, mais alinhada com uma política econômica liberal.
Para Santoro, os Kirchner representam a experiência da esquerda peronista da década de 1970. “Não é por acaso que eles deram muita atenção às políticas voltadas para a memória do período e a experiência da ditadura”, diz. Mas a base do governo de Perón era os sindicatos e os industriais, um modelo econômico que não existe mais na Argentina. “O país teve uma desindustrialização muito acentuada nas últimas décadas. Os Kirchner fizeram alianças com os novos movimentos sociais de periferia, além dos sindicatos tradicionais. É uma coalização mais instável, mas que funcionou razoavelmente bem para eles nos anos do boom global de commodities. Eles implementaram políticas sociais voltadas para esses grupos e cuja gestão foi com frequência terceirizada para esses movimentos e organizações”, explica.
A influência do peronismo e desse imaginário estatista é comprovada pelos dados. De acordo com levantamento de 2018 do Instituto Ipsos, 86% dos argentinos concordam que o governo deveria controlar os preços de alimentos e serviços básicos. Além disso, desde 1999 o povo argentino passou a preferir a predominância de empresas estatais à empresas privadas. “A sociedade argentina é historicamente muito dividida e polarizada. Desde os anos 1940 entre peronistas e algum outro grupo. Às vezes uma visão mais centrista, como a União Cívica Radical de Alfonsín e o PRO de Macri, outras vezes uma alternativa autoritária, como nas ditaduras militares dos anos 1950-80”, afirma Santoro.
O pai dos pobres e la madre de los descamisados
A mentalidade peronista não é tão estranhas para o brasileiro, já que ela é bastante semelhante ao getulismo - ideário fruto das ideias de Getúlio Vargas, que governou o Brasil entre 1930 e 1945 e de 1951 até a sua morte em 1954. A começar pelo fato de o ditador ter utilizado o Departamento de Imprensa e Propaganda para cultivar junto à população sua imagem como “pai dos pobres”. No país vizinho sob o peronismo, os argentinos enxergam Eva Perón, a “Evita”, como a “madre de los descamisados”.
A segunda esposa de Perón, aliás, é considerada elemento indissociável do peronismo. A fundação que leva seu nome construiu escolas, hospitais, orfanatos. A ex-atriz de passado nebuloso atendia os pobres em um escritório e lhes dava presentes: tudo custeado pelos pagadores de impostos argentinos.
O culto à personalidade de Evita também estava presente nessas instituições. Nos eventos esportivos, os prêmios levavam o nome de Evita e os estudantes vestiam uniformes que traziam o nome e rosto dela bordados, por exemplo. Evita foi fundamental no governo Perón ao dialogar com setores sindicais. A ela se atribui a frase “sem fanatismo não se consegue nada”.
Para o jornalista especializado em América Latina Lucas Berti, as semelhanças dos dois movimentos está relacionada ao contexto social dos países. “Getúlio e Perón/Evita são figuras re regimes populistas, nos quais o culto à personalidade se sobrepõe ao projeto de governo. Isso é algo típico da América Latina, onde há sociedades carentes e desiguais e onde a figura patriarcal de um líder carismático e apelativo, como Vargas e Perón, ganha força entre classes populares”.
Ele diz ainda que os dois ideais compartilhavam alguns princípios. “A ascensão deles se escorou no apoio popular, muito em face de um modelo nacionalista que tinha como objetivo ampliar os direitos da classe trabalhadora, regulamentar sindicatos e discursar contra oligarquias internacionais”, afirma.
Diferenças importantes
Mas as duas correntes têm diferenças importantes. “Ainda que ambos perseguissem a oposição, o governo Perón não foi uma ditadura institucional como a de Vargas. Perón, ainda que também articulasse com sindicatos e perseguisse opositores, fez um governo muito mais centrado na exaltação da justiça social. Ele foi eleito e teve um apelo emocional mais forte. Já Vargas não viveu o processo eleitoral entre 1930 a 1945. Ele foi nomeado para governar o país a partir de 1930 e, depois de reconstitucionalizar o país, em 1934, arregimentou o Estado Novo em 1937, um regime ditatorial de fato”, diz.
PT: a continuidade do varguismo
Santoro pontua que o PT nasceu de uma crítica forte ao sindicalismo da Era Vargas, mas aos poucos foi se aproximando e, mesmo em seu discurso oficial, passou a se apresentar como uma espécie de continuidade com o varguismo. “Não é o mesmo partido (como acontece com o PJ peronista) mas a linha política é parecida. A diferença é que não há no Brasil uma memória popular forte de Vargas, ao contrário do que ocorre com Perón na Argentina”, diz. “A mentalidade brasileira é mais voltada para a experiência do nacional-desenvolvimentismo do que para o varguismo”, opina.
Para o brasileiro Caio Duarte, que estuda medicina na Universidade de Buenos Aires, a memória de Perón na Argentina não se compara ao que os brasileiros têm em relação a Vargas. Ele conta suas impressões de quem vive no país há três anos e compara com a experiência do varguismo no Brasil: “Getúlio é uma sombra de um passado ditatorial que quase todo mundo já esqueceu ou ignora no Brasil. Aqui na Argentina o Peronismo ainda permanece e polariza a política e a sociedade”, diz.
“O argentino não admite que o governo mexa com sua aposentadoria ou com sua renda via imposto de renda, por exemplo, mas não vê problema se o governo cobrar 100% de imposto dos produtos importados. Nos três anos em que moro aqui, ainda não conheci um argentino que não ache que o Estado deva ser o provedor máximo dos confortos da sociedade”, conta.
Apreço pelo Estado
Os dados mostram que os brasileiros também têm muito apreço pela atuação do governo. De acordo com uma pesquisa mencionada no livro A Cabeça do Brasileiro, de Carlos Alberto Almeida, 54% dos brasileiros (na época em que o livro foi publicado, em 2007) concordam que o governo deve controlar os preços de todos os produtos vendidos no país, enquanto 16% “concordaram um pouco”.
Já uma pesquisa de 2018 realizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação mediu a opinião do brasileiro em relação ao papel ideal do Estado, indicando que a economia deve ser regulada mais pelo Estado do que pelo mercado. Os entrevistados disseram ainda que as principais empresas devem pertencer ao Estado, considerado o principal agente de redução de desigualdades e de provimento de serviços básicos.
O levantamento pediu para os entrevistados avaliarem, de 0 a 10, o grau de presença do Estado que considerasse ideal. Dessa forma, 42,7% dos entrevistados concordaram totalmente com a ideia segundo a qual "o Estado, mais do que o setor privado, deve ser o principal responsável por prover educação". Número semelhante foi obtido na mesma pergunta sobre saúde: 42,2%. Um terço dos brasileiros está totalmente de acordo quando se diz que o Estado, mais do que o setor privado, deve ser o principal responsável pelo bem-estar dos cidadãos, além de ter de ser o principal responsável por reduzir a desigualdade de renda. Por fim, quase 40% acreditam totalmente que o Estado deve ser o principal responsável por garantir as aposentadorias.