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Na eleição presidencial de 2018 foi assim. Tão logo saíram os resultados, apareceram formadores de opinião mais ou menos intelectualizados reclamando que “os pobres não sabem votar”. Com o coronavírus e as controversas medidas de isolamento ou quarentena tem sido a mesma coisa: na proteção do lar de classe média que tanto atacam, os intelectuais reclamam dos pobres e da necessidade de trabalho deles que “atrapalha” a sociedade como um todo.
O coronavírus, aliás, escancarou, para muito além do que os manuais de sociologia exibem, com seus gráficos e fotos do Sebastião Salgado, o enorme abismo que existe entre a classe média intelectualizada que faz home office assistindo a um filminho na Netflix todas as noites, saindo à janela apenas para bater panela, e os pobres preocupados com o emprego, com a aposentadoria, com a geladeira vazia e com o ritual aparentemente mesquinho de sobreviver.
Mas quem, afinal, são esses pobres? A que grupo essa abstração se refere na realidade? Responder a essa pergunta é mais difícil do que parece. Porque os pobres, apesar de onipresentes no discurso de políticos, ativistas, economistas e intelectuais de todas as estirpes, formam um grupo difícil de ser conceituado.
O que configura uma pessoa pobre?
A primeira tentativa de se definir o que é a pobreza foi feita pela matemática e estatística norte-americana Mollie Orshansky, que trabalhava no Departamento de Seguridade Social. Nos anos 1940, ela criou uma definição improvisada de pobreza que perdurou por mais de 50 anos. Ela começou com o custo de uma dieta nutritiva mínima – dados que conseguiu com o Departamento de Agricultura. A partir daí, ela calculou que o custo com a alimentação correspondia a 1/3 das necessidades de uma família na época. E pronto. Estava definida a pobreza.
Demorou, mas os cálculos de Orshansky caíram em desuso nos anos 1990, quando o Banco Mundial teve a ideia de complicar ainda mais o conceito muito real e ao mesmo tempo muito abstrato de pobreza. Na ocasião, matemáticos, estatísticos e toda a sorte de especialistas chegaram à conclusão de que todos aqueles que viviam com até um dólar por dia eram pobres. Não só isso, eles eram pobres absolutos. O valor passou por algumas correções e, desde outubro de 2015, foi fixado em US$1,90 por dia – o equivalente a cerca de R$10 reais/dia.
Mas o valor estabelecido pelo Banco Mundial não é aceito no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, a linha da pobreza absoluta foi estabelecida, ainda em 2010, em US$15,15 (R$79 reais) por dia ou US$22 mil (R$115 mil) por ano para uma família de quatro pessoas. Essa definição, contudo, tem muitas variáveis. Para um casal com mais de 65 anos e sem filhos menores de idade, por exemplo, a linha da pobreza absoluta foi fixada em US$15.178 (cerca de R$80 mil) por ano.
Na China, por sua vez, é considerado pobre quem ganha menos de US$0,55 (R$2,90) por dia.
No Brasil, famílias que têm uma renda per capita mensal de até R$89 entram na categoria de pobres absolutos, de acordo com Ministério da Cidade. Por esse cálculo, o Brasil tem hoje mais de 13 milhões de pobres absolutos.
Sociologia
O problema é que essas definições podem ser muito úteis para a adoção de políticas públicas que pretendem mitigar o problema da pobreza extrema, como, por exemplo, o controverso Bolsa Família, mas não ajudam a criar um retrato mais completo e amplo do que configura o pobre, este ser tão bajulado pelos políticos durante as campanhas eleitorais, tão citado por intelectuais em teses e tão atacado por aqueles que desejam melhorar o mundo.
Quem recorrer à sociologia atrás de uma definição melhor de pobreza não terá muita sorte. Ainda no começo do século XX, o sociólogo inglês Seebohm Rowntree tentou definir a pobreza como “a condição de não ter acesso às coisas consideradas ‘básicas’ ou ‘normais’ dentro de uma sociedade”. Já o Dicionário de Sociologia de Oxford define a pobreza como “a ausência de recursos materiais e sociais para que o indivíduo viva uma vida saudável”.
E todas as definições que encontrei vão mais ou menos nessa linha, dando bastante margem à subjetividade. Afinal, o que são as tais coisas “básicas” ou “normais” dentro de uma sociedade? Por esse prisma, alguém poderia argumentar que todos os que não dispõem de um celular numa sociedade tão conectada quanto a nossa é pobre. E o que significa exatamente uma “vida saudável”?
Em seu The Conquest of Poverty [A conquista da pobreza], o jornalista Henry Hazlitt explora os aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos da pobreza. Ao longo de 250 páginas, contudo, ele não consegue criar uma definição clara para o “pobre”, embora ressalte que a pobreza, no fundo, é a condição natural do ser humano e que os pobres, quem quer que sejam eles, são o alvo preferencial de todas as políticas progressistas que pretendem “melhorar” o mundo – como, inclusive, a eugenia explicitamente apregoada no começo do século XX.
Outros tipos de pobreza
Sendo a pobreza uma manifestação, digamos, nociva de uma escassez extrema, qualquer escassez, eis que temos uma infinidade de definições possíveis para a pobreza. E todo mundo é, em certo sentido, pobre.
A pobreza cultural, por exemplo, é representada por aquelas pessoas que não têm acesso ao que de mais rico o ser humano criou nas artes. A pobreza nutricional é representada por aqueles que têm dinheiro para comer apenas junk food. Já a pobreza espiritual é representada pelos materialistas aos quais falta a associação cotidiana com a alma e com Deus. E a pobreza sanitária, já que estamos em tempos de pandemia, é representada por todos aqueles aos quais faltam meios eficientes de se proteger do vírus.
Como vivemos na tal Era da Informação, dá para falar até em uma pobreza informacional, que seria representada por aqueles que não têm acesso à informação ou, pior, só têm acesso a informações de baixo valor, como aquelas que transitam pelo WhatsApp na forma de fake news.
Pobres são os outros
Disso resulta um fenômeno curioso: para o intelectual (e aqui me refiro a qualquer pessoa que pense o mundo ao seu redor, profissionalmente ou não), a pobreza é o maior problema que precisa ser resolvido no outro. Sempre no outro. A pobreza é sempre externa e algo tão repugnante que dela precisamos guardar uma distância segura.
Não à toa, a pobreza está sempre nas periferias, e nunca no vizinho que perdeu o emprego e está endividado pelas próximas quatro gerações (sem falar que ele gosta de ouvir funk). O pobre é também aquele que discorda do intelectual porque, coitado, a este pobre (e ele é pobre por mais que tenha uma Ferrari) faltam as sinapses necessárias para se chegar a uma conclusão correta.
Daí porque hoje em dia se vê tanta gente reclamando dos pobres que não sabem votar ou que não sabem ouvir música boa (e num volume decente), que não cuidam do planeta ou que cometem a ousadia de não respeitar uma quarentena porque precisam (que absurdo!) sobreviver.