Há algo de podre nas universidades americanas e o professor Peter Boghossian, que lecionou filosofia, ética e pensamento crítico na Portland State University, no estado americano de Oregon, por mais de uma década, foi um dos primeiros a comprovar.
Em 2018, ao lado do matemático James Lindsay e da escritora Helen Pluckrose, Boghossian protagonizou um escândalo conhecido como os “Estudos do Ressentimento”. Na ocasião, o trio submeteu uma série de artigos falsos a vários periódicos renomados focados em estudos de raça, gênero e identidade, com o objetivo de atestar o baixo nível destas publicações, regidas por clichês ideológicos mal disfarçados de método científico.
Como resultado, artigos defendendo que homens sejam treinados como cães como medida regular contra o assédio sexual e que a obesidade mórbida é um estilo de vida saudável foram publicados e celebrados, além de uma versão “feminista” de Mein Kampf. No ano anterior, o filósofo havia dado início ao experimento, emplacando em uma revista de sociologia de menor qualidade o argumento de que o órgão sexual masculino não é mais do que um conceito construído socialmente, e que seria indiretamente responsável pelo aquecimento global.
Três anos após a revelação dos artigos, Peter Boghossian está fora da Portland State University. Sua carta de demissão, publicada em primeira mão pela jornalista Bari Weiss, apresenta um resumo da perseguição à qual o filósofo foi submetido por conta de suas denúncias, sem qualquer amparo da universidade.
“Este não é o desfecho que eu queria. Mas me sinto moralmente obrigado a fazer essa escolha. Por dez anos, ensinei aos meus alunos a importância de viver de acordo com seus princípios. Um dos meus é defender nosso sistema de educação liberal daqueles que procuram destruí-lo. Quem eu seria se não o fizesse?”, escreve Boghossian que, na última semana, atendeu a Gazeta do Povo para falar sobre ativismo no ensino, o futuro das universidades e da polarização, insistindo que quer conversar com veículos de esquerda. Leia, abaixo, sua entrevista.
O senhor lecionou filosofia na Portland State University por mais de uma década. Quando reparou que havia algo de errado com a universidade?
Comecei a reparar que não podia mais dizer certas obviedades em 2012, mais ou menos. As pessoas ficavam extremamente irritadas com assuntos que, por muito tempo, foram considerados normais. Vale lembrar que eu ensino filosofia, e dentro da filosofia, ensino ética, pensamento crítico e pensamento científico. Discutir assuntos polêmicos é o centro da minha matéria. Por isso, talvez eu tenha visto o que vi um pouco mais cedo do que outros professores, mas logo reparei que a coisa toda girava ao redor de assuntos ligados à raça, gênero, orientação sexual, deficiência física, obesidade, imigração... Qualquer coisa remotamente ligada à identidade.
Notei também que apresentar o outro lado de qualquer argumento se tornou um tabu, e isso é um problema grave. Houve vezes em que fui xingado por explicar no que acreditam as pessoas que defendem o fechamento das fronteiras, e eu sequer estava defendendo uma política anti-imigração. Só que é isso o que você faz em filosofia: analisa dois argumentos contrastantes, encontra os pontos fracos e fortes e forma sua opinião.
Casos assim explodiram no mundo anglófono mas, no começo, eu não percebi que o problema estava dentro da universidade. Ouvia casos, mas achava que era coisa de um bando de gente com problemas mentais. Não sabia que o problema era sistemático.
O senhor pode dar mais exemplos de casos que o levaram a concluir que o problema é sistemático, antes do experimento com os artigos falsos?
São tantos que eu nem sei por onde começar. Havia alunos que se levantavam e iam embora quando eu dizia que há grandes diferenças físicas entre homens e mulheres - ou quando eu levava psicólogos evolucionistas, biólogos e pesquisadores que diziam isso. Uma vez eu perguntei “por que não há mulheres no time masculino de futebol americano?” e alguém no fundo da sala começou a gritar comigo.
Mais um caso: eu costumava dar uma disciplina bastante popular sobre ateísmo e certa vez, enquanto fazia críticas ao islã radical - não ao islamismo como um todo, mas à sua versão radical -, um aluno me acusou de racismo. Eu lhe disse que o islã não é uma raça. Eles retrucaram: “como assim?”. Eu gaguejei. Expliquei: você não pode se converter a uma raça. Eu não posso me cansar de ser caucasiano e virar asiático, como posso deixar de ser ateu e virar cristão. Ele mandou eu me f*, saiu da sala e continuou a me chamar de racista. Uma suástica apareceu no banheiro com meu nome escrito embaixo, para você ter ideia.
O que mudou desde a publicação dos “Estudos do Ressentimento”? Mais pessoas acreditaram no senhor?
É uma ótima pergunta. Quando eu comecei a dizer “há um problema com essas disciplinas”, as pessoas disseram que eu estava louco. Então, eu publiquei o artigo falso do “pênis conceitual”, e continuaram a dizer “esse cara está doido, não há problema nenhum”. Pouco antes da série de artigos falsos, os “estudos do ressentimento”, meus colegas insistiam que a ideologização do ensino atingia “um número muito pequeno de pessoas em um número muito pequeno de departamentos”.
Depois dos estudos, passaram a admitir que atingia “um número razoável de pessoas”, mas “em um pequeno número de faculdades”. Mais tarde, “muita gente em um pequeno número de faculdades”, até chegar em “são quase todas as pessoas nas universidades mas ninguém vai descobrir”. Custou um bocado para outras pessoas chegarem à conclusão de que “caramba, está infectando o sistema todo!”. E olha só onde estamos hoje.
O senhor não recebeu nenhum tipo de apoio neste tempo?
Recebi muito. E aqui há uma coisa interessante: as pessoas que me apoiaram estão no topo de suas carreiras, entre os pesquisadores mais respeitados em suas áreas. Dan Dennett (filósofo cognitivista) me apoiou, Alan Sokal (matemático da University College of London) me apoiou, Michael Shermer (filósofo diretor da Skeptic Magazine), Jonathan Haidt (psicólogo cognitivo da New York University), Richard Dawkins (biólogo evolutivo), Jordan Peterson (psicólogo), todo mundo que me apoiou está muito bem estabelecido no topo do topo da intelectualidade. Todo o resto estava apavorado. Todos temiam perder seus empregos, serem ostracizados ou investigados, como aconteceu com um dos meus colegas que me apoiou. Isso é o que acontece quando você cria uma cultura de medo.
O que te levou a pedir demissão? Quando a situação ficou insustentável?
Já estava insustentável há algum tempo, na verdade. Eu tentei me encontrar com o presidente da universidade - pedia cinco minutos e ele recusava dizendo estar ocupado. Finalmente, dei um jeito de encontrar o reitor muito rapidamente. Disse a ele que em 2020 a Portland State University foi eleita pela Foundation for Individual Rights and Education (FIRE) como uma das dez piores faculdades dos Estados Unidos no quesito liberdade de expressão. E ele me respondeu: é ótimo estar nessa lista. Aquilo me deixou estarrecido! Estarrecido porque a censura não era um acidente, um defeito... Era um projeto. Era intencional. Eu soube naquele momento que eu não aguentaria ficar.
Além disso, houveram as investigações. Eu nunca usei o nome da Portland State University durante os estudos, por exemplo, porque não estava fazendo aquilo como professor. Evitava usar no Twitter e em outras redes. Quando me investigaram por supostamente fazer “pesquisas com seres humanos sem autorização”, tentaram me incriminar porque o link na minha biografia no Twitter levava à página do meu livro em cuja orelha está escrito que eu era professor da Portland State. Sem falar nas insinuações de que eu agredia minha mulher e filhos. Um absurdo completo.
Como nós chegamos a este ponto? Pergunto porque, para muita gente, a impressão é a de que há uma gigante conspiração da esquerda progressista. Mas conspirações não costumam parar em pé.
É uma pergunta complicada. O livro “Teorias cínicas – Como a academia e o ativismo tornam raça, gênero e identidade o centro de tudo – e por que isso prejudica todos” (lançado no Brasil pela Editora Avis Rara), de James Lindsay e Helen Pluckrose tem boas explicações sobre como a obsessão pelo poder migrou das teorias pós-modernas de Foucault, Derrida e companhia para o pós-modernismo aplicado nas disciplinas que tocam em questões de identidade e suas ramificações.
(leia, aqui, a reportagem da Gazeta do Povo sobre o livro)
Outro fator que nos trouxe a esta situação é o que eu chamo de “lavagem de ideias”, que é a forma como essas pessoas são credenciadas pelas universidades e fazem com que suas ideias passem adiante. Eles buscam e conseguem cadeiras vitalícias.
Assumindo a reta intenção dos que lutam por justiça para mulheres, LGBT, negros, povos indígenas etc, quais das suas reinvindicações são justas? O senhor pode dar um exemplo?
Se me permite, gostaria de dizer que essa é a pergunta errada para tratar do assunto. A pergunta correta a ser feita é: o que é verdade? Se você conseguir descobrir o que é verdade, só aí vai descobrir o que é justo. A bússola de uma universidade precisa ser a verdade.
Falando só dos Estados Unidos, por exemplo, precisamos saber quantas pessoas negras são paradas pela polícia, quantos homens negros são mortos. As pessoas podem ficar irritadas ou ofendidas com o dado, mas precisamos dele. E só aí podemos pensar em políticas públicas que possam funcionar. Se não pudermos apresentar outros lados, qualquer política pública será arbitrária. E é o que o nosso sistema universitário está fazendo.
Deixe-me te dar outro exemplo: o presidente da Portland State University disse que a mais alta prioridade - a mais alta! - da universidade é alcançar a justiça racial. A mais alta! Não importa se a universidade está mergulhada em uma crise orçamentária, não importa se fazemos ou não boas pesquisas, não importa se ensinamos com excelência: só importa a justiça racial. E aqui está a pergunta sobre a qual eu adoraria ter uma conversa franca com a esquerda: a prioridade mais alta de uma instituição pública deve ser a justiça racial?
Há quem diga que não deveríamos criticar os excessos destes movimentos sociais, por representarem pessoas vulneráveis.
Isso não faz o menor sentido porque nos Estados Unidos, por exemplo, os movimentos pelos direitos civis, pelo casamento homossexual e outras pautas progressistas foram adiante precisamente porque foram criticados e os argumentos contra eles não se sustentaram.
É graças ao debate que hoje temos condições de igualdade para mulheres, para negros e outras minorias. Não permitir que as pessoas façam críticas não faz com que as ideias vão embora: faz com que a razão não vença no fim do dia.
O senhor nunca conseguiu dialogar com a esquerda?
Não, e eu tentei muito. A direita fala comigo o tempo todo. Eu realmente gostaria de ter essa conversa. Aliás, eu gostaria de tomar este espaço no seu artigo, por favor, para dizer que se houver qualquer veículo de comunicação mais à esquerda que queira falar comigo, eu ficaria mais do que feliz em atendê-los. Não é um debate, não é um desafio, não vai ter um “te peguei”, nenhum truque. Eu inclusive adianto o tópico, novamente: a maior prioridade de uma instituição pública deve ser a justiça racial?
É lamentável dizer, por exemplo, que mulheres podem não gostar de serem chamadas de “corpos com útero”, ou “corpos com vagina”, como fez a revista The Lancet, seja visto como coisa da extrema-direita ou de um movimento radical. Por que isso acontece?
Steven Pinker (psicólogo evolucionista da Universidade de Harvard) batizou esse fenômeno de “pólo esquerdo”. Se você está no pólo mais extremo à esquerda de um globo, todo o resto está na extrema-direita, é nazista e da alt-right.
E é assim que eles jogam: eu publico minha carta de demissão, ninguém na esquerda me dá bola, a direita me chama pra tudo que é programa. Eu peço espaço à esquerda, peço que me entrevistem, digo “vamos conversar” e ninguém me dá bola. E aí eles dizem: o Boghossian só vai nos programas de direita, portanto é nazista. O mais engraçado é que eu sempre fui progressista. Nunca votei em um republicano na vida!
Como construir um ambiente de diversidade em sala de aula?
Olha, eu dou um curso sobre ateísmo. Eu não acredito em Deus. E, no meu curso, eu sempre trazia um professor cristão conservador que é chefe do departamento de filosofia em uma universidade perto daqui. Eu não falo nada, ele dá uma palestra de 15 minutos e depois responde perguntas por uma hora.
Fiz o mesmo com terraplanistas, com críticos dos ativistas do clima, com marxistas e com ufólogos. Faço o possível para trazer os melhores representantes que advogam por coisas que eu não acredito, pessoas que não concordam comigo. E eu faço isso justamente porque não considero questão de direita ou esquerda, de conservadores ou progressistas: é uma questão educacional. Eu quero dar aos estudantes a oportunidade de ouvir os meus argumentos e depois alguém que discorda, e eles podem decidir por si mesmos. Isso é diversidade.
O senhor acredita que a cultura do cancelamento tende piorar? As conversas vão ficar mais impossíveis?
Não tenho dúvidas de que vai melhorar, mas antes disso, vai piorar bastante. Na verdade, fica pior a cada mês. Meu pai era engenheiro civil e, certa vez, enquanto trabalhava na preservação de um mangue, me ensinou que a melhor maneira de tirar a sujeira é impedi-la de entrar. A ideologia woke está piorando porque nossas instituições continuam a formar pessoas nessa bobagem, nesse sistema de crenças doentio e perigoso. A menos que impeçamos, só vai piorar.
Por que o senhor diz que vai melhorar, então?
Porque nós criamos uma cultura na qual a maioria das pessoas finge acreditar em coisas nas quais elas simplesmente não acreditam. Isso não é sustentável. Ninguém aguenta viver assim.
Imagine-se vivendo em uma sociedade teocrática na qual você precisa ouvir e fazer preces o dia inteiro, fingindo que acredita naquele deus, como se fosse uma religião. Nós criamos uma situação muito parecida, ao menos nos Estados Unidos. Antes da pandemia, as pessoas me paravam na rua e me agradeciam sussurrando. Sussurrando! Isso é loucura!
Como construir uma alternativa, um ambiente de diálogo? Só reclamar não parece ajudar muito.
É verdade. Foi por isso que eu escrevi o livro “How to have impossible conversations” (“Como ter conversas impossíveis”, ainda sem tradução para o português), com o James Lindsay. Não basta criticar a ideologia woke, precisamos apontar um caminho. Nós precisamos ensinar as pessoas a falar umas com as outras de novo, a conversar de novo. Para isso, você precisa ser honesto consigo mesmo, precisa ser corajoso e direto, além de honesto com os outros.
Quero ressaltar também a regra que sempre ensinei para todos os meus alunos: critique as ideias que quiser, mas nunca critique propriedades que as pessoas não podem mudar. Assumo que você seja um “corpo com útero”, certo?
Eu sou!
Então. Criticar seu útero, sua cor de cabelo, criticar qualquer uma dessas coisas não é aceitável. Mas criticar suas ideias é sempre importante. E isso não parece ser muito difícil. Só que este é o problema de toda essa obsessão pela identidade: quando você considera suas ideias como inerentes à sua identidade, qualquer coisa vira uma crítica pessoal.
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