É no domingo (9). Petra Costa e a família já preparam a pipoca, assim como os incautos que acreditam na narrativa de Democracia em Vertigem. Há analistas e profetas dizendo que o Oscar já é nosso – ou, no caso, deles. É possível até que o caminhão dos bombeiros já esteja sendo abastecido para aquele tradicional desfile em carro aberto ao som de Imagine.
Mas espere! Porque há um documentário que pode acabar com a festa na mansão dos Andrade-Gutierrez. Trata-se de Indústria Americana, de Steven Bognar e Julia Reichert, que tem por trás a produtora de Michelle e Barack Obama, a Higher Ground. O filme conta a história da “tomada”, por chineses, de uma antiga fábrica da GM em Ohio, fechada durante a crise de 2008.
Com aquela pompa tão característica dos norte-americanos, os chineses da Fuyao são recebidos em Ohio como uma esperança de emprego e prosperidade. Aos poucos, contudo, as diferenças culturais (eufemismo para “diferenças ideológicas e espirituais”) se tornam evidentes e os chineses percebem que, se pretendem ter lucro, precisam fazer algo urgente. O problema é que eles logo encontrarão um obstáculo – e não me refiro ao liberalismo norte-americano.
Sutileza e tensão
O filme não tem grandiosas imagens feitas com drones nem aquela narração monótona de quem prega para uma igreja política esvaziada. Pelo contrário, Indústria Americana se atém a entrevistas com operários e altos funcionários para mostrar ao espectador que a guerra comercial entre Estados Unidos e China vai muito além das tarifas alfandegárias. Com isso, os diretores conseguem habilmente criar um clima de tensão que culmina com uma constatação um tanto quanto assustadora: a tradição liberal do Ocidente está sendo esmagada pelo pragmatismo comunista chinês.
Sim, porque o documentário mostra os funcionários chineses da Fuyao, tanto nos Estados Unidos quanto na China, como seres desprovidos de alma, obcecados pelo trabalho, inaceitavelmente submissos aos superiores hierárquicos e com um objetivo de vida que nos causa estranhamento pela estreiteza: trabalho, trabalho, trabalho.
Isso fica ainda mais claro quando, em certo momento do filme, alguns funcionários norte-americanos são enviados à China e lá se deparam com uma mão de obra obediente, focada, orgulhosa de sua condição de semiescravos e que tratam a vida com um aparente desprezo, ignorando as mais básicas noções de segurança. Tudo em nome do bem comum comunista – que (e desconfio que o documentário evidencie isso sem querer) é bem diferente do bem comum no entendimento ocidental.
À medida que o filme avança, as diferenças entre os dois modos de ver a vida ganham contornos de conflito. De um lado, os chineses reclamam da preguiça e até dos “dedos gordos” dos norte-americanos. De outro, os norte-americanos reclamam da desumanização das relações de trabalho na fábrica. Alguns recorrem à nostalgia dos tempos áureos da indústria automobilística, que chegava a pagar US$29/hora (enquanto os chineses pagam US$12/hora). Outros se resignam. Há ainda quem veja com admiração e respeito a determinação dos chineses.
Solução heterodoxa
E é a partir desse conflito que o documentário propõe uma solução capaz de apaziguar as conturbadas relações sino-americanas. Mas, se você pensa que os produtores sugerirão o capitalismo liberal e ético como forma de derrotar ou ao menos acalmar o furor destrutivo do "comunismo de mercado" ou "capitalismo de Estado" chinês, engana-se.
Em Indústria Americana o único caminho para reverter a decadência do setor automotivo (e da sociedade norte-americana como um todo) passa necessariamente pelo sindicalismo.
Você leu certo: sindicalismo. O mesmo sindicalismo que destruiu a indústria automobilística dos Estados Unidos com garantias e benefícios insustentáveis. O mesmo sindicalismo que corrompeu as relações de trabalho, que destruiu o conceito de capitalismo ético e que em muitos pontos flertou com o socialismo. O mesmo sindicalismo que, no Brasil, deu origem a uma casta privilegiada que se dizia dedicada à garantia dos direitos dos trabalhadores, mas que na realidade (a eterna inimiga de qualquer forma de socialismo) se viu envolvida em escândalos de corrupção.
Ao combater o comunismo hardcore da China, com sua devoção quase que incompreensível ao trabalho e à Pátria, fazendo uso do comunismo light que atende pelo nome de sindicalismo, o filme mostra que seus idealizadores foram incapazes de perceber no capitalismo ético, liberal e de tradição judaico-cristã, que valoriza a dignidade humana e cria espaços para a contemplação e o ócio necessários à saciedade da alma, a única solução para a desmedida e desumana ambição chinesa.
Por fim, os comunocapitalistas chineses da Fuyao são retratados como grandes vilões que, ironicamente, em certo momento exortam os funcionários da indústria a tornarem os Estados Unidos grandes de novo (numa clara referência ao slogan de campanha do presidente Donald Trump). Os norte-americanos, por sua vez, são retratados como vítimas bovinas que, por medo, rejeitam o sindicalismo salvador e que, por isso, estão destinados, num futuro próximo, à mesma semiescravidão de seus colegas chineses.
Isso se os robôs não lhes roubarem o emprego e o que restou de sua dignidade, claro.
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