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“Não existe essa coisa de batimento cardíaco às seis semanas. É um som fabricado para convencer as pessoas que os homens têm o direito de controlar o corpo de uma mulher”. Foram as palavras de Stacey Abrams, candidata ao governo do estado americano da Geórgia pelo Partido Democrata, na semana passada. Está acontecendo a primeira corrida eleitoral nos Estados Unidos depois da derrubada pela Suprema Corte, em junho, da decisão que descriminalizou o aborto nos Estados Unidos por 50 anos, deixando para cada estado decidir com autonomia.
Já contencioso antes, o tema aborto tornou-se ainda mais saliente desde a reversão do tribunal. Como o início dos batimentos cardíacos é proposto por alguns como um limite para a interrupção de gestações, Abrams, que é a favor do aborto, questionou dessa forma o limite. Outro motivo para a manifestação da candidata são leis de alguns estados que exigem que a gestante ouça o batimento cardíaco do feto, o que poderia provocar empatia e motivar desistência de abortar.
Abrams está errada: no embrião humano, um tubo cardíaco que dá origem ao coração “já começa a bater com contrações peristálticas às três semanas de desenvolvimento”, diz na primeira página do primeiro capítulo o manual “Cardiologia Fetal” (tradução livre para “Fetal Cardiology”, editado por Simcha Yagel, da Divisão de Obstetrícia e Ginecologia do Centro Médico Universitário Hadassah-Hebrew em Israel). Se não considerarmos essas contrações batimentos cardíacos, o coração primitivo começa a bater “por volta do fim da quinta semana de gestação”. Portanto, seis semanas são um período claro para a presença dos batimentos cardíacos, que já foram detectados até antes “tão cedo quanto 36 dias”, contando desde a última menstruação da gestante, informa o manual.
Da quinta até a nona semana (quando a artéria aorta fica visível), os batimentos cardíacos do feto, que começam a uma taxa de 110 batidas por minuto, aumentam sua frequência rapidamente até cerca de 170, depois baixando para um platô a partir dos seis meses de 120 a 160 batidas por minuto.
Por que negam?
Se os cardiologistas pediátricos e embriologistas já sabem tudo isso sobre as batidas do coração do bebê em desenvolvimento, por que Stacey Abrams e outros negam o batimento cardíaco às seis semanas? É uma disputa semântica a respeito de o batimento de um coração “primitivo” ter a mesma natureza do batimento de um coração já formado. A mesma negação de Abrams já apareceu em publicações mais progressistas (e portanto mais pró-escolha) como a NPR (Rádio Pública Nacional), a revista The Atlantic e a seção de checagem de fatos do jornal The Washington Post.
Nisha Verma, uma obstetra e ginecologista ouvida pelo jornal, por exemplo, diz que o batimento cardíaco fetal é diferente porque “às seis semanas, as válvulas não existem”, dessa forma o batimento “é na verdade atividade elétrica, e o barulho que você ‘ouve’ é na verdade fabricado pela máquina de ultrassom”. Jennifer Kerns, outra obstetra e ginecologista ouvida pelo jornal, diz que “o que estamos detectando é um agrupamento de células que estão iniciando alguma atividade elétrica”.
Esses preciosismos semânticos podem ser empurrados para o outro lado. Até um coração adulto pode ser chamado de agrupamento de células que têm atividade elétrica. Estão sendo ignorados os aspectos em que um coração fetal e um coração adulto convergem: a atividade rítmica dos dois, independente do som audível que criam, serve para fazer o sangue circular pelo organismo, e no caso do feto também pelo cordão umbilical. A atividade elétrica é algo que têm em comum.
Se houvesse um real veto científico a chamar a atividade do coração fetal de “batimento” por não ter som audível, o manual de mais de 800 páginas de Yagel não usaria esse termo para o que é medido inicialmente a uma taxa de 110 por minuto às seis semanas. Além disso, a aferição dos batimentos cardíacos pode ser feita pelo tato, como no pulso, evidenciando a falta de exigência de presença de um som.
Para piorar, como contou o radiologista Pradheep Shanker ao National Review, as duas obstetras ouvidas pelo Washington Post estão erradas a respeito do funcionamento da máquina de ultrassom. A máquina é incapaz de detectar sinais elétricos. Ela emite sons inaudíveis para humanos para detectar distâncias entre estruturas físicas no ventre da gestante, através do eco, gerando a imagem bidimensional. E é capaz de capturar o som do batimento cardíaco do feto, também.
Para Shanker, “nada da ciência a respeito mudou, somente a política mudou”. “Repórteres, inclusive os assim chamados checadores de fatos, estão ignorando de propósito um fato científico demonstrável para produzir os resultados que eles querem”, arremata.
Ciência não responderá à questão mais importante
Como no caso da decisão do ministro Fachin que restringiu no Brasil acesso a armas, apelos à ciência não responderão às controvérsias éticas em torno do aborto. É digno de nota, no entanto, que participantes de algum dos lados dessas discussões éticas e políticas falsifiquem os fatos científicos ou façam contorcionismo semântico sobre eles. Nenhuma quantidade de estudo dos detalhes dos batimentos cardíacos responde se são eles o que mais importa para o problema mais premente: se um Estado ou uma sociedade deve tratar como pessoa digna do direito ao vida todo ser humano em qualquer estágio de desenvolvimento desde a concepção, ou se esse direito é negociável em nome de outros interesses a depender da forma do embrião, da presença ou ausência de batimentos cardíacos, da presença ou ausência de cérebro e sua atividade, etc. Tratar só dos aspectos científicos é adiar o debate.