Adam Smith, o pai da disciplina que hoje chamamos de economia, foi um filósofo moral e político do Iluminismo escocês, contemporâneo e conhecido de Edmund Burke. Aclamado há décadas como um apoiador do livre mercado e dos governos limitados, Smith é frequentemente invocado pelos defensores do capitalismo corporativo como um bastião da razão, digno de reverência. Ao ler Smith, entretanto, somos confrontados com o surpreendente fato de que suas ideias foram mal interpretadas e adulteradas.
Adam Smith detestava o mercantilismo
Adam Smith abre “A Riqueza das Nações” declarando que o mercantilismo" foi um ataque a todo o sistema comercial da Europa moderna". Especificamente, o trabalho mais importante de Smith foi um ataque a este sistema político e econômico. O mercantilismo, etimologicamente derivado da palavra francesa para “comerciante”, era o sistema econômico dominante no início da Europa moderna. Precursor das economias de mercado mais liberais do século XIX, o mercantilismo era um sistema no qual os comerciantes e banqueiros eram os “principais arquitetos da política pública”, como Adam Smith observou em sua crítica ao sistema econômico.
Um estudo de caso histórico revela uma pluralidade de péssimos subprodutos do sistema mercantil durante a era dos impérios e do colonialismo. Talvez o exemplo mais importante desta repugnância ao mercantilismo tenha sido a Companhia Britânica das Índias Orientais e sua atuação no Oriente. Em nome do comércio, a Companhia das Índias Orientais realizou uma série de atrocidades em toda a região, incitando guerras para traficar drogas através de seu próprio exército privado — levando até mesmo à usurpação de nações soberanas, como foi o caso na Índia.
Inicialmente subsidiada pelo Império Britânico e com apoio militar, a Companhia Britânica das Índias Orientais era uma monstruosidade multinacional peculiar. A Companhia Holandesa das Índias Orientais foi outro exemplo de sociedade anônima mercantilista que, em essência, era um conglomerado público/privado, que concedia monopólios exclusivos sobre o comércio em certas regiões e recebia status legal e proteções especiais.
Doutrinas mercantilistas levam à calamidade para todos, exceto para poucos
O conceito de comércio equilibrado, que mais uma vez volta ao debate em nosso tempo, é central para as ideias mercantilistas. Propagada com intenções gananciosas, a falsa doutrina do comércio equilibrado via a riqueza como finita, em vez de ilimitada. Para um país ser considerado rico em uma economia mercantil, ele deve operar sob um superávit comercial, em vez de déficit — assim, as nações trabalham para alcançar um superávit comercial e, ao fazê-lo, guerreiam entre si, em vez de trabalharem juntas pela troca de bens com base fora de seus próprios recursos naturais únicos.
Consequentemente, nas sociedades pré-capitalistas da Europa moderna, a riqueza era medida em ouro e recursos naturais, não no produto interno bruto. O valor colocado no ouro, em particular, foi o ímpeto que estimulou os espanhóis a saquear o máximo possível nas Américas, encorajando a conquista brutal e, ao mesmo tempo, causando uma imensa inflação nos mercados europeus no processo.
A ênfase nos recursos naturais, incluindo safras comerciais, madeira serrada e ferro, impulsionou a expansão imperial para garantir as matérias-primas necessárias para a indústria doméstica fabricar bens para exportação no crescente mercado internacional.
Muitas guerras entre potências europeias foram travadas por causa dos artigos dogmáticos da fé mercantilista, incluindo as Guerras Anglo-Holandesas travadas pelo Ato de Navegação de 1651, que foi projetado para aumentar os interesses comerciais ingleses às custas dos Países Baixos. Jogando com preconceitos nacionais inerentes à maioria dos seres humanos, os mercantilistas foram capazes de despertar o sentimento popular para promover seus próprios fins, o que atingiu Adam Smith.
A crítica de Adam Smith ao “Sistema de Comércio Integrado da Europa”
Adam Smith é frequentemente retratado como um bastião da desregulamentação e do capitalismo inabalável, mas Smith era um ferrenho oponente dos "vil senhores da humanidade", cuja máxima ele entendia ser "tudo para nós e nada para os outros".
Na política mercantilista, esses vis senhores da humanidade foram os “arquitetos-chefes das políticas públicas”, que procuraram elaborar uma legislação para beneficiar a si próprios, limitando a competição e criando barreiras à entrada. Em seu extenso tratado clássico, Smith repreendeu profundamente o sistema comercial da Europa, particularmente o da Grã-Bretanha. Em sua crítica analítica, Smith observa peças legislativas específicas que demonstram sua premissa principal de que as leis que regulam o comércio geralmente beneficiam os produtores que as fabricam, não os consumidores. O motivo recorrente de Smith é:
"Pessoas do mesmo ramo raramente se encontram, mesmo que para para entretenimento e diversão, mas a conversa termina em uma conspiração contra o público, ou em algum artifício para aumentar os preços. (...) embora a lei não possa impedir as pessoas do mesmo ramo de se reunirem, ela não deve fazer nada para facilitar essas assembleias".
Smith comunicou que o público deveria, conseqüentemente, desconfiar de qualquer legislação elaborada e endossada por aqueles que buscam utilizar o estado como veículo para atingir seus próprios fins:
“...alargar o mercado e estreitar a concorrência é sempre do interesse dos concessionários (...) para estreitar a competição deve ser sempre contra ele (o público) (...) a proposta de qualquer nova lei ou regulamento do comércio, oriunda desta ordem, deve ser sempre ouvida com muito cuidado”.
Em sua longa análise, Smith observa como o “Estatuto da Aprendizagem”, instituído durante o reinado de Elizabeth I da Inglaterra, beneficiou os mestres de vários ofícios, em vez do público em geral. Sob o pretexto da segurança e do controle de qualidade, as leis que regulamentam a duração e os requisitos dos estágios serviram para limitar a competição, criando barreiras à entrada.
Isso ocorre porque os artesãos que de outra forma estariam trabalhando para si próprios tiveram que trabalhar sob a tutela de um mestre por um período de tempo predeterminado, escolhido por um conglomerado dos próprios mestres, que então pressionaram o governo a codificar em lei seu decreto arbitrário.
Smith argumentou que longos aprendizados de sete anos na verdade serviram para reduzir a qualidade, porque ao limitar a competição, o incentivo ao trabalho foi abolido. Não apenas os senhores recebiam por meio de trabalho livre o que era em essência servidão contratada, mas, ao limitar artificialmente a oferta a fim de aumentar os preços, os senhores se livraram da necessidade da competição e do imperativo do mercado de fabricar bens de alta qualidade em um preço competitivo. Em nossa era centralizada, existem ainda mais barreiras à entrada no mercado em todos os setores do mercado.
A desregulamentação nem sempre é de interesse público
Smith acreditava que as leis defendidas pelas classes trabalhadoras geralmente estavam em harmonia com o interesse público. As medidas às quais ele e outros liberais clássicos se opuseram foram as que afetaram muitos para o benefício de poucos.
Um exemplo histórico desse tipo de regulamentação são as Leis do Milho, que controlavam artificialmente o influxo de grãos para a Inglaterra por meio de tarifas e taxas, a fim de aumentar artificialmente a produção doméstica de grãos para o benefício da aristocracia latifundiária.
As "Corn Laws", revogadas Robert Peel e outros liberais clássicos cruzados do século XIX, exacerbaram a fome e a luta econômica para a grande massa de cidadãos britânicos. Embora seja verdade que Smith se opôs veementemente a legislações como esta, é certo que ele também se opôs a regulamentos ou medidas negativas que são revogadas e deixam a vida, a liberdade e a propriedade da população em risco.
Smith, por exemplo, defendeu alguns programas de bem-estar social em sua época, argumentando que uma marca registrada de uma sociedade civilizada é cuidar dos menos afortunados: “O que melhora as circunstâncias da maior parte nunca pode ser considerado um inconveniente para o todo. Nenhuma sociedade da qual a maior parte dos membros são pobres e miseráveis pode ser florescer e ser feliz de verdade”.
Portanto, a desregulamentação e a privatização das instituições públicas nem sempre conduzem ao aumento da liberdade e da prosperidade em todos os casos, visto que os entraves removidos frequentemente são apenas obstáculo apenas para certos interesses especiais.
Smith estava ciente da maneira como as leis podiam ser mal interpretadas para não cumprir o espírito com o qual foram inicialmente criadas, tanto pela elaboração de novas leis quanto pela remoção das já existentes e, portanto, a deliberação era vital em cada circunstância particular.
O que Smith realmente defendeu?
A tese central de Smith era que, sob condições de liberdade perfeita, o livre empreendimento levaria à igualdade perfeita. Longe de ser um idealista, Smith entendeu que a liberdade perfeita nunca conseguiria — nem poderia — existir na terra, já que a natureza do poder político e econômico nunca permitiria que isso acontecesse. Ainda assim, Smith criticou a forma como os governos em toda a Europa limitaram e aumentaram simultaneamente a competição em vários negócios, não deixando as coisas "em perfeita liberdade".
Ao interferir nos assuntos comerciais, os governos contornaram os processos do mercado orgânico que, de outra forma, regulariam a "circulação de trabalho e estoque". Em um mercado livre, Smith argumentou que, para obter lucro, os produtores deveriam oferecer produtos de qualidade a preços razoáveis, a fim de vender seus produtos aos consumidores. Consequentemente, para Smith, a competição de mercado — livre de medidas coercitivas arbitrárias como tarifas, taxas e barreiras à entrada — sempre beneficiaria o consumidor e não o produtor.
A mão invisível
A famosa "Mão Invisível" de Adam Smith não é tão misteriosa uma vez que as bases para sua filosofia foram estabelecidas: é simplesmente o subproduto de processos inconscientes de mercado. Como ele mesmo escreveu, “ao buscar seu próprio interesse, ele frequentemente promove o interesse da sociedade de forma mais eficaz do que quando pretende promovê-lo (...) cada indivíduo (...) pode ser um juiz muito melhor do que qualquer estadista ou legislador”.
Para Smith, o interesse individual é o veículo pelo qual os mercados evoluem e, por fim, avançam. Smith, como outros liberais clássicos, acreditava que os seres humanos eram naturalmente egoístas, buscando principalmente seu próprio engrandecimento. A competição na arena pública, afirmou Smith, na verdade serviria para tornar os indivíduos menos egoístas, já que eles tinham que responder pelos desejos e necessidades de outras pessoas.
Considere que, na ausência de aparatos coercitivos, um indivíduo deve oferecer algo de valor a outro se o primeiro deseja lucrar. Ao fazer isso, o primeiro indivíduo deve transcender sua auto-paixão, considerando as necessidades do último indivíduo. Desta forma, a “Mão Invisível” serve para tornar as pessoas melhores e mais justas.
Governos e comerciantes, no entanto, procuram contornar esse processo orgânico impondo medidas arbitrárias, destinadas a impedir a livre iniciativa. Na era moderna, a propaganda e a publicidade procuram subverter a faculdade racional do consumidor para incitar o consumidor a agir de uma forma que beneficie o vendedor, mas não necessariamente mutuamente benéfica para ambas as partes.
A Mão Invisível de Adam Smith, então, é baseada na suposição de que os seres humanos são racionais e agirão de acordo, embora um crítico possa argumentar que frequentemente este não é o caso.
Um ressurgimento do mercantilismo no século XX
Recentemente, vê-se um ressurgimento de medidas mercantilistas promulgadas por governos em todo o mundo. Enquanto o governo britânico ajudou militarmente a Companhia das Índias Orientais no passado distante, o governo dos Estados Unidos também ajudou em favor de suas próprias corporações multinacionais.
Um exemplo disso foi o golpe guatemalteco de 1954, no qual a CIA veio em auxílio da United Fruit Company orquestrando a derrubada de um governo eleito democraticamente que tentava nacionalizar seus recursos. Desde a virada do século 20, parece que o moderno estado-nação intervém frequentemente em favor de seus interesses corporativos: um retorno claro aos dias do intervencionismo mercantilista.
Na principal avenida dos EUA, uma manifestação relativamente benigna de mercantilismo é a frequência com que as empresas de serviços públicos e telecomunicações recebem monopólios exclusivos sobre jurisdições geográficas inteiras, impedindo-as da competição de mercado que — na estimativa de Smith — beneficiaria o consumidor. Em qualquer caso, as empresas de serviços públicos e telecomunicações modernas utilizam autoridade governamental para manter o monopólio localizado, evitando a competição: um claro prenúncio do ressurgimento do mercantilismo.
O Affordable Care Act, anunciado como "saúde universal" por apelar à empatia humana, foi elaborado pelos mestres do homem em tempos mais recentes, que utilizaram o poder coercitivo de um governo federal gigantesco para impor um mandato individual para adquirir seguro saúde Cidadãos dos Estados Unidos. Ao fazer isso, as seguradoras foram capazes de enriquecer, ao mesmo tempo em que esmagavam a concorrência de operadoras menores.
No setor de saúde, já se foram os dias de competição de mercado livre, sem os chamados regulamentos de segurança impostos pelas grandes empresas e seus capangas: o irmão mais velho. Felizmente, porém, a penalidade individual foi recentemente eliminada.
Permanecendo no tema da saúde, considere que foram os mestres do homem que fundaram a AMA e a ADA, durante a chamada Era “Progressista”. Considere que na crise econômica de 2008, os empréstimos inadimplentes concedidos por grandes bancos fizeram a economia cair em uma espiral. Esses bancos então — em vez de pagar pela tolice de suas próprias ações (intencionais ou não) — foram resgatados por um irmão mais velho, que veio em seu auxílio às custas do já difamado pagador de impostos.
Com a imposição de tarifas sobre as importações como aço, alumínio e eletrodomésticos fabricados em outros países, a fim de retificar o déficit comercial da América, o governo Trump — com o apoio de americanos mal informados — declarou a política mercantilista dominante mais uma vez. É claro que a política tarifária resultou em medidas retaliatórias de outras nações que, em uma instância, resultaram em uma exacerbação de 12 bilhões de dólares às custas do público em geral, por meio da qual os fundos do contribuinte foram então redistribuídos para empresas agrícolas em 2018, impactados negativamente pela tarifa de Trump. Da mesma forma, como foi esclarecido, os acordos comerciais modernos que o presidente Trump colocou em primeiro plano, preveem a circulação de capital e estoque, mas não de trabalho.
O resultado dessa política mercantilista é que, embora os magnatas dos negócios possam se mover livremente através das fronteiras, os trabalhadores não podem. Nessa política, o homem comum sofre, enquanto o oligarca mercante — que é o arquiteto da política em questão — ganha imensamente. Todos esses desenvolvimentos e muito mais equivalem ao que pode ser classificado como capitalismo de compadrio.
Capitalismo de compadrio e mercantilismo apresentam o mesmo prejuízo à liberdade
Em sua própria essência, o capitalismo de compadrio é na verdade o reaparecimento do mercantilismo. Mais uma vez, os "vil senhores do homem" estão convocando o Estado para cumprir suas ordens, desta vez sob o disfarce de "capitalismo". Capitalismo, um termo depreciativo usado para denotar o tipo de clientelismo ao qual associamos a moderna ordem corporativa e industrial, foi cunhado por Karl Marx em "O Capital".
Os “capitalistas” como Adam Smith, Thomas Jefferson e outros liberais clássicos teriam repulsa ao saber que os capitães da indústria casaram com sucesso os recursos do estado e o poder com seus próprios desejos pessoais. Portanto, a crítica de Adam Smith da economia mercantil da Europa moderna é tão pertinente hoje como sempre, à medida que o mundo regredia do liberalismo para o que é, em essência, neomercantilismo centralizado. Talvez seja ingênuo pensar que os perniciosos vestígios do mercantilismo foram perdidos, devido à intervenção dos mestres do homem em todas as épocas, cuja ânsia por poder e riqueza material estripa todos os que se atrevem a ficar no caminho como Smith elucidou prescientemente há quase 250 anos.
©2021 The Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês.
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