Com a liberação do aborto até a 14ª semana de gestação, aprovada pelo senado argentino, o debate sobre a descriminação do aborto no Brasil ganhou novo impulso. Nas ruas da Argentina, milhares de mulheres saíram para comemorar a sua inclusão no grupo de países onde a prática é legalizada, sem máscaras e com aglomerações, desrespeitando os protocolos de segurança contra a Covid-19.
Excluindo-se os casos de gravidez em decorrência de estupro, casos onde há má formação do feto ou que põem em risco à vida da mãe, a prática do aborto no Brasil é crime, podendo levar a três anos de prisão para a mãe e 15 para quem oferece o procedimento. Mesmo assim, o aborto é facilitado graças a medicamentos abortivos encontrados com facilidade na internet.
Numa rápida busca no Facebook podem ser encontradas diversas páginas e grupos, alguns com mais de cinco mil integrantes, que oferecem misoprostol, comumente chamado de Cytotec, conhecido remédio que por suas propriedades abortivas tem a comercialização proibida pela Anvisa.
Embora as páginas utilizem códigos para disfarçar, "como dor de barriga" para se referir à gravidez e "vitamina" para se referir ao remédio abortivo, nos grupos tudo é feito abertamente.
As administradoras dos grupos utilizam perfis falsos — as pessoas que aparecem nas fotos dos perfis foram retiradas de modelos populares do Instagram —, controlam a venda dos abortivos e dão orientações de como tomá-los.
Os remédios são enviados via Sedex após o pagamento via transferência bancária. O nome das vendedoras permanece em sigilo, mas o nome do recebedor do pagamento é revelado.
O preço de cada comprimido varia de R$ 100 a 200, mas o custo total varia, pois dependendo da fase da gestação a quantidade de comprimidos que deve ser tomada é maior, de acordo com as vendedoras.
Desespero e piadas
O perfil das mulheres que buscam esse tipo de serviço é variado, mas a maioria se encontra desesperada. Muitos se aproveitam dessa fragilidade para aplicar golpes. Após o pagamento o vendedor bloqueia o número e, como a mulher não pode procurar a polícia, pois poderia ser presa, ficam impunes.
O negócio se tornou tão lucrativo que chegaram ao ponto de pagar comissão para quem trouxer mais mulheres para o grupo.
Nem a greve dos Correios, que ocorreu em setembro do ano passado, atrapalhou as entregas do grupo, que continua operando a todo o vapor.
Os novos abortos são comemorados pelas administradores e pelas integrantes do grupo. O clima é descontraído e até piadas são feitas com relação ao procedimento.
Venda pelo Whatsapp
A prática de venda de abortivos online não é novidade e é relatada pela ativista libertária e empresária Thaís Azevedo, de 36 anos, que em 2018 produziu um dossiê com diversas informações sobre esses grupos. Thaís passou três meses em um grupo de whatsapp chamado “Coletor menstrual”, cujo objetivo era a venda dessas drogas abortivas.
Thaís relata que ficou chocada com a facilidade com que elas realizavam o aborto e burlavam a lei. E, segundo ela, ninguém estava de fato interessado em ajudar as meninas que passavam por aquilo, apenas em vender os medicamentos. “Numa ocasião uma menina disse que não aguentava mais e que iria se matar. Acabou expulsa do grupo”, conta.
O dossiê produzido por Thaís com os nomes das líderes do grupo e dos laranjas que recebem o dinheiro foi entregue ao procurador Deltan Dallagnol, que encaminhou para promotores do Ministério Público Federal e Estadual. O caso foi parar nas mãos da delegada Luciana Bogea, da Divisão de Medicamentos da Delegacia do Consumidor (Decon).
“A minha denúncia não foi feita de modo anônimo pois eu quero ser uma testemunha para todos aqueles bebês que foram cruelmente assassinados em nome do egoísmo puro”, completa Thaís. Tentamos contato com o Decon por vários meios: telefone, whatsapp e e-mail. Depois de cerca de um mês tentando contato com a delegacia descobrimos que a delegada responsável pelo caso havia mudado. A substituta, a delegada Daniela Terra, também não respondeu às tentativas de contato. A reportagem apenas recebeu a informação que o comando do caso havia mudado novamente, ficando sob a responsabilidade do delegado André Luiz de Souza Neves. Portanto, até o momento desta publicação não obtivemos informações das investigações da Decon sobre a venda de abortivos online.
Riscos do procedimento
O Misoprostol é recomendado pela Organização Mundial de Saúde para a realização de abortos legais. No Brasil ele teve a sua comercialização proibida em 2005 devido a propriedades abortivas, mas ainda é utilizado nos casos nos quais o aborto é legal: estupro, gravidezes que põem a mãe em risco e anencefalia.
Fontes revelam que parte dessa medicação vendida online é desviada de hospitais onde seria utilizada para tratamento de problemas estomacais e para induzir parto, ou é produzida em laboratórios clandestinos fora do país e entra no Brasil pela fronteira.
“Em maternidade se usa muito esse medicamento. Os vendedores não são normalmente os profissionais de saúde, são pessoas que pegam esse medicamento de repasse e vendem”, revelou, acrescentando que há grande risco nesse procedimento e que pode levar à morte.
“Esses medicamentos, se utilizados de forma inapropriada, acabam causando contrações uterinas violentas, podendo levar à morte da pessoa. Pode acontecer do feto morrer e ficar um resíduo, causando uma necrose. A contração às vezes é tão violenta que pode causar danos permanentes ao útero."
O médico Sidney Mattos Jr, que atuou por 16 anos como diretor do núcleo de obstetrícia da maternidade Carmela Dutra no Rio de Janeiro e professor de medicina na Faculdade de Medicina Souza Marques, explica que o misoprostol é muito útil na obstetrícia e pode ser utilizado tanto para induzir partos de bebês vivos quanto para induzir partos de fetos mortos. Mas alerta que o uso do misoprostol sem indicação e o acompanhamento médico pode ter sérias consequências.
“O grande risco é a hemorragia. A mãe vai para a maternidade sangrando muito e perde tanto sangue que pode morrer. Existe também a probabilidade de acontecer uma infecção, pois o medicamento pode ter sido indevidamente colocado na vagina”, explica o médico.
Em alguns casos, adverte Mattos Jr., pode acontecer uma ruptura uterina, ainda mais se a mulher já fez alguma cesárea no passado. Isso por conta das intensas contrações causadas pela droga. E acrescenta que pode acontecer má formação no feto em caso de falha no aborto.
“Estudos mostram que bebês de pacientes que tomaram o medicamento e sobreviveram podem nascer com defeitos como o encurtamento de membros”.
Relato de uma compradora
Uma das compradoras de remédio que chamaremos de M., pois nos solicitou anonimato, nos contou de sua experiência com o aborto feito à partir de remédios comprados online no ano de 2015. Ela recebeu todas as orientações online para que pudesse realizar o procedimento e ainda recebeu uma cartilha com o passo a passo.
M. conta que hoje se arrepende do que fez.
“Por medo de ser mãe de novo matei meu próprio filho. Eu só estava com medo, desespero normal no início da gravidez. Experimentei tudo isso anos depois quando engravidei. Na época me deixei levar por aquilo que era revolucionário. Em nome de certa liberdade, vivo hoje com um buraco na alma”, lamenta.
Hoje, casada, mãe de duas meninas, M. encontrou alívio na religião.
“Ir para a igreja, me confessar, me trouxe um sentimento de pertencimento. De laço com algo maior do que eu. E que apesar do erro é possível seguir e melhorar”.
Até o momento da publicação dessa reportagem o Facebook não retornou o nosso contato sobre a sua responsabilidade na venda de abortivos online.
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