O jornal Folha de S. Paulo informou que o FBI americano teria tido reunião tensa com autoridades brasileiras, em que teria reafirmado que os EUA não extraditariam o jornalista Allan dos Santos. Teria sido dito que o comportamento do investigado estava amparado na liberdade de expressão, conforme o entendimento dos americanos.
Segundo a Folha, as autoridades brasileiras presentes – representantes da PF e do Ministério da Justiça, à época comandado por Flávio Dino – teriam mostrado ao representantes do FBI um vídeo legendado com falas de Allan dos Santos. Mas teria sido em vão: os americanos, para a irritação dessas autoridades, teriam respondido que eram “só palavras”.
Isso contrasta com a avaliação de que o investigado teria “elevado grau de periculosidade”, como disse o ministro Alexandre de Moraes na decisão de 2021 que determinou a prisão preventiva do jornalista, dando origem ao pedido de extradição.
Não é possível confirmar a autenticidade da reunião, porque o processo de extradição está em sigilo nos dois países, assim como o Inquérito das Milícias Digitais, que o originou. No entanto, o relato é plausível por coincidir com o comportamento usual dos Estados Unidos em matéria de extradição, já explicado em 2019 em manual do próprio Ministério da Justiça.
As falas de Allan dos Santos
Não há informações sobre qual seria o conteúdo do vídeo específico mostrado aos americanos. No entanto, a decisão de 2021 que originalmente determinou o pedido de extradição é de conhecimento público, inclusive com as publicações do jornalista citadas pelo ministro Alexandre de Moraes.
Numa das publicações, feita no primeiro semestre de 2020, conforme Moraes, Allan dos Santos teria publicado a respeito do então presidente Bolsonaro: “Se entendi bem, o que ele está dizendo é que não se pode proibir as pessoas de defenderem a intervenção [militar]. Se isso acontecer, aí é que precisamos mesmo de uma intervenção.” (Desde então, o jornalista tem negado repetidas vezes nas redes sociais que defendesse intervenção militar.)
Em 3 de maio de 2020, ao final de uma “manifestação antidemocrática”, Allan dos Santos teria, nas palavras de Moraes, publicado “uma foto mostrando o dedo médio em frente ao Supremo, com a seguinte legenda: ‘Acabando a manifestação, não podia deixar de dar minha opinião sobre quem rasga a Constituição’.”
A delegada Denisse Dias Rosas Ribeiro, da PF, ao representar pela prisão preventiva, relatou também que Allan dos Santos, em solo americano, estaria praticando “difusão de teorias conspiratórias voltadas a desacreditar [o] sistema eleitoral brasileiro”, mas não citou casos concretos.
A liberdade de expressão nos Estados Unidos
A diferença de tratamento de Allan dos Santos em cada país ilustra um contraste entre a concepção americana de liberdade de expressão – consolidada na jurisprudência por evolução gradual ao longo do século XX e considerada a mais protetiva do mundo – e a situação desse direito no Brasil, onde sempre foi tratado de forma caótica pelo Judiciário e hoje se vê ainda mais fragilizado em meio a um processo de recrudescimento da repressão política.
Nos Estados Unidos, há liberdade quase absoluta para proferir qualquer fala, ficando reservada a punição, em geral, para atos concretos. Até mesmo a defesa explícita de ideias nazistas, proibida em muitos países, é liberada, desde que fique restrita à fala.
O raciocínio é explicado pelo advogado e jornalista Glenn Greenwald, americano radicado no Brasil. Judeu e homossexual, ele próprio já atuou pro bono (isto é, sem cobrar remuneração) para defender, como advogado, o direito de neonazistas se expressarem.
Longe de ser movido por simpatia pessoal pelos neonazistas, ele explicou, em entrevista de 2018, seu raciocínio e o de muitos outros juristas americanos: o Estado e outros centros de poder sempre miram primeiro as figuras mais detestáveis, para convencerem a sociedade, pela emoção, a abrirem mão do princípio da liberdade de expressão. Uma vez que se abre mão desse princípio por alegações nebulosas e arbitrárias como “discurso de ódio”, não há mais freio para impedir que a mesma arbitrariedade seja estendida a outros grupos que desagradam aos poderosos, inclusive os que pretendem trazer mudanças benéficas para a sociedade.
A afirmação de Greenwald tem corroboração empírica no Brasil: o mesmo conceito de “discurso de ódio”, originalmente criado sob alegação de proteger minorias desprivilegiadas, vem sendo utilizado para cercear manifestações contra autoridades, como juízes e políticos.
Permissão de incitação
No Brasil, o ministro Alexandre de Moraes alegou que o perigo representado pela liberdade de Allan dos Santos estaria em contribuir “para a animosidade entre os Poderes da República e para o ambiente de polarização política que se verifica no Brasil, com verdadeiro incentivo para que as pessoas pratiquem crimes em razão das narrativas divulgadas”.
Em outras palavras, na visão do ministro, para merecer ação repressiva do Estado, não seria necessário nem mesmo incitar diretamente os ouvintes a praticarem crime. Bastaria propagar determinadas narrativas políticas, que, na visão dele, teriam potencial para levar alguns ouvintes indignados a, por conta própria, decidirem praticar crime.
A mesma lógica implícita já apareceu em outras decisões do ministro, como a que ordenou investigação criminal do aplicativo Telegram por veicular mensagem contrária a um projeto de lei, em 2023.
Em contraste, nos Estados Unidos, até a incitação direta a praticar crime é permitida; por exemplo, pedir uma revolução socialista. A exceção se dá no caso da chamada imminent lawless action: só é punível a incitação a praticar ato ilícito iminente (por exemplo, exortar os presentes, numa manifestação, a invadirem um prédio público).
Mesmo no caso de iminência, há um requisito adicional, conforme o entendimento da Suprema Corte americana: é necessário ainda que se considere suficientemente provável que os ouvintes ponham em prática o ato.
Nesta e em outras questões, a lógica que impera nos Estados Unidos é a mesma expressa por Glenn Greenwald: deve-se resguardar a máxima liberdade possível, porque qualquer concessão feita à repressão pode ser, no futuro, abusada por tiranos.
O diplomata Gustavo Maultasch, no livro “Contra toda censura”, enfatiza que é importante demonstrar um nexo causal muito direto entre uma fala e o possível dano que ela causaria, porque, do contrário, estaria instalado um “vale-tudo”: “quase qualquer ideia pode ser conectada com um mal futuro”.