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Pesquisadores da Universidade de Boston (EUA) têm enfrentado críticas por terem criado um tipo artificial de coronavírus. Eles inseriram uma proteína da superfície do vírus da variante Ômicron BA.1 no “corpo” do vírus da variante de Wuhan extraído de um paciente de Washington em 2020, no primeiro surto de Covid-19 no país.
Em um número pequeno de camundongos de laboratório, o híbrido aparentou ter alta letalidade, de até 80% — mas a amostra é pequena demais para afirmar que esta é a magnitude da letalidade nos roedores. Importante notar, no entanto, que enquanto a variante de Wuhan é mais letal nesses animais que o vírus híbrido, a variante Ômicron causava apenas uma doença leve, sem matar.
A proteína inserida é a proteína de espícula ou proteína S, que atua como uma chave abrindo uma fechadura para permitir a entrada do vírus nas células do organismo parasitado. Comparado ao vírus “puro” da variante Ômicron, o híbrido é muito mais eficiente ao se replicar: os camundongos produziam 30 vezes mais vírus ao serem infectados com o último.
Na seção de notícias da própria Universidade de Boston, o líder do laboratório que realizou o estudo, Ronald Corley, reclama de sensacionalismo na cobertura da pesquisa na imprensa, especialmente no jornal britânico Daily Mail. “Representaram mal o estudo e os seus objetivos completamente”, afirmou o cientista. Ele explica que a intenção era avaliar qual parte do vírus é mais responsável por adoecer o organismo infectado. Não parece ser a proteína de espícula, e esse seria o principal resultado.
Os resultados do estudo estão em um banco de artigos pré-prelo, que são aqueles que ainda não passaram pelo processo de revisão por pares, amplamente adotado como pré-requisito de publicação em revistas científicas. O artigo pré-prelo está disponível desde 14 de outubro.
Histórico controverso
Em maio de 2021 a pesquisa que potencialmente deixa vírus mais infecciosos em humanos, efeito chamado “ganho de função”, teve verbas cortadas pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês). Antes, entre 2014 e 2017, o governo Obama determinou uma moratória nesse tipo de pesquisa. Havia, no entanto, uma brecha: autoridades como Anthony Fauci e Francis Collins podiam abrir exceção para contemplados específicos com as verbas.
A Universidade de Boston nega que o estudo seja classificável como ganho de função, pois “não amplificou” a cepa de Washington, “nem a tornou mais perigosa”. Para Steven Salzberg, especialista em engenharia biomédica e articulista da revista Forbes, a negação da universidade não faz sentido, e ela quis mudar a definição de “ganho de função” ao mesmo tempo em que negava que a pesquisa o fez. Para ele, está claro que é ganho de função pois foi gerada uma linhagem mais letal e mais infecciosa que uma das linhagens mães. Não se sabe que efeito esse coronavírus híbrido teria em humanos. “Espero que nunca descubramos”, comentou Salzberg em sua coluna.
Para o virologista Valentin Bruttel, da Universidade de Würzburg na Alemanha, “qualquer grupo terrorista poderia copiar os protocolos” da pesquisa, que na opinião dele é inútil e perigosa por dar oportunidade de formação de uma recombinação de diferentes variantes que não aconteceria na natureza.
Os NIH disseram ao site The Hill que estão investigando se o estudo da Universidade de Boston se encaixa em ganho de função. Funcionários dos NIH disseram que não foram informados com antecedência da realização da pesquisa. A universidade, publicamente criticada pelo órgão, se defende dizendo que o protocolo passou por seus comitês de ética em pesquisa.
A postura dos NIH, entretanto, pode ser contraditória. Recentemente, o órgão, maior financiador de pesquisa nos Estados Unidos, anunciou uma renovação de verba para a ONG EcoHealth Alliance para investigar mais “patógenos emergentes”. A ONG foi nos últimos anos intermediária de verbas entre o governo americano e o Instituto de Virologia de Wuhan, que fez pesquisa de ganho de função e é um dos principais candidatos na hipótese da origem laboratorial do coronavírus pandêmico.