Cena da série documental “Larry Charles e o Perigoso Mundo da Comédia”, da Netflix (Foto: Divulgação)| Foto:

Além de ser um dos comediantes mais iconoclastas da atualidade, Larry Charles ainda cumpre jornadas como ator, roteirista e diretor. Em sua carreira, destacam-se obras do mais puro e ácido humor: junto com Sascha Baron Cohen, dirigiu os anárquicos, ultrajantes e divertidos 'Borat' e 'O Ditador'; com Bob Dylan, fez uma inusitada sátira musical contra os poderosos; e junto com Jerry Seinfeld e Larry David escreveria aquela que é - nas palavras do português João Pereira Coutinho, as quais reforço com veemência - a “maior comédia televisiva de todos os tempos”: o sitcom Seinfeld.

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E foi com essa nada modesta bagagem que Charles resolveu sair em busca do que significa a comédia, o fazer rir, nos dias atuais. Mas não apenas isso: sua ideia era mostrar como humoristas, comediantes e artistas do riso vivem e sobrevivem ao redor do mundo. Como se isso já não fosse suficientemente interessante, ele foi em busca de lugares onde fazer humor é uma opção de risco, visitando países e entrevistando humoristas que vivem em situações extremas: nascia assim o documentário “O Perigoso Mundo da Comédia de Larry Charles”.

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Dividido em quatro partes, a série documental acompanha o comediante americano em sua peregrinação por países como Iraque, Nigéria, Afeganistão, Libéria e Arábia Saudita – países que não apenas possuem uma realidade social, política e cultural diversa da nossa, mas também passam ou passaram por conflitos traumáticos e brutais, que deixaram marcas profundas na vida das pessoas.

Ele entrevista comediantes famosos e desconhecidos artistas de rua; fala com soldados mutilados física ou psicologicamente e que se utilizam do humor para curar seus traumas; dialoga com mulheres que foram violentadas de maneiras inimagináveis, e que conseguiram resgatar sua humanidade com o poder do riso. Mas ouve ele também o outro lado – censores, torturadores, os monstros –, tentando compreender seus motivos e também, seus humores.

O título do documentário pode parecer exagerado, mas não é. Com uma pequena equipe de filmagem – composta por um cinegrafista, um técnico de som e dois produtores –, há momentos de tensão e violência iminente. Em uma cena, testemunhamos a van da equipe cercada ameaçadoramente por “seguranças”, que cobram um “extra” pela proteção dada. A equipe só consegue sair em liberdade após o entrevistado — uma celebridade do humor no país — pagar a turba.

Cada parte do documentário se concentra em temas amplos relacionados ao cômico, os quais Larry vai destrinchando aos poucos: Estados em guerra, seus soldados e vítimas, as minorias, e por fim, as questões de gênero.

O poder da risada

Na primeira parte ele foca em países onde as guerras fazem sua colheita mortal, a censura é ostensiva e a repressão se dá não apenas com palavras: nesses lugares, uma piada pode matar.

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Ouvir e ver homens e mulheres fazendo piadas com o terrorismo e a morte, ridicularizando a Al Qaeda ou o Exército Islâmico, é testemunhar o poder efêmero (por isso eterno) da arte.

Como complemento a este episódio impressionante, Larry vai mostrar no segundo capítulo, como combatentes (e seus oponentes) buscam no humor a superação de seus traumas, psicoses e dores. Mais do que isso, aqui o humor serve como uma chave para a descoberta de um novo sentido para a vida dessas pessoas. Ecoam aqui as palavras de Viktor Frankl:

“…o humor constitui uma arma da alma na luta por sua autopreservação.”

Descobrimos que as piadas mais pesadas e escatológicas podem carregar em si uma profunda caridade: a caridade da risada.

Armadilha

No terceiro episódio da série, seu foco se volta para o humor em relação às minorias e aos gêneros. Mas se nas duas primeiras partes do documentário ele consegue elevar a percepção que temos do humor, na segunda metade da obra, Larry cai numa armadilha perigosa.

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Ao abordar a relação das minorias – especialmente aquelas “grandes minorias” americanas, como negros, índios, imigrantes ilegais e esquisitões da alt-right –, ele dá voz a humoristas pertencentes a esses grupos sociais ou raciais.

De saída, podemos dizer que temos uma abordagem promissora quando ele entrevista algumas subcelebridades da alt-right, e eles contam como parte importante de seu tipo de humor – grosseiro, pejorativo e racista – tem inspiração no trabalho do próprio Larry Charles, principalmente no personagem interpretado por Baron Cohen, Borat. A ironia de um personagem criado por dois judeus ser a inspiração para uma turma imbuída de retórica antissemita é algo que só o humor judaico pode explicar!

Curiosamente, outra inspiração para a alt-right e seus trolls parece ser a série South Park – algo que somente o humor judaico poderia contemplar. Esses personagens controversos não fazem um humor politicamente incorreto; eles fazem paródias tosca, rasteiras, e ideológicas, feitas com intenção de ridicularizar determinados grupos sociais, desumanizando-os. Aqui Larry se sai muito bem; mesmo dando espaço e liberdade para esses comediantes, tentando compreender esses beócios, ele não deixa de confrontá-los, questionando suas posturas e ridicularizando-os.

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Porém, ao entrevistar os humoristas das “grandes minorias”, ele se deixa levar por uma atitude de tal modo subserviente ao discurso vitimista e pior ainda, a uma outro tipo de ideologia, mais sutil, mas ainda assim perniciosa.

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De início, ele faz um grande “mea culpa”, resgatando as vezes em que a comédia americana usou dessas minorias em esquetes, filmes e sitcoms, para seus propósitos humorísticos. A partir desse “mea-culpa", ele encampa um discurso que, não apenas podemos chamar de politicamente correto, mas que cai em uma ingênua submissão a uma visão reducionista dos limites do humor. Para ser justo com esses humoristas, eles se mostram capazes de fazer autoironia, transformando a sua etnia e a si mesmos em alvos de piadas divertidas; mas há no ar uma clara ideia de que isso só pode acontecer porque eles estão em seu “lugar de fala”. Como se isso não bastasse, ao falar de um tema em voga, a ideia da “apropriação cultural”, Larry compra o discurso e defende que sim, há que se evitar e denunciar o “instrumento ideológico” que o termo descreve.

Ora, o que Larry parece não perceber é que vivemos uma realidade política e cultural em que a expressão “politicamente correto” não mais explica o que acontece nas relações sociais –presenciamos hoje algo mais próximo de um “dogmatismo político”. A palavras de Andrew Doyle, colunista da revista britânica Spiked! , são certeiras em seu diagnóstico sobre nosso atual momento:

“A palavra "correção" denota bem, no sentido de precisão e polidez. Mas não há nada de "agradável" em impor penalidades criminais por se fazerem piadas ofensivas, ou por destruir carreiras com base em uma expressão equivocada. Esse tipo de resposta é essencialmente dogmático, na medida em que se baseia em princípios que não estão abertos a contestação.”

Se o comediante americano faz isso por se sentir de alguma forma responsável pela ascensão de figuras políticas como Donald Trump, eu diria que ele exagera no remédio.

Liberdade de expressão

Na quarta parte do documentário, apesar de manter sua posição progressista, Larry se sai melhor. Talvez isso aconteça por ele se afastar do ambiente extremamente liberal da cultura americana e mostrar a realidade de países em que praticamente não existe a liberdade individual, em que mulheres e homossexuais são tratados como cidadãos de segunda (ou terceira) classe, sofrendo muitas vezes com uma violência extrema, que chega a ser sancionada pelo governo e aceita pela própria sociedade.

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Em países onde o estupro de mulheres é uma epidemia, humoristas milionários fazem piadas com este tema sem o menor pudor, ao contrário, se sentem totalmente legitimados pelo próprio sucesso. Aqui podemos enxergar como essas piadas reforçam e legitimam a violência sexual.

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O grande mérito desta última parte é mostrar como conceitos e ideias como Liberdade, Individuo e Liberdade de Expressão não existem como valores universais, mas que eles são característicos de um tipo específico de sociedade – a nossa, felizmente (ou infelizmente para alguns celerados). Por isso, é necessário tomar cuidado para não idealizar esses conceitos, destacando-os de um contexto civilizacional concreto, pois não entender como as diversas realidades sociais, políticas e culturais podem fazer mau uso deles é, no mínimo, imprudente.

Obviamente, para nós, nascidos e criados sob uma cultura em que o humor tem uma tradição liberal, anárquica e iconoclasta – que começa sua peregrinação nas peças de Aristófanes (o grande avacalhador de sábios), passa pelas comédias Shakesperianas (com seus bobos da corte a tripudiar e desnudar as almas dos reis), ganha o mundo pop com Monty Python, ri da morte e do sexo com Woody Allen, e chega ao ápice existencial com Seinfeld –, falar de limites para o humor é algo que soa blasfemo. E temos que dar graças a Deus (ou ao Marx*) por isso!

Ao fim do documentário e das aventuras periclitantes de Larry Charles, compreendemos um pouco mais do valor (e do preço) de uma boa risada, e reencontramos o significado humano, demasiado humano do humor.

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*o Groucho, seu infiel!