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Os filósofos conceituam o mundo moderno como o reino da quantidade. Afinal, os nossos contemporâneos têm esvaziado o mundo material de sua dimensão qualitativa: na teologia, a prosperidade é indicativo de maturidade espiritual; na política, a quantidade de votos determina o destino da nação; no amor, o número de parceiros cresce em função exponencial. Os sociólogos tentam explicar o fenômeno: já não é vantajoso consertar objetos deteriorados; as pessoas, assim habituadas, buscam novos relacionamentos logo quando surgem os primeiros problemas, em função do que largam os antigos laços como se fossem mercadoria.
A verdade é que, permanecendo com essa mentalidade, nós não compreenderemos nem a realidade nem os clássicos, cujos principais nomes, mesmo os dos matemáticos como Pitágoras, pensavam nos números como partícipes do reino da qualidade.
Em primeiro lugar, os pitagóricos não separavam o sagrado e o profano, a religião e a ciência, a filosofia e a beleza. Na escola de Pitágoras, o 1 simbolizava a Razão; o 2, a Opinião; o 3, a Santidade; o 4, a Justiça; o 5, o Matrimônio; o 6, o princípio da Vida; o 7, a Saúde; o 8, o Amor; o 9, a Justiça; o 10, a Perfeição.
Unidade de disciplinas
Assim, Pitágoras enxergava a realidade como unidade plena, de tal forma que precisou desenvolver as suas teses como polímata. Aliás, os grandes pensadores do passado foram polímatas; inclusive, na Idade Média, enciclopédias inteiras foram compiladas individualmente, através das obras de Isidoro de Sevilha, Vincente de Beauvais, Hugo de São Vítor, et cetera. Eles pensavam: “A unidade de disciplinas reflete a unidade do cosmos.” Ao que dominavam não só o saber dito acadêmico, como o eminentemente prático, que partia da oração ao artesanato, da marcenaria à agricultura.
Foi preciso haver a revolução industrial para mudar a relação do Ocidente com o conhecimento; mais precisamente, o século XIX trouxe consigo a especialização intelectual e o conhecimento foi dividido em partes, passando o polímata a ser chamado de diletante, este termo associado à superficialidade, em contraste com o expert, à profundidade.
Já Pitágoras nunca desejou repartir a realidade em vários pedaços, de modo a substituir, como os modernos, a realidade concreta pela realidade científica. O propósito por trás da atitude cientificista não é o de conhecer o mundo, mas o de controlá-lo; o sujeito de conhecimento renega a unidade – o mistério – e trata o mundo como uma substância controlável dentro do laboratório – o fato positivado. Pitágoras não era assim especialista, nem nada disso; era matemático, filósofo e sacro.
Recompensa além-túmulo
A propósito, dizem os neoplatônicos, foi o primeiro a falar de imortalidade da alma. Ele acreditava que havia uma recompensa no além-túmulo para aqueles que levassem uma vida ascética. Nesse sentido, aproximava-se de uma religião de mistério, o orfismo. Ambos tinham em comum a doutrina da transmigração da alma, a punição no Hades e a glorificação dos justos em algo parecido com os Campos Elísios; a prática do vegetarianismo, o ascetismo da carne e a purificação das paixões. A diferença é que a disciplina pitagórica não se limitava aos ritos contemplativos e aos exercícios de virtudes morais; ela ascendia ao conhecimento da música, ciência e filosofia.
Antes de tudo, a transmigração é a doutrina de que uma mesma alma, após longo período no mundo dos mortos, pode retornar à realidade material para animar outros corpos, até mesmo de animais. Contudo, o objetivo anímico é o autoaperfeiçoamento para não mais transmigrar, aproximando-se da harmonia ou princípio da vida. Os pitagóricos, como descreve Píndaro, acreditavam que “de entre os mortos, aqueles cujas mentes são injustas pagam a sua pena com odiosa necessidade. Os bons recebem uma vida menos penosa. E aqueles que, enquanto moradores de ambos os mundos, tiverem por três vezes a coragem de conservar suas almas puras de todos os atos de injustiça, esses percorrem o caminho à Ilha dos Bem-Aventurados.”
Inclusive, os seus discípulos acreditavam que Pitágoras fora um desses que se purificou. Como um deus entre os homens, o mestre teria realizado proezas espirituais, como profecias acertadas, jejuns extremos e desaparições misteriosas.
Além disso, a escola possuía severas regras de abstinência: os discípulos não podiam atiçar o lume com uma espada, para simbolizar a imoralidade que existe ao se humilhar um homem com duras palavras; não podiam desfolhar uma coroa, simbolizando a proibição de violar as leis, que são as coroas das cidades; nem sequer sentar numa ração de trigo, a fim de simbolizar como é imoral viver na ociosidade.
Quanto à música, Pitágoras acreditava que não era uma invenção humana apenas, mas reflexo da ordem cósmica sobretudo; que as boas melodias serviam para restaurar a harmonia anímica, ao refletir as escalas numéricas do macrocosmo, e para purificar o corpo, através da atividade catártica, à semelhança da musicoterapia moderna.
Finalmente, para o mestre dos matemáticos, a ciência e a filosofia era concebida como o estudo da ordem divina do universo, o macrocosmo, que deve ser reproduzida na alma, o microcosmo. Assim, afirmava ser o número o princípio e o fim – o alfa e o ômega – de todas as coisas. Nós próprios podemos ver que as leis numéricas ordenam tudo o quando há: as estações, os meses, as semanas, os dias, os minutos, os segundos.
Entenderemos isso se nos despojarmos da noção moderna – vulgar – de que o número faz parte apenas do reino da quantidade, como se dizia. Os números nos conduzem também à qualidade – lei, ordem, medida, ritmo, harmonia, proporção… Nesse sentido, a filosofia pode ser entendida como a Matemática, esta que com clareza alcança os saberes supremos e os demonstra de acordo com princípios universalmente válidos.
*Natália Cruz Sulman é professora de filosofia