Entre 1796 e 1808, Napoleão Bonaparte "desenhou" 17 tentativas de invadir o Brasil. Os bastidores desses planos audaciosos de dominação são o mote do novo livro do historiador Marco Morel, autor de 'A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista', 'Corrupção, Mostra Sua Cara' e 'O Poder da Maçonaria', entre outros.
Em 'O Dia em que Napoleão Quis Invadir o Brasil', Morel também reflete sobre como o Brasil poderia ter sido moldado sob o jugo francês, avaliando sobre as possíveis transformações culturais, sociais e políticas.
A seguir, você lê o texto de apresentação da obra, recém-lançada pelo selo Vestígio.
O título do livro parece ficção, mas não é. Napoleão Bonaparte voltou seu olhar de águia sobre o Brasil.
No período de 12 anos (1796-1808), entre a fase final da Revolução Francesa e o desembarque da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, houve pelo menos 17 planos de ataque.
Miravam vários territórios no continente brasileiro, como então se dizia, da Amazônia ao Rio Grande do Sul, passando por Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso e Santa Catarina. Ou então queriam conquistar logo o Brasil inteiro! Nenhum deles vingou, está claro.
Tentativas oficiais que partiam do aparato militar, político e empresarial expansionista francês. Algumas acompanhadas e estimuladas diretamente pelo chefe da Grande Armada, por ministros e por dirigentes de seu Alto Comando.
As autoridades coloniais luso-brasileiras desconheciam as iniciativas e caçavam fantasmas, prendendo pessoas sem qualquer relação com estes casos. Conspirações impenetráveis.
A ligação conhecida entre Bonaparte e o Brasil é frágil, quando não forçada. Em geral, limita-se ao fato de que o imperador dos franceses fez com que a Corte portuguesa fugisse para cá, originando importantes transformações no país, que se tornaria independente. Uma relação indireta.
Pouco se conhece do apetite da conquista gaulesa sobre as terras brasílicas nos tempos de Napoleão I. Tais gestos, ganâncias e palavras, adormecidos há mais de dois séculos no Arquivo Nacional da França (Archives Nationales de France) e no Arquivo Histórico do Ministério da Defesa francês (Service Historique de la Défense, Ministère des Armées), na maioria inéditos, agora vêm à tona.
Com eles, surgem personagens curiosos e quase anônimos, pinçados no turbilhão da Era das Revoluções, com suas luzes e obscuridades. Como o capitão Antoine-René Larcher, que lutou pela Independência brasileira em 1797. Ou os capitalistas Cerf-Berr, que pretenderam formar um exército para conquistar o país inteiro, em 1801.
E o que dizer de um grupo de 800 jacobinos que pretendia tomar o Brasil de assalto e fazer degolas? E, ainda, o poderoso almirante e chefe de esquadra Willaumez, homem de confiança de Bonaparte, que insistiu para atacar Pernambuco.
E o general Combis, pronto para invadir o Rio de Janeiro. Sem falar no Rio Grande do Sul francês projetado pelo conde Liniers.
As tentativas frustradas fazem pensar num Brasil que poderia ter sido, mas nunca foi. Cópula interrompida. A batalha que não houve.
Projetos napoleônicos de “expedição”, na aveludada linguagem oficial, houve planos de invasão e ataques reais franceses desde o século XVI até meados do século XIX. Porém trata-se aqui de um período específico e de iniciativas estatais.
Bonaparte só assumiu formalmente o poder em 1799, mas, nos anos anteriores, sua influência era crescente. Todas essas experiências faziam parte do mesmo contexto de guerras que gerou (e foi gerado por) Napoleão.
Não tratarei de pirataria nem de franceses independentes que vinham ao Brasil, embora ambos tenham existido em profusão. Os planos aqui citados pretendiam fazer funcionar a máquina do Estado. Tênue limite entre corsários dos mares, tráfico atlântico de escravos e conflitos em terra firme com atuação de oficiais da Armada.
Espiões e negociatas. Contabilidade dos lucros. Lutas e sonhos revolucionários. A Revolução atravessada por contradições e, estas, por revoluções.
Entre as tentativas, projetou-se por três vezes a abolição da escravatura no Brasil em 1799, ou seja, 89 anos antes da Lei Áurea. Napoleão não estava sozinho. Universo e microuniversos. Sol, planetas e satélites. Bonaparte, aura de Libertador, e, do alto de seu cavalo branco, tornou-se escravocrata e colonialista – o que aguçava sua voracidade brasiliana.
Como teria sido o Brasil francês e napoleônico? Como os primeiros invasores enfrentariam a aridez do sertão? Ou o emaranhado verde e vibrante da Floresta Amazônica? Sobreviveriam aos cactos e à terra dura da caatinga? Espantariam-se com as imensas cataratas? Submergiriam às cheias do Pantanal?
Teriam sossego nos centros urbanos? Considerariam a Serra Gaúcha mais fácil de dominar do que os Pirineus? Saberiam interagir com os indígenas e sua imensa diversidade? As aristocracias se entenderiam? Os pobres livres se tornariam facilmente “afrancesados”? Os cativos se empolgariam com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade?
E a “mestiçagem” culinária... Frango à marengo acompanharia frango com quiabo sobre a mesa? Galinha a cabidela e coq au vin dariam um prato casado? Surgiria mistura entre feijoada e cassoulet? Queijo canastra combina com brie? Entre cozido e pot-au-feu?
Costela de bode ou de carneiro? Combinação de crêpe e tapioca. Rubro vinho Bordeaux ao lado da cristalina aguardente de engenho na hora do brinde. Coquille de Saint-Jacques ou casquinha de caranguejo? Açúcar de beterraba ou da cana? Batata noisette com mandioca assada, cobertas com fines herbes e alfavaca? Bacalhau salgado substituído pela morue fresca. O churrasco na brasa cederia lugar à vitela à moda da Córsega?
Na cultura, entre imposições e apropriações... Tapeçarias de Gobelins tecidas pelas mulheres rendeiras. O acordeom tocaria chansons e forró. A ‘Eroica’ de Beethoven executada pelos violinos dos Guarani das Sete Missões?
Ou quem sabe surgiria uma língua creolle franco-brasílica, como a que foi esboçada pelo poeta Aldir Blanc na canção “Prêt-à-porter de tafetá”, em parceria com João Bosco: “Voalá e çavá, patati, patatá / Boulevar, saravá, sou da Praça Mauá...”
Jangadas e chalupas ocupando as praias. A Catedral de Chartres implantada em Aparecida. Os Arcos da Lapa se ligariam ao Arco do Triunfo. O Monte Saint-Michel daria vista ao Pão de Açúcar. E de que essência viriam os perfumes exóticos? O Brasil seria a Argélia das Américas...
E as transferências da fauna e flora? Predadores como águia-imperial e carcará sertanejo saberiam partilhar o território? Javalis a caititus bateriam cabeça ou se cruzariam? Lobo cinza e lobo-guará se devorariam ou se misturariam? Faisão e arara dividiriam o bosque? Cereja e pitanga floresceriam no mesmo terreno? Pinheiros natalinos e coqueiros semeando juntos. Girassol e alamanda se entrelaçariam. Ou quem sabe o rio Sena desaguaria no São Francisco?
Talvez o maior país da América do Sul nem viesse a existir
É ingenuidade achar que o Brasil seria mais “civilizado” se colonizado pela França. As colônias francesas nas Américas, África e Ásia dão o exemplo do caráter da dominação. Não se imagina que haveria grandes novidades naquele contexto.
Num primeiro momento, a hipotética aquisição neocolonial brasileira continuaria escravista, exportadora e submetida a um regime liberal, modernizante e militarizado, possivelmente com Independência política e exclusivo comercial francês. Ou uma simples troca de metrópole? Embora a extinção do trabalho escravo tenha sido proposta.
As transformações que poderiam decorrer de tal situação são incontáveis e incontroláveis. Talvez o maior país da América do Sul nem viesse a existir.
A atração por Bonaparte (lendário e mítico) extrapola o círculo de especialistas. Sua marca alcança um público ampliado, gera fascínio, empatia, proximidade ou repulsa (a nível internacional e em grande escala) com o indivíduo que se transformou em “Grande Homem”.
Ao mesmo tempo vitorioso e derrotado, ambicioso e guerreiro, patético e grandioso. Dono de uma inteligência aguda ou uma teimosia empedernida. Violento ou humanitário. Mania de grandeza.
Sua presença povoa os repertórios culturais e psicológicos das sociedades atuais, um personagem da cultura de massas. Quem nunca ouviu uma piada sobre ele? Ou a narrativa de algum de seus feitos ou citação de frases que lhe são atribuídas? E aqueles que cismam ser Napoleão? Bonapartes dentro (e fora) do hospício nunca faltaram.
Mas aqui abordamos o personagem histórico e projetos governamentais. O imperador dos franceses chegou a dar sinal verde para o almirante Lacrosse invadir o Rio de Janeiro, em 1800. E desejou enviar uma parte das tropas para ocupar o Norte do Brasil, quando tentou reconquistar a ilha de São Domingos (Haiti), no Caribe, dois anos depois.
Em 1806, um ano antes de invadir Portugal, o “Ogro da Córsega” pensou novamente em atacar o Brasil, de surpresa, indo direto ao Rio de Janeiro. Sonhou mesmo em ser um novo Conquistador das Américas, à maneira dos antigos navegadores portugueses e espanhóis. Porém tempos e ventos não ajudaram.
O longínquo território brasileiro, de exuberantes riquezas naturais, era peça crucial no jogo de xadrez entre as potências europeias, Grã-Bretanha e França. O mar nem sempre estava para peixe – o que não impedia o contrabando de valiosos produtos brasileiros de chegar a Paris por caminhos sinuosos, espalhando, por exemplo, brilhantes topázios das Minas Gerais sobre a mesa dos revolucionários franceses.
Em revanche, o Brasil português invadiu a Guiana Francesa, em 1809. A França bonapartista foi se achegando: expulsou a Corte de Lisboa, guerreou na Guiana (fronteira amazônica) e nas colônias no Caribe, onde plantações ardiam, queimadas por escravizados em rebelião. A Revolução do Haiti. Queimadas.
A metrópole francesa possuía a Louisiana, nos Estados Unidos, e chegou perto do Canadá. Fez incursões em Buenos Aires. Os tentáculos de Bonaparte se avizinhavam da Terra Brasilis. Seus navios de guerra ziguezagueavam próximos ao litoral do gigante adormecido. Faltou dar o bote.
Se dominasse o Brasil, Napoleão estaria mais perto de controlar o mundo, ou, pelo menos, as Américas. Vontade não faltou. Mas a Royal Navy, Rainha britânica dos Mares, também andava por ali. Isso tornava as coisas um pouco mais complicadas. Entre o sonho e a realidade, havia o oceano (povoado de inimigos).
Trata-se de captar esse momento fugaz, mas intenso, do longo e incompleto dia em que Napoleão Bonaparte quis invadir o Brasil – onde a Independência não fora proclamada, nem a Corte portuguesa chegara.
No “sonho americano”, sempre acalentado e parcialmente realizado pelo “César Moderno”, haveria um grande império franco-americano do Rio da Prata (Argentina) ao Canadá, incluindo Caribe, Golfo do México e uma fatia dos Estados Unidos. E o Brasil no centro.
Os projetos não eram apenas europeus, embora estes tenham prevalecido, até pela localização geográfica. Havia uma dimensão planetária, irrealizada.
Alguns destes planos de invasão podem parecer extravagantes ou inviáveis para o leitor atual. Mas não se iludam, o mundo passava por mudanças até então impensáveis, e as possibilidades estavam em aberto.
Napoleão conquistou grande parte da Europa Ocidental e o Egito, foi até Moscou, e controlava territórios no Oceano Índico e parte das Antilhas. Quem sabe avançaria no Brasil? Esse era o motor da máquina napoleônica: alcançar o impossível chão.
Desde o século XVI, a França fez ocupações e ataques no território da América que se tornaria portuguesa, quando a gula europeia se deparou inicialmente com os índios canibais. “Aí vem nossa comida pulando!”, exclamavam os tupinambás, que foram, eles sim, devorados pela voracidade colonizadora.
E, ainda no século XVIII, corsários oficiosos, como Duguay-Trouin, deram bons sustos nos luso-brasileiros e se tornaram heróis na França por tais feitos. Logo depois desse período, surgiram outros projetos de invasão parcial pelos franceses.
Passado o fervor revolucionário e tendo falecido Buonaparte (como chamavam seus adversários, assinalando sua origem corsa e italiana) em 1821, alguns franceses continuaram de olho na Amazônia ou no Rio de Janeiro, tocados pela saga expansionista de conquistas e riquezas. E vieram outros projetos de invasão nos anos 1820-1830.
Se oceanos e terras não foram presa fácil, quem sabe florestas e rios? Não bastava à França ter alcançado a eficácia de Pátria das Luzes, vitoriosa referência cultural e civilizatória. Mas, no final das contas, teve que se contentar com esse papel.
Ou seja, conquistar corações e mentes, mas com poder econômico limitado. O que, convenhamos, não era pouca coisa. E se divertir com a peça teatral Jocko, le singe du Brésil (‘Jocko, o macaco do Brasil’), na qual o país era associado a um híbrido de símio e humano: sucesso da temporada parisiense em 1825, com salas lotadas e aplausos da crítica.
Ressonâncias coloniais e raciais. Talvez por coincidência, ano em que a França reconheceu oficialmente a Independência brasileira.