Na União Soviética, dois russos debatem quem foi melhor: Stalin ou o presidente americano Herbert Hoover — que apoiou a Lei Seca no país.
“O Hoover ensinou os americanos a não beber”, diz um.
“Sim”, diz o outro, “mas o Stalin ensinou os russos a não comer”.
A piada foi compilada pelo sociólogo britânico Christie Davies (1941-2017), e é bom exemplo do humor subversivo dos soviéticos sob um dos regimes mais brutais da história.
Nem Stalin e seu regime de terror conseguiram apagar o humor político.
Mas não quer dizer que ele não tenha tentado e, em certa medida, conseguido impedir que o regime soviético fosse alvo de zombaria.
No Brasil, as piadas sobre a obsessão do governo federal com o aumento de impostos, que transformaram o ministro Fernando Haddad em "Taxa Humana", "O Taxador do Futuro" ou “A Menina que Taxava Livros”, tomaram conta das redes sociais nos últimos dias.
O governo e os militantes lulistas se irritaram, insinuando que tudo não passava de uma campanha organizada para desmoralizar o regime. O caso ressuscitou um debate quanto antigo quanto a própria democracia.
Reação desproporcional aos memes de Haddad
Militantes petistas e integrantes do governo reagiram de forma estridente às piadas sobre Fernando Haddad.
"Existe uma ação coordenada e profissional de produção e distribuição de memes do Haddad", disse Vinicios Betiol, um blogueiro de esquerda que tem mais de 150 mil seguidores na rede social X. O cientista político Christian Lynch falou em uma "campanha da extrema-direita".
O próprio chefe da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, sugeriu que o governo investigasse quem está por trás dos memes.
“Quem financia a indústria de memes? Seriam os mais humildes, contemplados na reforma tributária? Ou seriam os mais ricos, alcançados pela tributação depois de muitos anos de benefícios? Vale a reflexão. Acho que os mais pobres não gastariam seus recursos atacando quem os defende”, escreveu ele, na rede social x.
Mas, para humoristas ouvidos pela Gazeta do Povo, Messias e seus correligionários cometeram dois equívocos.
Humoristas criticam patrulha
O primeiro erro dos governistas foi confundir a articulação espontânea de internautas com um esquema profissional e centralizado. Hoje, com a inteligência artificial, é possível gerar imagens em segundos e vídeos em minutos, a custo zero. De acordo com a Folha de S. Paulo, um levantamento da agência Buzzmonitor concluiu que os memes com a figura de Haddad surgiram de forma espontânea, sem coordenação.
"Ou o governo não entende como a internet funciona, ou entende muito bem e está sendo apenas cínico", afirma o humorista Oscar Filho, que conversou com a reportagem da Gazeta do Povo.
"A pergunta que precisa ser feita aqui é sobre a indústria que está por trás dos memes a favor do governo e dos jornalistas extremamente preocupados com piadas na internet. Nada mais inorgânico e inautêntico do que pessoas criando memes agradecendo o fato de pagarem mais imposto, ou apoiando um ministro que opta por decisões impopulares", observa o cartunista André Guedes.
Em segundo lugar, ao emprestar a força do cargo para fazer insinuações sobre um esquema de produção de piadas, Messias apontou a mira sobre um determinado grupo de pessoas — que se opõem ao atual governo — num momento de ataques frequentes à liberdade de expressão.
"Eu não só acho que esse tipo de declaração possa acabar intimidando como já intimida. Muitos humoristas estão preferindo fazer outros tipos de piadas e de humor por conta desse clima esquisito de pode-não pode, deve-não deve", conta Oscar Filho. Ele próprio fez uma piada sobre o ímpeto arrecadador do ministro Fernando Haddad recentemente. "Pela lógica do Jorge Messias, ele está insinuando que eu estou sendo financiado por X ou Y. Que me paga para ouvir piadas assim é o público que vai ao teatro e eu garanto que não são apenas pessoas de direita", afirma.
Messias não deu indícios de que pretenda mover alguma ação judicial. Mas não seria a primeira vez na História que um governo tentaria suprimir a sátira política.
O humor visto como ameaça
A tensão entre comediantes e os políticos existe desde a Atenas clássica, que reunia um bom número de ambos.
Platão, em sua "República", sugere que a poesia seja regulamentada para que não haja escárnio sobre o rei-filósofo ou as figuras sagradas. Ele não só pede que os “gracejadores” renunciem aos seus gracejos, mas defende que o rei-filósofo não possa ser retratado como alguém que ri.
Na voz de Sócrates, Platão propõe uma espécie de censura para assegurar que isso não aconteça.
Sócrates — Em verdade, porém, também não devem ser muito propensos ao riso. Pois, na maioria das vezes em que alguém se entrega a um riso excessivo, este lhe provoca uma transformação da mesma forma excessiva.
Adimanto — Parece-me que é assim.
Sócrates — Em consequência, é inadmissível que se representem homens dignos de estima sob o domínio do riso, e, pior ainda, se se tratar de deuses.
Mas a República de Platão era uma tirania em que até mesmo as crianças pertenciam ao Estado, e que talvez não tenha deixado muitas lições aplicáveis ao Brasil de hoje.
União Soviética foi terreno fértil para humor clandestino
Ditaduras tendem a não tolerar a sátira política porque, seja qual for a justificativa usada para o autoritarismo, ela precisa ser levada a sério em nome da sobrevivência do regime. Foi assim com a utopia de Platão (que nunca saiu do papel), é assim com tiranias modernas.
O ditador Getúlio Vargas, que perseguiu o humorista Apparício Torelly, e o regime militar, que censurou O Pasquim, tentaram usar a força para impedir que o governo fosse alvo de chacota. Os resultados foram dúbios.
Na União Soviética, o mercado editorial estava nas mãos do governo (e do Partido Comunista). Publicações que fizessem chacota com os líderes do regime precisavam operar de forma clandestina. Desobedecer as normas era correr o risco de ser preso. Em paralelo, uma rica tradição oral de piadas se desenvolveu.
Um dos mais influentes estudiosos do assunto, Christie Davies, escreveu que o comunismo oferece uma combinação de fatores unicamente propícia à sátira (ainda que clandestina). Isso explica a rica tradição de piadas sobre os líderes soviéticos (como a que abre esta reportagem).
"O comunismo gerou mais e mais piadas sofisticadas porque ele tentava controlar muito, materialmente e ideologicamente. Isso deu origem à possibilidade de piadas políticas sobre os absurdos da ciência e da história oficiais, e sobre sua ideologia detalhada e constantemente reinterpretada", ele afirmou, em um artigo publicado em 2007.
China tem departamento de censura
A tecnologia potencializou o humor, mas também deu novas ferramentas aos governantes para controlar a sátira política. Na China, a censura passa pelo Escritório Estatal de Informação da Internet, criado em 2011.
Além de bloquear qualquer influência ocidental que seja considerada nociva (incluindo o Facebook e o Instagram), o regime chinês monitora o que é dito nas plataformas autorizadas. Críticos do governo podem ser chamados para tomar chá com a polícia. Alguns não voltam para casa depois disso.
Em um artigo publicado em 2017, a pesquisadora Luwei Rose Lugiu mostra que as restrições no país levam os humoristas a censurarem a si próprios. "O governo chinês impõe políticas de censura convencionais nas redes sociais, e é impossível para os comediantes políticos evitarem a 'linha vermelha' para reduzir o risco político. A ameaça de censura faz com que os comediantes políticos se autocensurem, abandonem as suas criações e reduzam a sua produção”, escreveu Luwei, vinculada à Universidade Batista de Hong Kong. Em sua pesquisa, ela entrevistou uma dezena de humoristas chineses.
Luwei também observa que a tecnologia deu ao governo mais poder para censurar. “Os métodos e táticas utilizados pelas autoridades chinesas não são novos. Eles existiram no passado e são usados hoje em outros países autoritários. O que varia em diferentes épocas e lugares é a capacidade dos governos de exercerem o seu poder e a vontade das pessoas de usarem o seu poder para resistir", explica ela, que prossegue: "Com a sua tecnologia avançada e muitos recursos, o atual governo chinês é muito mais capaz de exercer o poder do que outros governos".
Léo Lins: a culpa é do ministro
Em entrevista à Gazeta do Povo, o comediante Léo Lins afirmou que a reação aos memes retratando Haddad é desproporcional e revela uma incompreensão sobre o humor na internet. "Vejo, nesse caso, uma preocupação mais política do que com o humor em si. Estão pressupondo que todos os memes não passam de uma estratégia elaborada e coordenada para difamar o ministro", disse ele.
Para Lins, que já foi alvo de dezenas de tentativas de censura direta ou indireta, trazer os memes para o centro do debate desvia o foco do que é mais importante. "Eu já sei quem é o responsável pelos memes do Haddad: o próprio Haddad! Se não tivessem criado tantas taxas, os memes não teriam sentido e, consequentemente, não seriam compartilhados", disse o humorista.
Na opinião do comediante, a popularidade das piadas envolvendo Haddad tem uma explicação simples: "Por que os memes do Haddad estão se proliferando? Simples, porque são engraçados! E porque, até agora, rir ainda é isento de imposto".
Humor se alimenta do autoritarismo político
Não é possível saber até onde o atual governo brasileiro está disposto a ir em nome do combate às "fake news", ao "discurso de ódio" ou o que vê como uma campanha orquestrada contra o ministro Fernando Haddad.
Mas, se a História tem alguma lição a oferecer, é esta: por vezes, a tentativa de coibir a sátira política tem o efeito inverso.
"A intenção é coagir, mas a tendência é que ocorra o famoso 'Efeito Streisand' - que é o esforço de censura resultando em uma divulgação ainda mais ampla da piada. Na verdade, isso já está ocorrendo nas redes - e quanto mais o governo e a imprensa chapa branca passarem recibo para memes, maior será o potencial de viralização da chacota", afirma André Guedes, para quem a postura do chefe da AGU no caso Haddad é um "tiro no pé".
Para Guedes, o episódio atual é apenas mais um em uma longa lista. "O humor é uma ferramenta de comunicação muito poderosa e, por isso mesmo, é tão temido - mas essa perseguição não é nenhuma novidade", afirma ele, que é um crítico de Lula e de Jair Bolsonaro.
Oscar Filho lembra que, no início do programa CQC, políticos o recebiam de braços abertos porque acreditavam que seriam bajulados. A postura mudou assim que eles perceberam que o tratamento seria diferente. O humorista critica as tentativas de "domesticar" a comédia. "O humor é marginal, sempre foi. O engraçado, o ridículo, o vexatório, o feio, o esdrúxulo sempre fez parte do humor porque na boa comédia não deve haver vaidade. Quando a vaidade entra na comédia, a excelência sai", comenta.
"Rir é uma reação incontrolável do corpo. Por isso, em governos autoritários, o riso se torna uma ameaça. Liberdades e individualidades são artigos de luxo quando o objetivo é controle: controlar a mídia, controlar a propaganda, controlar a linguagem e, por fim, até o pensamento", resume Léo Lins.