Apesar de constar na lista de cotados para vencer o Nobel de Literatura deste ano, o escritor e dramaturgo norueguês Jon Fosse, agraciado com o prêmio nesta quinta-feira (5), pode ser considerado um azarão. Branco, europeu e católico, ele representa uma escolha surpreendente e ponderada por parte da Academia Sueca, que nos últimos tempos vinha tomando decisões polêmicas ou pautadas pela correção política.
A favorita era uma mulher chinesa, Can Xue, porém muitos apostavam que finalmente havia chegado a vez do britânico-indiano Salman Rushdie. Para quem não se lembra, ele foi jurado de morte em 1989 pelo regime iraniano, após a publicação do livro ‘Os Versos Satânicos’, cujo conteúdo contém supostas ofensas ao Islã.
Em agosto do ano passado, Rushdie foi atacado a facadas, em Nova York, por um americano de origem libanesa. Passou seis semanas internado e perdeu a visão do olho direito, além de ter os movimentos das mãos comprometidos. Ou seja: premiá-lo seria a garantia de uma promoção que o Nobel de Literatura não tinha desde 2016, quando o cantor Bob Dylan se sagrou vencedor (um dos mais contestados de todos os tempos, diga-se). Mas, num mundo altamente dividido, mexer com questões religiosas poderia ser um tiro no pé.
Concedido a escritores pelo conjunto de sua obra, o prêmio de Literatura talvez seja o mais subjetivo entre os seis oferecidos pela Academia Sueca. E não apenas por se tratar de arte, um campo sempre ligado ao “gosto”, mas também pela falta de transparência e pelos critérios opacos.
O próprio Alfred Nobel, quando instituiu a honraria, em 1901, não foi muito claro com relação à metodologia. Segundo ele, o objetivo era reconhecer “o trabalho mais notável em uma direção ideal” – seja lá o que isso quer dizer.
Desde então, o prêmio é marcado por uma série de controvérsias, começando pela lista gigante de omissões. Mark Twain, James Joyce, Milan Kundera, Marcel Proust, Vladimir Nabokov, Anton Tchekhov, Jorge Luis Borges e Philip Roth são só alguns exemplos de nomes fundamentais para o cânone literário que foram esnobados pela academia sueca e morreram sem receber esse reconhecimento (enquanto muitos dos vencedores sequer ainda são lidos ou lembrados).
A política é outro motivo de polêmica na história do Nobel. Para os críticos, a academia sueca muitas vezes prefere fazer gestos simbólicos nesse sentido do que agraciar quem efetivamente produziu uma obra de qualidade.
Essa impressão tem se intensificado desde os anos 2000, devido à cultura do politicamente correto. Sempre acusado de favorecer homens europeus e brancos, o Nobel tem nitidamente se esforçado para mudar esse quadro, laureando, nas edições mais recentes, diferentes “literaturas” – hoje em dia está na moda usar os termos no plural (“saberes”, “afetos”, “masculinidades”, “periferias”).
A francesa Annie Arnoux, premiada no ano passado, ficou famosa por suas posições ligadas à defesa do comunismo, do feminismo e do aborto. Já o tanzaniano Abdulrazak Gurnah, vencedor em 2021 e ilustre desconhecido até dentro da comunidade literária, escreve sobre a experiência dos refugiados (além disso, ele é negro).
Odiada pelos conservadores de seu país, a polonesa Olga Tokarczuk (2019) milita na esquerda ecológica. Mo Yan (2012), chinês, teria sido agraciado numa espécie de “sistema de cotas” para asiáticos. E por aí vai...
Premiados e cancelados: os autores repudiados após o Nobel
Há exceções. No entanto, escritores liberais, de direita ou que não se enquadram no padrão considerado “adequado” para os progressistas costumam ser repudiados quando são reconhecidos pelo Nobel por suas habilidades estritamente literárias. O austríaco Peter Handke – laureado junto com Tokarczuk em 2019 (no ano anterior, a premiação foi suspensa após o marido de uma integrante do comitê ser acusado de abuso sexual) – é um desses autores premiados e cancelados.
Conhecido por livros como ‘Uma Breve Carta para um Longo Adeus’ e ‘A Hora da Sensação Verdadeira’, e também pelos roteiros de diversos projetos do cineasta alemão Win Wenders (incluindo o clássico cult ‘Asas do Desejo’), Handke foi talvez o único intelectual de renome do ocidente favorável à Sérvia durante a Guerra da Bósnia. Ele inclusive discursou no funeral do ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic (1941-2006), acusado de crimes contra a humanidade.
“Estamos perplexos com a escolha de um escritor que usou a sua voz pública para minar a verdade histórica e oferecer socorro aos perpetradores de um genocídio. Num momento de crescente nacionalismo, liderança autocrática e desinformação generalizada em todo o mundo, o ambiente da literatura merece coisa melhor do que isso”, disse, na época, a autora norte-americana Jennifer Egan, presidente da PEN America, organização literária voltada para a defesa dos direitos humanos.
O caso mais famoso, no entanto, é o do peruano Mario Vargas Llosa, agraciado com o Nobel em 2010. Assumidamente de direita, ele se tornou persona non grata no mundo literário por sua defesa do liberalismo econômico e seu apoio a políticos conservadores da América do Sul. No ano passado, Llosa voltou a ser alvo da esquerda após afirmar que “jamais votaria em Lula” – e o jornal britânico The Guardian, de viés progressista, chegou a publicar uma matéria contrária ao seu posicionamento.
Maior crítico do nosso tempo era contra o identitarismo na literatura
Possivelmente o maior crítico de literatura de nosso tempo, o americano Harold Bloom, morto em 2019, também era um inimigo ferrenho do identitarismo nas universidades, na imprensa e nas premiações. Em 2007, quando a inglesa Doris Lessing (1919-2013) venceu o Nobel, Bloom atribuiu à láurea ao fato de ela ser mulher (para ele, a autora escreveu alguns bons livros, porém mais da metade de sua obra é “completamente ilegível”). Curiosamente, Lessing rejeitava a o rótulo de feminista e era uma voz contrária à cultura do politicamente correto.
“Os critérios do momento são raça, gênero, orientação sexual, origem étnica e intenções políticas. A ideia de que beneficiamos os humilhados e ofendidos lendo alguém com as mesmas origens deles, em vez de ler Shakespeare, é uma das mais peculiares ilusões já promovidas em nosso meio”, afirmou Harold Bloom.
O escritor e roteirista brasileiro Alexandre Soares Silva pensa da mesma forma. “Se eu fosse negro, me sentiria ofendido caso outro negro ganhasse apenas por ativismo. É como se existisse uma categoria ‘café com leite’”, diz o autor dos romances ‘A Coisa Não Deus’, ‘Morte e Vida Celestina’, ‘A Alma da Festa’ e ‘Totolino’, do livro de contos ‘O Homem que Lia Seus Próprios Pensamentos’ e da coletânea de ensaios ‘A Humanidade é uma Gorda Dançando em um Banquinho’.
Para ele, o Nobel de Literatura tem um histórico “incrivelmente ruim”, principalmente por conta das injustiças cometidas. “Seria uma honra para eles premiar o [argentino Jorge Luis] Borges, por exemplo. E não contrário”, afirma.
Em tempo: ainda hoje, há quem diga que Borges não foi premiado por sua simpatia pelo liberalismo clássico e o conservadorismo. Ele também confessava admirar figuras como Winston Churchill e Ronald Reagan, além de ser um defensor ferrenho dos direitos individuais.
De qualquer forma, Soares Silva acredita que a honraria da Academia Sueca pode dar destaque a escritores cujas obras talvez passassem despercebidas sem esse tipo de reconhecimento. E ironiza: “É um prêmio que as pessoas fingem desprezar, mas que todo mundo mataria a irmã ou o cunhado para ganhar”.
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