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Em 1996, quando terminou de escrever seu primeiro livro de ficção, a escritora britânica Joanne Kathleen Rowling optou por uma versão abreviada de sua assinatura, por acreditar que meninos dificilmente se interessariam por uma história escrita por uma mulher. Antes de chegar à Bloomsberg, as 296 páginas de estreia de J. K. Rowling — então com 37 anos, dependente de programas de bem-estar social no Reino Unido, abandonada pelo ex-marido português e com uma filha bebê nos braços — foram negadas por doze editoras.
Não seria necessário muito tempo para que o investimento se provasse uma das decisões mais lucrativas da história do mercado do entretenimento: 25 anos depois, o universo mágico de Harry Potter contabiliza mais de 450 milhões de cópias vendidas em 78 idiomas e oito filmes que somam 7,7 bilhões de dólares em bilheteria.
Não bastassem os parques temáticos, jogos, camisetas, canecas e toda sorte de badulaques que, estima-se, rendem 15 bilhões de dólares em orçamento à franquia Harry Potter (e, claro, à sua criadora), a saga do menino bruxo protagonizou transformações culturais e políticas: em 2007, Rowling gerou polêmica ao revelar que o personagem Alvo Dumbledore - o diretor da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts - é gay, característica que, embora não seja explícita nos livros, ganha alguma evidência nos spin-offs para o cinema Animais Fantásticos e Onde Habitam.
Outra criação da autora foi alçada ao status de ícone feminista: assíduos das redes sociais devem se lembrar que, tanto durante a primeira campanha presidencial de Donald Trump quanto na de Jair Bolsonaro, era possível encontrar, em passeatas aqui e acolá, cartazes com os dizeres: “Quando Voldemort se candidata à presidência, nós precisamos de uma nação de Hermiones”. Pesquisas recentes mostram, inclusive, que leitores de Harry Potter tendem a adotar posturas mais progressistas com relação a temas como imigração e casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Nada disso, contudo, impediu que Rowling fosse sumariamente cancelada em janeiro deste ano, ao criticar o título de um texto no site Devex.com - produzido para um braço da Organização para as Nações Unidas (ONU), que abordava a falta de itens básicos de higiene em áreas pobres: “Criando um mundo mais igualitário no pós-coronavírus para pessoas que menstruam”. “Tenho certeza de que costumava haver uma palavra para isso”, ironizou Rowling, em referência à substituição do termo “mulher”.
Ao “cancelamento” de J. K. Rowling por “transfobia”, por uma geração cujos valores ela mesma ajudou a moldar, seguiu-se a usual batalha das redes acerca dos contextos nos quais é ou não justificável substituir os termos “homem” e “mulher”. Ocorre que o artigo da Devex.com não é o único exemplo recente de publicação que se utiliza de aspectos biológicos específicos para designar um grupo de pessoas. Na Escola de Medicina de Harvard, “pessoas que dão à luz” já aparece em painéis de congressos virtuais e, no Brasil, “pessoas com vagina” começa a dar as caras na imprensa.
A quem, afinal, serve o apagamento do termo “mulher”?
“Mulheres trans são mulheres”, escreveu o ator Daniel Radcliffe, intérprete de Harry Potter, em resposta à comunidade enfurecida de fãs. “Qualquer declaração contrária apaga a identidade e a dignidade das pessoas trans”, completou o astro, com menções às pessoas não-binárias ou “gênero-fluido”.
Rowling, entretanto, pontuou em sua fala que sempre foi simpática à causa trans. Sua oposição era, especificamente, à negação do sexo biológico como elemento real. "Se o sexo não é real, a realidade vivida das mulheres em todo o mundo é apagada. Conheço e amo pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo remove a capacidade de muitos discutirem significativamente suas vidas", justificou a escritora.
O que querem, então, os que advogam pela substituição da palavra “mulher”? “O objetivo é tentar evitar o sofrimento de homens e mulheres transsexuais ao se referir ao sexo biológico. Por exemplo, você não pode fazer publicidade de absorvente só para mulheres porque alguns homens trans ainda menstruam. Por isso, é preciso encontrar uma linguagem mais ampla, capaz de abranger todos os espectros”, explica a professora de filosofia da Universidade de Sussex, na Inglaterra, Kathleen Stock.
Fazer x ser
Para compreender as nuances do assunto, contudo, é necessário voltar algumas casas e relembrar a história das lutas LGBT. A escritora britânica Helen Pluckrose e o comentarista político James A. Lindsay, autores do livro “Cynical Theories: How Activist Scholarship Made Everything about Race, Gender, and Identity—and Why This Harms Everybody”, ainda sem tradução no Brasil, traçam uma linha do tempo que ajuda a entender como o movimento LBGT chegou às ditas reivindicações.
Segundo os pesquisadores, desde a Grécia antiga, onde práticas homossexuais eram aceitas, até a Cristandade, onde a relação entre pessoas do mesmo sexo passou a ser vista como pecado, a homossexualidade era algo que as pessoas faziam, mais do que quem elas eram. "A ideia de que alguém poderia ser homossexual só começou a ser reconhecida no século XIX", escrevem. Ainda assim, a condição era tratada como uma doença. Com o advento da sexologia — o estudo científico do sexo —, na segunda metade do século XX, nasceu a visão de que algumas pessoas simplesmente são gays ou lésbicas; e que caberia à população aceitar isto como uma realidade.
No mesmo século, as primeiras "ondas" do feminismo (solicitando o voto feminino, por exemplo) e a revolução sexual da década de 1960 trouxeram discussões importantes acerca dos chamados "papeis de gênero". A luta pela presença de mulheres em posições de liderança, com salários iguais aos dos homens, e a compreensão crescente acerca da natureza da homossexualidade — não mais associada a uma “desordem” psíquica — levou à distinção do que hoje se entende por sexo e gênero. “O sexo está para o gênero assim como ser homem ou mulher está para a masculinidade ou a feminilidade”, explicam Pluckrose e Lindsay. O gênero — os comportamentos associados ao masculino e ao feminino, bem como as consequências positivas e negativas dessa diferenciação — seria resultado de uma construção social.
Com o tempo, os avanços da biologia e das ciências humanas — quando estas áreas ainda caminhavam juntas — revelaram duas verdades divergentes, mas não excludentes sobre o tema: por força da genética e de outras condições biológicas (como a exposição hormonal intrauterina), para a maioria das pessoas, o sexo biológico corresponde, sim, ao gênero. Entretanto, nada disso invalida o debate sobre o poder da cultura: como Lindsay e Pluckrose pontuam, qualquer pesquisador sério - mesmo biólogos evolucionistas - admitem que a natureza humana é amalgamada ao ambiente na definição do que se entende por gênero e orientação sexual. Ou seja: meninas podem (e devem) crescer cientes de que são capazes de ser astronautas; meninos devem (certamente devem) ser habituados a lavar a louça.
A ciência reconhece a existência de pessoas com disforia de gênero (homens e mulheres que se identificam com o sexo oposto e, frequentemente, se submetem a procedimentos médicos para tornar seus corpos o mais parecidos possível com a forma com a qual se identificam). Mas para um número crescente de pesquisadores a desconexão com o sexo biológico não pode ser tratada como uma disfunção. E, embora tenha reiterado sistematicamente seu apoio a processos de transição realizados ao longo da vida adulta, a canadense Debra Soh, doutora em neurociência do sexo pela Universidade de York, abandonou a academia depois de ter escrito um artigo contra a transição precoce de crianças e adolescentes.
Em seu livro recém-lançado “The End of Gender” (“O Fim do Gênero”, sem tradução no Brasil), Soh explica as principais teorias por trás da transsexualidade e formas de sexualidade. A especialista afirma, entretanto, que nenhuma descoberta científica quantitativa — não baseada em entrevistas e na “autoidentificação” — dá a entender que o gênero e, muito menos, o sexo, sejam um “espectro” ou uma “galáxia”, como já descrito pela Revista da Associação Médica do Canadá. “Pessoas transgênero fazem a transição porque querem viver como o sexo oposto”, ela explica.
Se a questão é de ordem biológica e possui fartas explicações científicas, por que a cisma com a linguagem?
A teoria queer
Os conhecimentos estabelecidos sobre sexo, gênero e orientação sexual - amplamente baseados em pesquisas quantitativas, laboratoriais, com uso de aparelhos de ressonância magnética, medição hormonal, etc - sofreram seus primeiros abalos sísmicos na década de 1980 quando, segundo Pluckrose e Lindsay, surgiram os primeiros expoentes da chamada teoria queer.
“A teoria queer é dominada pela problematização dos discursos - a forma como as coisas são ditas -, pela desconstrução de categorias e um profundo ceticismo com relação à ciência”, explicam os autores. Figuras como Judith Butler e Gayle Rubin estão entre as fundadoras desta corrente de pensamento, cujas raízes, segundo alguns especialistas, remontam às ideias do filósofo francês Michel Foucault, o teórico do “biopoder” - o poder associado ao discurso científico, calcado na biologia.
"A teoria queer é essencialmente sobre a crença de que categorizar gênero e sexualidade (ou qualquer coisa) serve para legitimar um discurso - o discurso normativo - como forma de conhecimento e usá-lo para reprimir indivíduos", explicam os autores, considerando que queer se refere a qualquer orientação fora do espectro binário (homem/mulher; masculino/feminino; heterossexual/homossexual) que “desafie a ligação entre sexo, gênero e sexualidade".
Pluckrose e Lindsay prosseguem: “Há biólogos e psicólogos avançando no conhecimento sobre como o sexo se diferencia (ou não) biologicamente e psicologicamente na média, como a sexualidade funciona e porque algumas pessoas são gays, lésbicas, bissexuais ou transgênero - mas o trabalho deles não é bem-vindo para a teoria queer” (os estudos da doutora Soh, que reiteradamente se declara apoiadora das pautas pelos direitos civis e segurança da comunidade LGBT, está entre eles).
"Como os teóricos queer acreditam que sexo, gênero e sexualidade são construções sociais (...) estão menos preocupados com progresso material do que com os discursos dominantes que reforçam categorias de 'homem', 'mulher', 'gay', etc", apontam. A teoria queer é, portanto, a gênese desta tendência de se “apagar” termos convencionais para proteger grupos minoritários.
Apagar a mulher ajuda aos transsexuais e não-binários?
É verdade que existem pessoas que se identificam com o sexo oposto ao qual nasceram. E é verdade também que há os chamados interssexuais - pessoas que possuem um desenvolvimento sexual atípico mas que, em 99% dos casos, são distinguíveis entre machos e fêmeas e se identificam como homem e mulher. Não é verdade, entretanto, que a substituição da palavra “mulher” — bem mais comum que a da palavra “homem” — seja unanimemente aprovada pela comunidade LGBT como forma de garantir visibilidade e respeito a esta população.
“Esse ímpeto por uma reformulação linguística está diretamente ligado a uma lógica marxista que, ao enxergar o mundo enquanto luta de classes, propõe que ‘apagar as mulheres enquanto classe' abre caminho para que elas deixem de ser oprimidas”, diz a estudante de psicologia Ágata Cahill, que é transsexual. A entrevistada credita ao historiador Rictor Norton a análise política desta proposta de desconstrução.
“Engajando-se na dialética da revolução, o construcionista social privilegia 'o homossexual moderno' em detrimento do mero ‘homossexual’, com a esperança de transformar o homossexual comum num homossexual politizado, cuja ‘consciência de classe’ — em vez de mera ‘autoconscientização’ — permitir-lhe-á questionar radicalmente tais conceitos como gênero e heterossexualidade normativa”.
“A meta é lutar na guerra de classes de forma que os “homossexuais” (e de fato ‘homens’ e ‘mulheres’) desapareçam como classe e portanto não possam mais constituir um objeto da opressão. A estratégia é abalar a homofobia pela desconstrução da noção de uma homofobia ‘real’ e estável”, descreve Norton.
Para Ágata, quando um militante advoga pelo uso exclusivo de “pessoas com vagina” e “pessoas com pênis”, ainda que não tenha se dado conta, não está compartilhando o raciocínio de um grupo de pessoas meramente altruístas e engajadas com direitos humanos, mas o de acadêmicos engajados com movimentos políticos específicos.
“São filhos diretos dos teóricos queer do fim do século XX, que estavam menos preocupados em realmente entender a homossexualidade, e mais em aplicar nela uma retórica marxista que servisse de estratégia para “combater a opressão gay” — e, com sorte, ‘desestabilizar’ a cultura liberal ocidental, que muitos deles acreditam ser a razão da revolução comunista não ter dado as caras por aqui ainda.
Àqueles que julgam ser esta apenas outra teoria da conspiração, desafio a avaliar quantos não-binários e auto-denominados queers por aí não se identificam enquanto marxistas. Transexuais existem de todos os tipos, em todos os lugares, e por todo o espectro político. Queers são decididamente de esquerda, e trabalham tendo em mente não meramente a segurança e bem-estar de pessoas trans, mas a concretização de sua tão almejada ‘revolução’”, defende Ágata.
Não por acaso, explica a entrevistada, o termo “transsexuais” (ou seja, pessoas que não se identificam com seu sexo) foi paulatinamente substituído por “transgênero”. “Um termo guarda-chuva para qualquer um cuja ‘identidade de gênero’ não se alinhe com aquela ‘imposta’ ao nascer’. E como 'gênero' pode significar e representar qualquer coisa, inclusive nada, vimos uma crescente de pessoas que não são disfóricas, e nem transicionam, se declarando 'trans' e dominando o debate público a respeito. O 'apagamento das mulheres' que você menciona é, acima de tudo, um apagamento do sexo, que afeta diretamente transexuais também”, avalia.
Matheus S., um homem transsexual contatado pela Gazeta do Povo, explica, em um texto de sua página do Facebook (aqui reproduzido com autorização), que a pauta da menstruação, por exemplo, não é, de fato, uma pauta transsexual.
“Sejam eles cis ou trans, homens não menstruam. Homens trans são pessoas do sexo biológico feminino que sofrem com disforia de gênero, portanto precisam, querem e vão passar por um processo de transição, o que significa que passam por tratamento hormonal que elimina a menstruação, na maioria esmagadora dos casos em um curtíssimo prazo, esse que vos escreve se livrou desta coisa, que é um dos maiores gatilhos para crises disfóricas, no primeiro mês de hormonização há anos”.
“Nós não queremos ser lembrados quando se fala deste assunto, nós odiamos passar por isso, pensar nisso, ser lembrados de que isso um dia já aconteceu, que possa vir a acontecer e principalmente, ficar falando sobre isso”, escreve o autor.
“A existência de pessoas que não se enquadram em um sexo é apontada como forma de ofuscar o fato de que uma proporção muito maior de Homo sapiens são machos ou fêmeas biológicos, e que suas expressões de gênero são majoritariamente bimodais por natureza, além de intimamente correlacionadas com o sexo”.
Apagar a mulher ajuda… as mulheres?
Falar em “pessoas que menstruam”, na prática, tem quase nenhum efeito na proteção dos direitos civis e do bem-estar geral da população trans ou interssexual. Até mesmo os ditos “não-binários” parecem se beneficiar pouco das proposições. Resta entender se a abolição da palavra “mulher” é, afinal, benéfica para a vasta maioria do público ao qual o termo se refere.
“O objetivo de abolir a palavra ‘mulher’ é também apagar todos os vestígios de direitos baseados no sexo, tanto na lei como nas políticas públicas. Não é apenas uma questão semântica; é uma manobra política estratégica. Ao desconectar mulheres e meninas das palavras usadas para nos definir, a mercantilização de nossos corpos e o apagamento de nossos direitos se tornam mais eficientes”, defende a pesquisadora dominicana Raquel Rosário Sanchez, da Universidade de Bristol.
“Sem um sujeito identificável, não podemos atingir nossos objetivos. Se não podemos definir as mulheres, como podemos lutar para proteger seus direitos? Essa tendência de adotar a linguagem de ‘pessoas que dão à luz’ e ‘pessoas com vagina’ está na moda e faz com que as pessoas que têm o privilégio de não passar pela opressão sexual se sintam progressistas e defendendo os direitos humanos”.
“Mas como isso beneficia a menor estuprada pelo padrasto, ou a jovem traficada para a prostituição, ou a mulher morrendo de frio dentro de uma cabana porque está menstruada, perder as palavras que as definem como gente? Como ser reduzida a uma parte do corpo, e não tratada como um ser humano completo, pode ajudar essas pessoas? O apagamento da palavra ‘mulher’ representa um jogo linguístico para as classes altas, à custa das mulheres e meninas marginalizadas”, expõe a pesquisadora, que se declara feminista.
Para Rosário Sanchez, a inegável violência sofrida pela comunidade transexual e transgênero é perpetrada não pela linguagem que as mulheres usam para se definirem, mas, majoritariamente, por homens violentos. “A violência contra as pessoas trans é uma realidade que deve ser combatida, mas como todas as formas de violência, essa realidade tem perpetradores que são predominantemente homens, e não a semântica ou a linguagem”.
Segundo dados do 13º Anuário de Segurança Pública, a cada dez estupros ocorridos no Brasil, oito são de meninas. Em tempos em que é preciso destacar o óbvio; a filósofa Kathleen Stock traz um exemplo ilustrativo: “nós separamos os banheiros masculinos e femininos não porque todos os homens sejam abusadores, mas porque alguns são, e todas as mulheres merecem ser protegidas destes, e têm o direito de ficar à vontade”, explica.
“No mundo real, eu jamais apontaria para uma pessoa trans e diria ‘você não é um homem’ ou ‘você é não é uma mulher’. Mas essas categorias precisam ser compreendidas e trabalhadas de modo abrangente, deixando as distinções para o aspecto pessoal. A maioria das pessoas que eu conheço não se incomoda em tratar transsexuais ou ‘não-binários’ da maneira como eles preferirem”, destaca.
Stock ressalta também o caráter elitista destas propostas.
“O argumento de que as ‘mulheres cisgênero e heterossexuais não deviam se importar com isso’ é feito por pessoas privilegiadas. No Reino Unido, ‘pessoas com vagina’, ‘menstruadoras’, ou o que quer que seja, são expressões mal-entendidas por imigrantes e pessoas que não falam inglês fluentemente. Quando essas pessoas vão ao médico, quando leem um texto sobre higiene íntima ou saúde, elas precisam saber que é feito para elas - e todo mundo conhece a palavra ‘mulher’”.
“É irritante que pessoas que falam inglês muito bem, e provavelmente têm escolas e planos de saúde particulares, dizem que os outros deveriam substituir expressões universais por outras bastante complicadas. Não é um movimento que vem do povo, das demandas reais das mulheres. Ele vem das universidades, das pessoas que querem dizer que os outros são maus e deviam falar diferente, sem que isso tenha qualquer consequência prática na vida delas”, diz Stock.
"Pessoas que procriam"
Muito tempo antes das primeiras aparições do feminismo e do lançamento de Harry Potter, mulheres já foram vistas como “pessoas que procriam”. Os afoitos millennials da era #MeToo — que clama por respeito à liberdade e à dignidade das mulheres — são jovens demais para se lembrar que atributos biológicos eram utilizados para tratar as escravas vindas da África para a América, muitas alocadas, literalmente, em “fazendas de reprodução”.
De acordo com o historiador inglês Tom Holland, na Roma pré-cristã, quando a dinâmica das relações sexuais era, literalmente, entre os que detinham o poder e os que não (ou seja, os cidadãos romanos livres do sexo masculino e seus subordinados), as mulheres, muitas vezes, eram nada mais do que “pessoas com vagina”.
“Um homem romano tinha o direito de usar sexualmente qualquer um que fosse subordinado a ele: escravos, inferiores sociais. Ele poderia simplesmente usar suas bocas, seus vários orifícios, como receptáculos para seu excesso de esperma. Os romanos usavam a mesma palavra “mayo” para urina e ejaculação”, descreve Holland.
Foi, precisamente, a definição da dignidade intrínseca da mulher, conferida ao longo da era cristã e, posteriormente, com as boas bandeiras do feminismo, o que legou à geração #MeToo a consciência de que o corpo feminino não foi feito para satisfazer o homem e não deve, em hipótese alguma, ser violado.
“O mínimo que se pode dizer desta nova ‘nomenclatura’ é que desumanizante”, finaliza Stock.
Chega a ser irônico, portanto, que o intérprete de Harry Potter, em sua acusação à autora progressista, tenha dito que a história do bruxinho fala sobre “ideias dogmáticas de pureza” que “levam à opressão de grupos vulneráveis”. Como se abolir palavras com profundo significado histórico em nome de um ideal utópico de igualdade não levasse, no fim das contas, a apagar toda uma população que, ainda que não seja minoritária, em muitos aspectos, permanece vulnerável. Mas, a elas, o “lugar de fala” é cancelado.
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